Que gostei de ler.
O dever de memória: Um nobel para as vítimas
do comunismo
O dever de memória é uma atividade
fundamental num Estado de Direito e particularmente em países que viveram sob
regimes totalitários comunistas que sempre negaram e apagaram a História.
ZITA SEABRA
OBSERVADOR, 15 out
2022, 00:1931
Conheci
o Movimento Memorial (russo) em Moscovo, em 1989. O meu encontro com eles foi
dos momentos mais marcantes da minha vida e que nunca esquecerei. Na verdade,
fui, em 1989, a Moscovo, fazer uma reportagem para o jornal Expresso sobre
as primeiras eleições livres na Rússia, em resultado da Perestroika de
Gorbatchov e acompanhar muito especialmente o candidato de Moscovo Boris
Ieltsin, dois anos mais tarde primeiro presidente da Rússia, eleito em votação
directa pelo povo. Tinha sido expulsa do PCP, mas ainda via no comunismo um
contributo fundamental para o futuro da Humanidade.
Moscovo
fervilhava porque vivia os seus primeiros dias de liberdade na imprensa escrita
e na televisão, abriam os primeiros cafés onde se convivia sem medo,
assistiam-se aos primeiros concertos de rock que eram proibidos e
discutia-se alto na rua e não sussurros. Tudo tinha um ar de festa,
de vida, de alegria e de liberdade. Lembrava-me os dias do 25 de Abril em Portugal.
De
tudo o que vi e vivi nessa altura, na ainda URSS, marcou-me especialmente o dia
em que o José Milhazes me levou à
sede da Organização dos Realizadores de cinema para conhecer o Movimento
Memorial, que então dava os primeiros passos.
A
organização Memorial tinha sido idealizada por Andrei Sakharov,
famoso cientista nuclear soviético e conhecido dissidente comunista, ele
próprio Prémio Nobel da Paz em 1975 pela coragem da sua luta pela liberdade e
pelos direitos humanos na URSS. Sakharov
não foi autorizado pelas autoridades comunistas a receber pessoalmente o prémio
e, em contrapartida. montaram contra ele um processo fantoche em que o acusaram
de desvio de dinheiro. Acabou condenado a prisão domiciliária de que se livrara
muito recentemente. Na boa tradição comunista, os dissidentes nunca
têm divergências políticas ou ideológicas, mas desviam fundos ou são
fascistas.
A
apoiar a ideia de Sakharov
de criar este movimento juntou-se Soljenitsin (acusado de fascista), expulso da União Soviética e
também ele Nobel ainda no exílio (do qual regressaria em 1994). Soljenitsin havia publicado no Ocidente (1974) o
livro Arquipélago Gulag,
a maior e mais tocante denúncia do Gulag, no qual relatava a sua vida num dos
campos de concentração. A eles se juntaram também muitos intelectuais e as suas
organizações, como artistas de teatro, escritores, designers, e jornalistas.
Cheguei
à sede dos cineastas cedo, numa manhã gelada de Março (com 10 graus negativos),
atravessando as avenidas cobertas de neve. A primeira imagem que recordo foi a
fila imensa de mulheres e homens, mais mulheres de idade, com ar pobre,
vindas de toda a URSS. Podiam finalmente vir, porque tinham acabado com
os passaportes internos. Viajavam de camioneta ou comboio até lá, para saber o que
tinha acontecido a familiares que um dia tinham desaparecido, levados pela
Tcheca, pelo NKVD, ou pelo KGB, as polícias secretas ou autoridades políticas
do regime soviético, sem que nunca mais tenham sabido do seu paradeiro. Pela
primeira vez na vida da URSS, as pessoas podiam vir procurar os seus
familiares, podiam vir a Moscovo porque vinham sem medo e com a esperança
de encontrar vivos os seus familiares queridos.
Percebi então que traziam tudo o que
tinham dos desaparecidos: um documento, uma carta, a data em que foram levados,
ou uma ou outra fotografia. Mantinham acesa a esperança de que ainda estivessem
vivos e que apenas tivessem seguido numa das múltiplas deportações internas dos
povos vários que constituíam a URSS. Era gente pobre e simples, gente comum
vinda de todo o império.
O Movimento Memorial nasceu
para dar nome às vítimas e homenageá-las. Os voluntários que lá estavam a
receber as pessoas na instalação improvisada registavam os seus testemunhos. Era
necessário saber e as famílias tinham esse direito. Para que tamanho horror não
se repetisse, a sociedade também tinha de saber quem tinha morrido nos campos
do Gulag e a razão da sua morte. Se tinham morrido de fome ou de doença,
de tortura ou fuzilamento, ou em trabalhos forçados a construir os canais do
Volga, ou o Metro de Moscovo, ou ainda os descomunais e gigantescos edifícios
que invadiram Moscovo e as capitais das Repúblicas e foram durante anos o
orgulho do regime comunista.
Nessa
altura, os voluntários que lá trabalhavam dia e noite explicaram duas
importantes ideias que os movia: as vítimas do comunismo, muitas
dezenas de milhões, eram até aí apenas números, não tinham nome, nem família,
nem esculturas ou monumentos, eram simplesmente apagadas pelo tempo. Era
preciso devolver-lhes o passado e a memória e conhecer a dimensão e os
responsáveis do maior e mais terrível genocídio que a humanidade tinha
conhecido.
Existiam importantes livros, artigos na imprensa ocidental,
denúncias e numerosos e importantes testemunhos de dissidentes desde 1917. Mas
tudo junto era muito pouco para a dimensão do terror vermelho, muito tolerado e
branqueado nas sociedades ocidentais, por numerosos intelectuais e gente das
elites da cultura, da arte e das universidades, ao contrário das vítimas do
nazismo, assassinadas ou deportadas, mortas, fuziladas nas câmaras de gás de
Auschwitz ou Dachau.
As únicas vítimas do comunismo
recordadas e conhecidas desde o fim do Estalinismo eram os próprios dirigentes
comunistas assassinados durante as diversas purgas estalinistas, como Trotsky, dois terços do comité Central do
PCUS e quase todos os que tinham feito a Revolução de Outubro. Tudo se
resumia, pois, ao reconhecimento do assassinato de membros do Politburo, do
Comité Central e, mesmo esses, nenhum era da época de Lenine. Todas as dezenas
de milhões de todos os povos da URSS mortos pela repressão tinham sido apagadas
da História. Desapareceram, esquecidos e, mesmo, negados.
Por isso, o Movimento Memorial tinha
decidido, logo nesses tempos iniciais, dar corpo a um primeiro monumento muito
simbólico e tocante às vítimas do comunismo. O monumento, constituído por uma
grande pedra vinda do Mosteiro Ortodoxo de Solovki, numa ilha no Báltico, foi
colocado na Praça Lubianka, no coração de Moscovo, onde os bolcheviques desde
Lenine e Dzerjinski instalaram a Tcheka, a famosa polícia política secreta
soviética, mais tarde NKVD e, posteriormente, KGB. Aí, funcionou não só o
serviço da polícia secreta soviética, como uma prisão de tortura, onde foram
fuzilados muitos resistentes ao totalitarismo comunista.
Essa pedra veio do primeiro campo de “trabalho correctivo”, ou campo
de concentração mandado abrir por Lenine, no que foi o início do triste caminho
para milhões de mortes no Gulag. A pedra
veio do Mosteiro transformado em prisão logo após a revolução. Sabe-se que,
quando foram conhecidos no Ocidente, os fuzilamentos que ocorriam nesse antigo
mosteiro ortodoxo e surgiram algumas críticas aos bolcheviques, Lenine enviou
como emissário para branquear a sua imagem e a da prisão o escritor Máximo
Gorki que escreveu algumas das páginas
mais negras da literatura mundial, descrevendo a beleza do local e das suas
paisagens, para escândalo de Thomas Mann.
Esse
monumento ainda hoje lá está, apesar da proibição do Movimento Memorial. Putin e o seu KGB ainda não tiveram coragem
de o retirar e de no dia a seguir ao anúncio do Nobel terem
decidido confiscar todos os seus bens e instalações.
O
trabalho que desde esses dias realizaram foi notável. Em Moscovo, estão na
origem do Museu de História do Gulag, excelente para se perceber o que foi, que
dimensão teve e quanto durou cada campo. Só assim se pode quantificar as
vítimas, mas sobretudo dar-lhes nome e mostrá-las.
O
Museu do Gulag é do melhor que hoje se faz em Londres ou nos Estados Unidos e
está no seu fundamental disponível na internet. Baseado na mais moderna
tecnologia e recursos interativos, conduz-nos a esse horror de milhões de
vítimas. Recordo que não há muitos anos o visitei com familiares e amigos e a
meio da visita parámos no café do Museu para ganhar coragem para ver o resto.
Instalaram-no junto à Praça Vermelha num local pouco visível e esteve sempre
fora das agências de turismo russas. Foi sempre mais fácil encontrar um
“Lenine” para com ele tirar uma selfie, do que a porta do Museu do
Gulag.
Com
muitas dificuldades, sobretudo depois de saída de Ieltsin, os voluntários do
Movimento recolheram milhares de depoimentos de testemunhas, descobriram
lugares e marcas de campos de morte e de trabalhos forçados por baixo de anos
de neve, digitalizaram e filmaram, organizaram arquivos e puseram-nos ao
serviço do “dever de memória”. Estudaram e digitalizaram os arquivos da polícia
secreta e os milhões de papéis dos arquivos dos campos e tornaram essa
informação acessível.
A
partir dos seus registos e com a sua ajuda fizeram-se, e fazem-se filmes,
documentários, escreveram-se muitos e importantes livros, como
o Sussurros, de Orlando Figes, que editei em 2010, escrito em colaboração
com o Movimento Memorial, sobre o quotidiano da vida na União Soviética de
famílias e pessoas ao longo dos 60 anos de comunismo. Escreve ele: “O sistema soviético
exerceu a sua influência na esfera moral da família durante três quartos de
século; nenhum outro sistema totalitário teve um impacto tão profundo na vida privada
dos seus cidadãos – nem sequer na China comunista (a ditadura nazi, que é
muitas vezes comparada ao regime comunista, durou apenas 12 anos).“
Este
dever de memória é uma atividade fundamental num Estado de Direito e
particularmente em países que viveram sob regimes totalitários comunistas que
sempre negaram e apagaram a História.
Não
foi só o Holodomor na Ucrânia,
nem Katyn na Polónia, foi o
próprio Gulag, com os seus
múltiplos campos de concentração, considerado por muitos um devaneio louco
de Estaline, enquanto Secretário-Geral do Partido Comunista da URSS, que, para
vergonha nossa e descaramento sem nome, era desconhecido há poucos anos da Directora
do Museu da Resistência de Lisboa, ex-deputada comunista.
Como
dizia um cartaz de dissidentes, servindo-se do típico humor russo, que comprei
na rua Arbat em Moscovo: “O futuro é glorioso e científico; o passado
a Deus pertence.” E no
que respeita às vítimas do comunismo, o passado foi sempre branqueado e
apagado. Ainda recentemente, Francisco Louçã fez troça de quem recordava o
horror das vítimas do Holodomor, nomeadamente dos casos de canibalismo, na
tristemente célebre Fome decidida pelo Partido Comunista da URSS contra os
ucranianos, entre 1932 e 1934, e que matou milhões de conterrâneos de Zelenski.
O Movimento tem um património de
memória histórica precioso e muito importante para recordar e homenagear todas
essas vítimas. Tem uma actividade notável e meritória, respeitada pelos
investigadores universitários de todo o mundo e por todos os que desejam
conhecer no seu todo a banalização do mal que tanto marcou a história do século
XX na Europa ocidental e que ainda hoje são poder em grande parte do mundo.
Foi
assim que na Rússia actual se agravaram as políticas de desrespeito pelos mais
elementares direitos humanos, se multiplicam os atentados contra a liberdade e
que o Memorial abriu uma segunda frente de atividade: a luta pela democracia, a
liberdade e os direitos humanos na Rússia de Putin.
Há
um ano, o Memorial foi proibido de exercer a sua atividade e, agora, no dia em
que se anuncia o Prémio Nobel da Paz, um tribunal russo decidiu confiscar as
instalações da organização. Não vai confiscar a memória que o trabalho imenso
realizado pelo Movimento Memorial realizou ao longo de todos estes anos e, em
muito boa hora, homenageado e anunciado em Oslo, capital da Noruega, pelo
Comité Nobel.
O
passado comunista da Rússia já não pertence, como ironizavam os dissidentes
comunistas, a Deus. O futuro, esse, sim, ainda está carregado de incertezas.
PRÉMIO NOBEL CULTURA COMUNISMO POLÍTICA
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COMENTÁRIOS: Todos 31
Carlos Chaves: Caríssima
Zita Seabra, expresso-lhe o meu profundo agradecimento por este e por todos os
outros testemunhos que nos tem trazido, muitos deles vividos na primeira pessoa
de quem já foi uma fervorosa comunista, e que em boa hora se arrependeu de ser
um membro activo desta destruidora e assassina corrente política. Rui Lima: Houve muitas desgraças no mundo , mas a maior de todas foi o
comunismo Vitor
Batista > Américo Silva: Nunca
foste outra coisa, e ganha vergonha, desaparece, em vez de o desejares a
outros. Fernando
CE: Muito bom. Parabéns. Não a todos os
totalitarismos. Lembro-me numa (única) viagem à Rússia em 2005, no avião de
regresso sentado ao meu lado um indivíduo ter-me referido que durante a URSS,
para visitar um amigo ou familiar numa cidade tinha de se pedir autorização por
escrito às autoridades. A URSS era um imenso Gulag. José Pinto de Sá
> bento guerra: Não há nem nunca houve melhores testemunhas do horror comunista do
que os que acreditaram nele e o praticaram. Francisco Marnoto >
Américo
Silva: Nunca
foste mas foi outra coisa! Afinal o que te incomoda é a Zita Seabra e não os
Gulags do camarada Stalin onde sofreram e morreram milhões de seres humanos. Rui Lima: Houve muitas desgraças no
mundo mas a maior de todas foi o comunismo quando comparamos com o nazismo
vemos que fez muito mais vítimas, porque atingiu muito mais gente e dura há 100
anos , o nazismo foi poder por uma dezena de anos e foi muito . Sem
o comunismo teríamos tido um mundo muito melhor, África não seria a desgraça
que é, América Latina seria uma zona rica, quando alguém terá coragem de
no programa escolar introduzir o que foi o comunismo em toda a sua dimensão? Censurado sem
razão: Mas em Portugal putin não é comunista e o PCP e BE são partidos
democráticos que jamais pretendem instituir um regime ditatorial à imagem da
união soviética. O PS, constituído pelos maiores filhos da dita que alguma vez
existiram, normalizou seres abjetos imorais e vis. Muito agradeço esta sua crónica, que devia ser publicada e lida por todos. O socialismo
é vil. Matou mais de 100 milhões em todo o mundo. Ainda hoje faz vítimas mas
cativa o povo. Vamos lá entender isto. Mas o chega, o chega senhores. Esse
partido fascista é que é o perigo para a sociedade. José Manuel
Pereira: Excelente testemunho histórico
por quem não diz palavras vãs, por quem aprendi a respeitar e ouço com atenção
porque aprendo sempre alguma coisa.
João Floriano: Excelente e impossível de
rebater. Carlos
Quartel: A história das atrocidades
comunistas está bem documentada e a autora tem obrigação de o saber, O que ela
se deve perguntar é sobre a razão por que foi comunista, como foi aliciada para
semelhante aberração, que a levou a fazer figuras tristes e ridículas, tais
como andar a mobilizar estudantes imberbes para a chamada "defesa do
25A". Quanto ao estrago do comunismo, o resultado está à vista. Putin e os
oligarcas existem porque a cabeça do cidadão russo ainda está cheia de ganga
comunista. Ainda tem muito de rebanho, não sente a necessidade de liberdade
individual, não tem projecto pessoal, é uma massa manipulável que foi incapaz,
na janela de Yeltsin, formar clubes de opinião, partidos políticos normais,
projectos diferenciados de sociedade, nada de nada. Somente uma corrupção
endémica, uma ausência total de valores, uma corrida ao dinheiro e aos sonhados
bens do Ocidente. E continua a convicção da superioridade moral, de povo
especial, rodeado de inimigos que querem a sua extinção. A invasão da Ucrânia
só é possível explicar pelo aproveitamento de Putin dessa convicção. Sorte Vicente > Maria
Augusta Martins: Portanto, você vive bem com o Gulag e seus milhões de mortos. O
seu problema é a mudança de lado e de opinião da Zita. Só os burros é que não
mudam. Mario
Guimaraes: Não entendo como esta gente já com idades
avançadas descobrem o que toda a gente com 2 dedos de testa sabia. O Milhazes
tirou dividendos da URSS e agora é o seu pior inimigo. Esta era uma feroz
comunista que esquartejava tudo e agora só pensa nas vítimas. Quando se ganha
juízo muito tarde não sei se é verdadeiro. Descambam com muita facilidade. É só
terem oportunidade. Os cérebros totalitários são assim.
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