terça-feira, 25 de outubro de 2022

Puxando pelos galões (invisíveis, estes)


Em matéria de avisos, eu também avisei, em tempos, embora por motivos diferentes, mas que descambaram no mesmo cenário de retorno às origens, do provocado pelo actual “desmembramento” ecológico. Foi no final de uma peça teatral – “Exercício Escolar” (“Cravos Roxos” - 1981) a respeito dos cenários catastrofistas – na altura mais particularizados, e ditados por iras pessoais perfeitamente banais. Hoje as tendências críticas são de maior amplitude catastrofista, pois que generalizada ao mundo inteiro. Mas reponho aqui os avisos do final de “Exercício Escolar”, de percepção redutora similar à dos avisos de JOSÉ DIOGO QUINTELA:

“CORO DO PARTIDO:

«Neste país transformado

Por revolução de flores

Que aniquilou prepotências

E irmanou ricos e pobres

Trabalhadores e gestores

Num ideal renovado

De comum realização

Só se escuta o martelar

Dos malhos dos ferradores

Dos maços dos calceteiros

E os gritos dos operários

E os olés dos boieiros

E o chocalhar das ovelhas

E os protestos dos doutores

E os risos dos proletários

E os discursos partidários

E o gorjear dos cantores.

Pelas ruas transformadas

Em caminhos pedregosos

Onde as flores são espontâneas

E os frutos tão saborosos,

Brotam as almas mais cândidas

E os sentimentos mais soltos.

Eis a mensagem, senhores,

Da nossa festa das flores. (Assim fenece a farsa).

Mas a tragédia é para continuar.

Não queria dizer “eu avisei”

Os sacrifícios que nos impõem são luxuosas sinalizações de virtude sem influência no clima, são mais penitência pública do que acção concreta.

JOSÉ DIOGO QUINTELA Colunista do Observador

OBSERVADOR, 25 out 2022, 00:192

Mas eu avisei. Agora que o Inverno se aproxima e começa-se a sentir o aumento dos preços da energia, é tempo de recordar que, logo em 2012, numa crónica engraçadamente chamada “O Fim do Mundo em Sunga”, escrevi isto: “Duvido que a humanidade tenha capacidade de destruir um planeta que já passou por tanto. Não duvido é da capacidade de se autodestruir. Basta conseguir, como deseja quem esteve no Rio de Janeiro, que a comida, a energia e os transportes encareçam absurdamente, condenando milhões a viverem pior do que hoje vivem. Os efeitos das alterações climáticas não são tão maus para as pessoas quanto os efeitos deste empobrecimento forçado”.

Já em 2015, numa crónica engraçadamente chamada “Isto é um suponhamos”, a propósito de cataclismos naturais, tinha escrito: “Considerando isto tudo, não será melhor, quando a Protecção Civil ordenar: «Metam-se nos carros e fujam para a montanha!», não termos de responder: «Como, se a gasolina está a 6 mil euros o litro, pá?»”

Ainda nesse ano, sobre a Conferência de Paris, numa crónica engraçadamente chamada “A instauração do Climafado”: “Mas admitamos que o Co2 é o culpado e que o corte das emissões é aplicado por todos os países da União Europeia. Reduzir as emissões até 2030 e mantê-las assim até 2100 teria um impacto de 0,017°C no aumento de 2°C que está previsto caso não se faça nada. Contextualizando: no montanhismo, por cada 100 metros de escalada, a temperatura desce 1°C. Logo, 0,017°C equivale a 1,70m. Ou seja, 0,017°C é a diferença de temperatura entre a minha cabeça e os meus pés. Portanto, se a Europa acabar com energia, transportes e comida baratos, enfim, aquilo que continua a tirar milhões da pobreza, o impacto na temperatura é o equivalente a eu despir as peúgas”.

Dois anos mais tarde, numa crónica engraçadamente chamada “Não há petróleo? Usem eólica!”, afirmei: “Não é o aquecimento global que é perigoso, é o aquecimento das casas. No nosso país, só em Janeiro, morreram 8 pessoas a aquecerem-se. Por causa do preço da energia, há quem use lareiras mesmo por necessidade e não como cenário do Instagram. Em Portugal ainda se falece por intoxicação com fumo ou por incêndio. A reacção entre carbono e oxigénio que mata não é a que cria o dióxido de carbono, é a do monóxido de carbono.

Em África, onde a energia é ainda mais escassa e mais cara, milhões dependem de fogueiras para aquecimento e para cozinhar. Se bem que, às vezes, mais valia não cozinhar nada: sem electricidade para ter um frigorífico, a comida costuma estar estragada.

Com as restrições ao uso de combustíveis fósseis, essas pessoas sofrem privações energéticas que nós, que ficamos angustiados quando a bateria do telemóvel está a menos de 20%, nem imaginamos. Tudo porque há quem ache que a humanidade deve uma penitência à Mãe Gaia, pelo seu estilo de vida ofensivo (também conhecido por ‘escapar à pobreza’). O Ocidente, já de barriga cheia, é a Maria Antonieta da energia. Não há petróleo? Usem eólica!”

Também em 2017, numa crónica engraçadamente chamada “O sagrado e o propano”, notei: “Se calhar, ouviu falar do que se passou recentemente na Austrália do Sul, onde houve várias interrupções no fornecimento de electricidade. Sucede que isso se passou no meio de uma onda de calor. Sucede, também, que a Austrália do Sul se orgulha da sua política energética, toda ela à base de eólica. Sucede, por fim, que, durante a onda de calor, não houve vento durante as horas de maior canícula. Portanto, quando as pessoas mais desejavam ligar o ar condicionado, faltava electricidade.

A energia renovável tem essa maçada de ser intermitente e não se aguentar sozinha. É sempre preciso uma fonte alternativa que possa suprir as falhas. E a Austrália do Sul não só desdenhava da sua central a gás, como tinha acabado de fechar a sua última central a carvão. Sem um backup, normalmente à base de combustíveis fósseis, as renováveis falham. É como uma bicicleta com rodinhas. Os australianos resolveram tirar as rodinhas antes de terem a certeza de que sabem pedalar. Espatifaram-se.

Uma das razões do blackout foi o vento não ter soprado tanto quanto se previa. Ou seja: querem-nos fazer usar uma fonte de energia que depende de previsões meteorológicas de curto prazo em que não conseguem acertar, por causa de previsões meteorológicas de longo prazo em que não têm dúvidas que acertaram.

(…)

Quando se resolver a questão da intermitência e armazenamento das renováveis, tudo bem, acabe-se com o resto. Até lá, não faz sentido prescindir de energia acessível e barata. Era como se, um dia depois de Gutenberg inventar a imprensa, acabassem com os gansos, porque nunca mais se iria escrever com penas.

Há 4 anos, numa crónica engraçadamente chamada “O último relatório apaga a luz”, declarei: “O IPCC quer reduzir drasticamente as emissões de CO2 e propõe que se encareça os combustíveis fósseis até se tornarem incomportáveis. Assim, da próxima vez que um vendaval destruir uma casa, o dono já não fica aborrecido por não conseguir acender a luz. A electricidade vai estar tão cara que ele vai preferir avaliar os estragos andando às apalpadelas pelos escombros. A não ser que tenha tido sorte e o telhado tenha voado: nesse caso, tem luz natural.

(…)

Além de que isto de querer acabar com a electricidade barata e acessível como forma de, numa próxima tempestade, não ficar sem electricidade barata e acessível, é esquisito. No fundo, está-se a propor uma maçada permanente como solução para acabar com uma maçada temporária. É a mesma coisa que amputar a mão para acabar com a chatice de ter de cortar as unhas.”

Chegamos a 2019. Em Fevereiro escrevi isto numa crónica engraçadamente chamada “O termóstato humano”: “Basta aplicar o Acordo de Paris que, através de um encarecimento brutal da energia, limitará a 1,5°C o aumento da temperatura desde o fim do séc. XIX.

A questão é: para quê? É melhor ter apenas 1,5°C a mais, mas não ter dinheiro para ligar uma ventoinha? Ou é preferível que temperatura suba mais um bocado, mas haja ar condicionado em casa e nos transportes, frigoríficos, carros para nos levar à praia e computadores com Internet, para podermos ir ao Twitter insultar quem não acredita que o aquecimento global é culpa da humanidade?

É que a descarbonização exigida pelo Acordo de Paris vai acabar com a energia acessível e abundante. Energia essa que nos protege, justamente, dos cataclismos que, dizem, o aquecimento global já está a provocar. A diferença entre a aplicação ou não do Acordo é a mesma diferença entre os efeitos de um furacão na Florida e de um ciclone no Bangladesh: em ambos as populações põem-se em fuga, mas a forma como conseguem fugir é que é distinta. Na Florida é de carro em auto-estradas de 5 faixas; no Bangladesh é a pé por caminhos de lama. Quando não falecem nestas condições miseráveis (mas ecológicas), os bengalis vivem com um gasto energético virtuoso, próximo do que os proponentes do Acordo de Paris consideram ser o adequado para nós. Daí que, quando sai uma notícia a dizer que Portugal é o 5º país da Europa onde é mais difícil aquecer a casa, na realidade quer dizer que somos o 5º país da Europa que melhor descarboniza. Parabéns a nós.

(…)

Sempre houve cheias, tornados, secas e outros fenómenos climáticos extremos. E vai continuar a haver. A diferença é que agora temos mais e melhores meios para nos defendermos. Pelo menos enquanto não acabarem com eles: parece que a estratégia para nos protegermos dos cataclismos é deixar de usar o que nos protege de cataclismos. É como se Noé reunisse a família e anunciasse:

– Malta, falei agora com Deus. Parece que a Humanidade está a ser parva, de maneira que Ele vai mandar uma borrasca e disse para construirmos uma arca e meter lá os bichos todos.

– Vou buscar o serrote! – diz um dos filhos de Noé.

– E eu o martelo e pregos! – diz o outro.

– Nada disso – diz Noé. – Vamos cortar a madeira com golpes de karaté e colá-la com saliva.

– Isso é estúpido – dizem os filhos.

– Não, isso é transição energética – diz Noé.

– Vou ensinar os animais a nadar – diz a mulher de Noé.”

Nesse Março, numa crónica engraçadamente chamada “Leva um agasalho que estão alterações climáticas, filho!”, insisti: “É má ideia substituir à bruta uma energia barata e acessível por outra que, por enquanto, não dá garantias de conseguir alimentar o consumo energético necessário para continuar a tirar e manter pessoas fora da pobreza. As energias renováveis serão o futuro, mas, por agora, por ainda serem intermitentes e pouco fiáveis, não dão segurança. Seja a eólica, a solar ou outra que surja entretanto, como o aproveitamento da potência gerada pelo grupo de indignados das redes sociais quando martelam vigorosamente no teclado. (Calma, não comecem já. Essa tecnologia ainda não foi inventada).

E, em Agosto, numa crónica engraçadamente chamada “Alterações de Gretas suecas”, voltei à carga: “Quando entrar na baía de Nova Iorque, a primeira coisa que Greta verá vai ser a Estátua da Liberdade, tal como tantos emigrantes antes dela. Na altura, vinham em barcos lotados, fugindo à pobreza, à fome e à falta de recursos. Justamente as condições de vida que, num iate de luxo, Greta vem agora propor.

Durante mais de 100 anos, a Estátua saudou quem chegava, erguendo alto a sua tocha. Para os emigrantes pobres, a tocha representava um ideal, a liberdade. Para esta activista rica, a tocha também representa um ideal, o de um mundo iluminado pelo fogo, em vez de pela electricidade. Sorte tem o Frank Sinatra, que já morreu. Se Greta conseguir apagar as luzes, Nova Iorque vai deixar de ser a cidade que nunca dorme e a canção deixará de fazer sentido.”

Um mês depois, numa crónica engraçadamente chamada “Independência (excepto para gestão florestal) ou morte!”, assinalei: “São estas pessoas que desejam energias renováveis, mas não admitem que se extraia o lítio necessário para as baterias que vão, lá está, renovar a energia. Esta campanha contra o lítio é ainda mais bizarra por ser também um medicamento usado no tratamento do transtorno bipolar e estes activistas tanto estarem excitados com a transição energética, como deprimidos com o que é preciso para a fazer.”

Ainda antes do fim desse ano, numa crónica engraçadamente chamada “Greta entre os doutores”, disse: “Tudo o que Greta Thunberg deseja que se faça para combater as alterações climáticas redunda no empobrecimento dos países em vias de desenvolvimento, a quem querem limitar o acesso à energia barata e abundante com que Greta foi criada, mas que agora não lhes quer dar. É o novo colonialismo. Antigamente, o Ocidente queria impor aos selvagens o seu modo de vida à bruta, porque era o melhor. Agora, o Ocidente quer impedir que os selvagens tenham o seu modo de vida, também à bruta, porque é o pior.”

No ano seguinte, numa crónica engraçadamente chamada “Living la IVA loca”, quis que ficasse registado que: “Deixar o IVA como está não é ser só contra a iluminação, é ser contra o iluminismo. Usar menos electricidade por causa do clima é superstição, uma espécie de sacrifício para aplacar os elementos. Só não é o equivalente a auto-flagelação, porque a auto-flagelação ao menos aquece.

(…)

A única ocasião em que dificultar o acesso à electricidade faz bem à saúde é quando a pessoa em questão é um condenado à cadeira eléctrica. De resto, a electricidade dá muito jeito, principalmente num país em que, apesar do clima ameno, se morre de frio com bastante frequência. Por causa da pobreza. Ou, como se diz agora, eficiência energética. Há pouca gente mais eficiente energeticamente do que uma pessoa com frio, que até respira mais devagar e por isso emite menos CO2. E não há mesmo ninguém carbonicamente mais neutro do que um defunto”.

Chegado a 2021, numa crónica engraçadamente chamada “Quando até a Cimeira do Clima é anticlimática”, expus: “Se, no final do século XIX, tivéssemos abdicado à partida da energia abundante, acessível e barata, não estaríamos nesta situação. Não teríamos carros, aviões, cargueiros e comboios. Nem vacinas. Nem os antibióticos e medicamentos que salvam crianças. Não teríamos fertilizantes sintéticos que alimentam milhões. Não teríamos levado um homem à Lua. Não o teríamos trazido de volta. Não teríamos Internet, televisão, cinema ou telemóveis. Não teríamos electrodomésticos. Não teríamos luz a qualquer hora. Não teríamos aquecimento e refrigeração instantâneas.

E ainda bem. Porque é por termos estas coisas que nos reproduzimos em excesso e não morremos tão facilmente, contribuindo para a sobrepopulação do planeta. Egoisticamente, optámos pelo aumento da produção alimentar, pela saúde, pela baixa mortalidade infantil (era 40% em 1880, agora é 3,4%, no mundo inteiro), pela longevidade (esperança de vida era 42 anos em 1880, agora é 72), pela riqueza (o PIB per capita era de 1498 dólares em 1870, em 2016 eram 15.212 dólares) pelo bem-estar de cada vez mais de pessoas. Mas não valeu a pena, pois perdemos a temperatura média perfeita.”

E há poucos meses, numa crónica engraçadamente chamada “Ainda gás de cá vir!”, conclui: “Exortados por jeremiadas como as do beato Guterres, os fanáticos religiosos estão dispostos a embarcar em vários tipos de exageros para evitar um suposto apocalipse. Criando, com esses exageros, uma situação bem pior que o suposto apocalipse. Que é o que vai acontecer já este Inverno, com pobreza energética a causar piores consequências do que as do aquecimento global. Já para não falar das consequências do aquecimento global que deixamos de conseguir combater por faltar energia para ares condicionados durante ondas de calor, aquecimento durante vagas de frio, bombas de água durante cheias ou depósitos de carros para fugir de incêndios.”

Eu não avisei? Nos últimos anos, padecendo de uma monomania muito maçadora para leitores, editores, colegas, familiares e amigos – sobretudo em confraternizações que metem álcool, quando pareço um disco riscado de anedotas ordinárias sobre meteorologia – tenho vindo a repetir que as respostas suscitadas pela preocupação paranóica com as alterações climáticas (com a proibição das energias fiáveis, baratas e acessíveis) acabariam num encarecimento brutal da energia, justamente numa altura em que precisamos dela para mitigar os efeitos das alterações climáticas.

Porque elenco aqui estas crónicas todas em que, ao longo dos últimos anos, tenho vindo a dizer que a junção de histerismo climático com ludismo e com malthusianismo e com fervor religioso vai tornar-nos a todos mais pobres? E que os sacrifícios que nos impõem são luxuosas sinalizações de virtude sem influência no clima, são mais penitência pública do que acção concreta? Não é para mostrar que sou uma Cassandra que inventa títulos com trocadilhos bem esgalhados. Quer dizer, não é só para isso.

É porque, mesmo sabendo que não devia ser motivo de orgulho, não consigo deixar de sentir uma certa vaidade por ter acertado em cheio. É uma vaidade que dá um quentinho por dentro. E, agora que os dias começam a ficar frios, esse é o único quentinho barato a que tenho acesso. Vou aproveitar.

ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS   CLIMA   AMBIENTE   CIÊNCIA

COMENTÁRIOS:

S. Belo: il verso e il rovescio" !  Mudar este velho mundo à  força  sem contar com a reação? Bom trabalho, José Diogo Quintela.  Parabéns

Ausenda Rodrigues 👏👏👏: Sempre lúcido e a utilizar uma ferramenta já antiga chamada, ai, nem me lembro do nome...ah sim  " bom senso". Obrigada. 

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