Talvez todos nós tenhamos a nossa dose
de culpa, como já demonstrava Sá de Miranda, na sua “Écloga Basto”, a respeito
de uns conselhos que Bieito dá ao seu amigo Gil, fugido nas serras, ao convívio
da sua aldeia, em marca de superioridade pessoal que a história que lhe conta
Bieito, para o demover dessa sua busca de solidão, pretende atalhar, provando
que o provérbio “Maria vai com as outras” é o mais grato ao nosso comodismo:
«Come
de toda a vianda,
não andes nestes entejos;
não sejas tam vindo à banda,
tem-te às voltas co's desejos:
anda por onde o carro anda.
Vês como os mundos são feitos:
somos muitos, tu só és;
por isso, em todos seus geitos,
um esquerdo antre direitos
parece que anda ao revés.
Dia de maio choveu:
a quantos a água alcançou
o miolo revolveu;
houve um só que se salvou,
que ao coberto se acolheu.
Dera vista às semeadas,
as que tinha mais vezinhas;
viu armar as trovoadas,
acolhe-se às bem vedadas
das suas baixas casinhas.
Ao outro dia um lhe dava
paparotes no nariz,
vinha outro que o escornava;
aí também era o juiz,
que se de riso finava.
Bradava ele: - Homens, estai!
iam-lhe co dedo ao olho.
Disse então: - E assi che vai?
Não creo logo em meu pai,
se me desta água não molho.
Apaixonado qual vinha,
achou num charco que farte;
o conselho havido o tinha:
molhou-se de toda a parte,
tomou-a como mèzinha.
Quantos viram lá correram:
um que salta, outro que trota,
quantas graças i fizeram!
Logo todos se entenderam:
ei-los vão numa chacota.»
«Nota: o excerto segue a versão de Rodrigues Lapa (Sá da Costa, 1942).»
Não, apesar de muitos se julgarem
diferentes, bem no fundo somos da mesma cepa, acomodados, burlões, trocistas,
vaidosos, mesquinhos, convictos da nossa superioridade, preferindo troçar a
atalhar os erros, desistentes, pois. E o medo nos move hoje, mais do que nunca.
Mas também com poder de análise e sabor crítico, como o demonstra Paulo Tunhas.
E fiquemo-nos por aqui, condenando os outros, antes que nos condenem a nós.
Um romancista chamado Portugal
Uma inverosimilhança aqui ou ali até
pode fazer sentido, mas uma inverosimilhança que tudo permeia dificilmente o
fará. O romance que Portugal nos propõe não aguenta uma leitura de uns poucos
minutos.
PAULO TUNHAS
OBSERVADOR, 13
out 2022, 00:1912
Tenho
dado comigo muitas vezes, de há algum tempo para cá, a evitar pensar sobre
Portugal. E, devo dizer, a maior parte das vezes com sucesso. Não pareço ser,
de resto, caso único. Ainda no outro dia, falando ao telefone com um amigo, ele
me contou que, tendo o filho, que vive na Alemanha, vindo passar uma semana a
Lisboa, nem por uma só vez a pátria foi objecto das suas conversas. E podia
citar outros exemplos assim.
Deve
haver uma razão para isto. Por mim, descubro-a numa analogia. É como se
Portugal se tivesse transformado num escritor medíocre, incapaz de dar à luz um
livro que não nos caia das mãos logo à segunda ou terceira página. A cada
nova obra que sai, muito publicitada em jornais, rádios e televisões por críticos
profissionais que assim ganham a vida, já sabemos aquilo com que podemos
contar: estilo péssimo e enredos estapafúrdios povoados de personagens
inverosímeis. É verdade que há um público leitor que se satisfaz com a
horrenda literatura que quotidianamente lhe é oferecida. Mas é um público
que, na sua maioria, sofre de analfabetismo abecedário e se extasia, em
consequência, com o analfabetismo doutoral que o autor Portugal lhe oferece.
Portugal,
como autor, imita uma sociedade. E
imita-a muito mal. Ao ponto de ser difícil aos leitores saber se estamos face a
uma tragédia ou a uma comédia. O leitor não sabe se se deve rir ou
comover-se. Se deve gozar com o que lhe é contado ou entristecer-se com o seu
destino. Isto, como se calculará, mergulha o público num estado de
perplexidade. Porque é de nós mesmos que o romance fala. Devemos chorar ou
rir de nós?
Lá
haver enredo, há. E as peripécias repetem-se. O assalto ao paiol de Tancos, a
destruição da serra da Estrela, a nacionalização da TAP e a promessa recente da
sua venda, as trapalhadas do ex-ministro Cabrita – entre várias outras, de
diversos tipos. Mas, face às peripécias, as personagens parecem comportar-se
como se nada tivesse a ver com elas. O autor do romance inocenta-as
inteiramente. É isso, de resto, que baralha muito tudo. Porque, para haver
tragédia, seria preciso que as personagens dessem um sinalzinho que compreendem
o que lhes acontece. Mas tal falta por completo. O ex-ministro Azeredo
Lopes declarou não saber se tinha havido assalto ou não. A ministra Mariana
Vieira da Silva disse que daqui a dez anos a serra da Estrela estará um
brinquinho. A secretária de Estado Patrícia Gaspar falou de um algoritmo que
nos mostra que a dita serra da Estrela teve uma sorte dos diabos. Nem Costa nem
Pedro Nuno Santos se deram ao trabalho de explicar porque é que da
nacionalização da TAP se passou à proclamação da necessidade da sua venda. O
ex-ministro Cabrita não se deu conta de nada do que lhe aconteceu – e
aconteceram-lhe, como se sabe, muitas coisas. Não há mesmo reconhecimento
nenhum. Nenhuma pancada na testa a dizer: “o que é que eu fui fazer!” Por aqui,
estamos mais próximos de uma comédia do que de uma tragédia. “Aconteceu? Não me
digam!”
A atmosfera geral é de inverosimilhança. Porque é
que uma coisa acontece e não outra? Mistério. Falta absolutamente qualquer
percepção de unidade no desenrolar dos acontecimentos. Tudo é episódico e inconsequente, sem que o autor
sinta a mínima necessidade se sugerir razões, por vagas que sejam, para a
sucessão dos factos. O romance não obedece a nenhum plano, é perfeitamente
informe. Se, de repente, o autor decidisse introduzir nele um acontecimento
excepcionalmente fantástico, como a aparição da Virgem em plena Assembleia da
República, no meio de uma reprimenda de Augusto Santos Silva ao Chega, ninguém
acharia nada de estranho na coisa. Apesar de tudo, porque não? Dada a
inverosimilhança generalizada da obra, a aparição da Virgem arriscar-se-ia
mesmo a passar despercebida ao leitor. Uma inverosimilhança aqui ou ali até pode
fazer sentido, mas uma inverosimilhança que tudo permeia dificilmente o fará. O
romance que Portugal nos propõe não aguenta uma leitura que dure por mais de
uns poucos minutos.
As
personagens estão, é claro, à altura do enredo. Cumprem, é verdade, a sua
missão fundamental: agem. Mas o pensamento e o carácter revelados pelas suas
acções não são menos fantásticos do que o enredo. Conhecem, em toda a
história da literatura, personagem mais radicalmente inverosímil do que a de
Marcelo Rebelo de Sousa? Tentem fazer desfilar, no vosso espírito, todas as
grandes personagens romanescas que os maiores génios literários elaboraram.
Haverá alguma mais literalmente inacreditável do que ele, no pensamento e no
carácter? Eu perdi algum tempo com o exercício e confesso que não lhe encontrei
par. Querem exemplos? É fácil: pensem, em qualquer altura, na última coisa que
ele disse, ou na última coisa que se lembrarem que ele disse. Vão ver que serve
às maravilhas, como esta sobre as vítimas de pedofilia na Igreja. Não falha.
E
o público, como reage ele a tais enredos e personagens? Tirando os críticos
profissionais, aficionados por necessidade, e os poucos leitores por eles
engendrados, com a mais soberana das indiferenças. Não esperem que o comum
siga as paixões tradicionais do género, como o terror de se imaginar no lugar
das personagens ou qualquer piedade pelo seu destino. Reina, pelo contrário, a
apatia mais extrema. Há, apesar de tudo, certas exigências que até o mais
desprevenido cidadão faz à ficção.
Há, no entanto, um domínio em que o
Portugal romancista mostra algum talento, tanto na construção do enredo como na
criação das personagens. É aquele que se exerce na imitação de uma sociedade
feita de crimes pequenos e mal feitos, com choro, ciúme, facadas e sangue, baba
e ranho. Aí, Portugal, o romancista, consegue um auto-retrato eficaz. Pena é
que as suas obras no capítulo sejam apenas publicitadas sob pseudónimo na CMTV.
É pena porque há mais verosimilhança aí do que no resto da literatura que
Portugal escreve.
POLÍTICA GOVERNO ESTADO DA NAÇÃO
COMENTÁRIOS:
José Manuel Pereira: Excelente artigo. Deixou de haver "adultos na sala"... Carlos Quartel: Vejo o quadro ainda mais negro.
E vejo-o não só em Portugal, como vejo a abulia, o desinteresse pela coisa
pública a alastrar, por esse mundo fora, enquanto cresce o egoísmo e os universos
de cada um se tornam cada vez mais pequenos. Acararam-se as tertúlias,
praticamente não se lê, a escola anda mais preocupada com as casas de banho e
as escolhas de sexo dos alunos do que com a entrega de um pacote de
conhecimentos, com uma formação cívica saudável, com os grandes princípios da
verdade, da liberdade. da solidariedade, da decência como elementos base.
Redes sociais,
assuntos alarves, mexericos e futebol tudo fornecido por telefones, que irão
provocar uma geração de cegos, pelo esforço para ler os minúsculos textos.
E uma geração de dactilógrafos
.......... Está aberto o caminho para a imbecilidade geral .... Alexandre de Sousa – Actor: Como sabe, Portugal nunca foi
romancista, porque não sabe ler nem escrever, há quase novecentos anos. E isso
é responsabilidade da Casta e não do povo. Sérgio:
Absolutamente
brilhante e delicioso! Há muito que desisti deste penico muito mal
frequentado e pestilento e nauseabundo e "orgulho" foi coisa que
nunca me ocorreu!!!!!!! João Floriano: Devemos chorar ou rir de nós?
Tem dias! Hoje a crónica de
Paulo Tunhas está genial. Ri com muito gosto sobre a aparição de Nossa Senhora
de Fátima na Assembleia da República se bem que a haver nova aparição esse
seria o local mais apropriado: o quarto pastorinho já lá está. Não consigo
compreender a dificuldade do articulista em classificar o «género literário»
que melhor se adapta à presente situação. sem qualquer dúvida é uma tragédia
grega com a unidade de acção (as desgraças são sempre as mesmas praticadas
pelos mesmos e quem sofre são também sempre os mesmos do costume), unidade de
tempo (os anos vão passando mas parece
que estamos prisioneiros numa bolha) e unidade de lugar (entre S. Bento e
Belém). Não falta o coro, a comentar e avisar sobre a desgraça iminente e
temos ainda as máscaras, fundamentalmente de pau. Há-as para todos os tipos e
gostos. Mas os gostos literários vão-se refinando. Daí não ser de modo algum
desajustado encontrar fortes influências do teatro do absurdo. Não sei se
alguém se lembra do «Pai Tirano» de 1941. Uma colectividade popular ensaia e
leva à cena uma peça de teatro de tipo canastrão, onde às tantas as peripécias
pessoais interferem com o enredo da peça. O que se assiste é a uma hilariante palhaçada
em palco perante a assistência que não percebe que raio de peça é aquela. Há
uma senhora particularmente encantada que diz a quem a acompanha: «Deixa-me ver
que isto é teatro e do bom!». Assim estamos nós.
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