sexta-feira, 14 de outubro de 2022

Uns assim, todos assados…


Talvez todos nós tenhamos a nossa dose de culpa, como já demonstrava Sá de Miranda, na sua “Écloga Basto”, a respeito de uns conselhos que Bieito dá ao seu amigo Gil, fugido nas serras, ao convívio da sua aldeia, em marca de superioridade pessoal que a história que lhe conta Bieito, para o demover dessa sua busca de solidão, pretende atalhar, provando que o provérbio “Maria vai com as outras” é o mais grato ao nosso comodismo:

 

«Come de toda a vianda,
não andes nestes entejos;
não sejas tam vindo à banda,
tem-te às voltas co's desejos:
anda por onde o carro anda.
Vês como os mundos são feitos:
somos muitos, tu só és;
por isso, em todos seus geitos,
um esquerdo antre direitos
parece que anda ao revés.

Dia de maio choveu:
a quantos a água alcançou
o miolo revolveu;
houve um só que se salvou,
que ao coberto se acolheu.
Dera vista às semeadas,
as que tinha mais vezinhas;
viu armar as trovoadas,
acolhe-se às bem vedadas
das suas baixas casinhas.

Ao outro dia um lhe dava
paparotes no nariz,
vinha outro que o escornava;
aí também era o juiz,
que se de riso finava.
Bradava ele: - Homens, estai!
iam-lhe co dedo ao olho.
Disse então: - E assi che vai?
Não creo logo em meu pai,
se me desta água não molho.

Apaixonado qual vinha,
achou num charco que farte;
o conselho havido o tinha:
molhou-se de toda a parte,
tomou-a como mèzinha.
Quantos viram lá correram:
um que salta, outro que trota,
quantas graças i fizeram!
Logo todos se entenderam:
ei-los vão numa chacota.»


«Nota: o excerto segue a versão de Rodrigues Lapa (Sá da Costa, 1942).»

Não, apesar de muitos se julgarem diferentes, bem no fundo somos da mesma cepa, acomodados, burlões, trocistas, vaidosos, mesquinhos, convictos da nossa superioridade, preferindo troçar a atalhar os erros, desistentes, pois. E o medo nos move hoje, mais do que nunca. Mas também com poder de análise e sabor crítico, como o demonstra Paulo Tunhas. E fiquemo-nos por aqui, condenando os outros, antes que nos condenem a nós.

 

Um romancista chamado Portugal

Uma inverosimilhança aqui ou ali até pode fazer sentido, mas uma inverosimilhança que tudo permeia dificilmente o fará. O romance que Portugal nos propõe não aguenta uma leitura de uns poucos minutos.

PAULO TUNHAS

OBSERVADOR, 13 out 2022, 00:1912

Tenho dado comigo muitas vezes, de há algum tempo para cá, a evitar pensar sobre Portugal. E, devo dizer, a maior parte das vezes com sucesso. Não pareço ser, de resto, caso único. Ainda no outro dia, falando ao telefone com um amigo, ele me contou que, tendo o filho, que vive na Alemanha, vindo passar uma semana a Lisboa, nem por uma só vez a pátria foi objecto das suas conversas. E podia citar outros exemplos assim.

Deve haver uma razão para isto. Por mim, descubro-a numa analogia. É como se Portugal se tivesse transformado num escritor medíocre, incapaz de dar à luz um livro que não nos caia das mãos logo à segunda ou terceira página. A cada nova obra que sai, muito publicitada em jornais, rádios e televisões por críticos profissionais que assim ganham a vida, já sabemos aquilo com que podemos contar: estilo péssimo e enredos estapafúrdios povoados de personagens inverosímeis. É verdade que há um público leitor que se satisfaz com a horrenda literatura que quotidianamente lhe é oferecida. Mas é um público que, na sua maioria, sofre de analfabetismo abecedário e se extasia, em consequência, com o analfabetismo doutoral que o autor Portugal lhe oferece.

Portugal, como autor, imita uma sociedade. E imita-a muito mal. Ao ponto de ser difícil aos leitores saber se estamos face a uma tragédia ou a uma comédia. O leitor não sabe se se deve rir ou comover-se. Se deve gozar com o que lhe é contado ou entristecer-se com o seu destino. Isto, como se calculará, mergulha o público num estado de perplexidade. Porque é de nós mesmos que o romance fala. Devemos chorar ou rir de nós?

Lá haver enredo, há. E as peripécias repetem-se. O assalto ao paiol de Tancos, a destruição da serra da Estrela, a nacionalização da TAP e a promessa recente da sua venda, as trapalhadas do ex-ministro Cabrita – entre várias outras, de diversos tipos. Mas, face às peripécias, as personagens parecem comportar-se como se nada tivesse a ver com elas. O autor do romance inocenta-as inteiramente. É isso, de resto, que baralha muito tudo. Porque, para haver tragédia, seria preciso que as personagens dessem um sinalzinho que compreendem o que lhes acontece. Mas tal falta por completo. O ex-ministro Azeredo Lopes declarou não saber se tinha havido assalto ou não. A ministra Mariana Vieira da Silva disse que daqui a dez anos a serra da Estrela estará um brinquinho. A secretária de Estado Patrícia Gaspar falou de um algoritmo que nos mostra que a dita serra da Estrela teve uma sorte dos diabos. Nem Costa nem Pedro Nuno Santos se deram ao trabalho de explicar porque é que da nacionalização da TAP se passou à proclamação da necessidade da sua venda. O ex-ministro Cabrita não se deu conta de nada do que lhe aconteceu – e aconteceram-lhe, como se sabe, muitas coisas. Não há mesmo reconhecimento nenhum. Nenhuma pancada na testa a dizer: “o que é que eu fui fazer!” Por aqui, estamos mais próximos de uma comédia do que de uma tragédia. “Aconteceu? Não me digam!”

A atmosfera geral é de inverosimilhança. Porque é que uma coisa acontece e não outra? Mistério. Falta absolutamente qualquer percepção de unidade no desenrolar dos acontecimentos. Tudo é episódico e inconsequente, sem que o autor sinta a mínima necessidade se sugerir razões, por vagas que sejam, para a sucessão dos factos. O romance não obedece a nenhum plano, é perfeitamente informe. Se, de repente, o autor decidisse introduzir nele um acontecimento excepcionalmente fantástico, como a aparição da Virgem em plena Assembleia da República, no meio de uma reprimenda de Augusto Santos Silva ao Chega, ninguém acharia nada de estranho na coisa. Apesar de tudo, porque não? Dada a inverosimilhança generalizada da obra, a aparição da Virgem arriscar-se-ia mesmo a passar despercebida ao leitor. Uma inverosimilhança aqui ou ali até pode fazer sentido, mas uma inverosimilhança que tudo permeia dificilmente o fará. O romance que Portugal nos propõe não aguenta uma leitura que dure por mais de uns poucos minutos.

As personagens estão, é claro, à altura do enredo. Cumprem, é verdade, a sua missão fundamental: agem. Mas o pensamento e o carácter revelados pelas suas acções não são menos fantásticos do que o enredo. Conhecem, em toda a história da literatura, personagem mais radicalmente inverosímil do que a de Marcelo Rebelo de Sousa? Tentem fazer desfilar, no vosso espírito, todas as grandes personagens romanescas que os maiores génios literários elaboraram. Haverá alguma mais literalmente inacreditável do que ele, no pensamento e no carácter? Eu perdi algum tempo com o exercício e confesso que não lhe encontrei par. Querem exemplos? É fácil: pensem, em qualquer altura, na última coisa que ele disse, ou na última coisa que se lembrarem que ele disse. Vão ver que serve às maravilhas, como esta sobre as vítimas de pedofilia na Igreja. Não falha.

E o público, como reage ele a tais enredos e personagens? Tirando os críticos profissionais, aficionados por necessidade, e os poucos leitores por eles engendrados, com a mais soberana das indiferenças. Não esperem que o comum siga as paixões tradicionais do género, como o terror de se imaginar no lugar das personagens ou qualquer piedade pelo seu destino. Reina, pelo contrário, a apatia mais extrema. Há, apesar de tudo, certas exigências que até o mais desprevenido cidadão faz à ficção.

Há, no entanto, um domínio em que o Portugal romancista mostra algum talento, tanto na construção do enredo como na criação das personagens. É aquele que se exerce na imitação de uma sociedade feita de crimes pequenos e mal feitos, com choro, ciúme, facadas e sangue, baba e ranho. Aí, Portugal, o romancista, consegue um auto-retrato eficaz. Pena é que as suas obras no capítulo sejam apenas publicitadas sob pseudónimo na CMTV. É pena porque há mais verosimilhança aí do que no resto da literatura que Portugal escreve.

POLÍTICA   GOVERNO   ESTADO DA NAÇÃO

COMENTÁRIOS:

José Manuel Pereira: Excelente artigo. Deixou de haver "adultos na sala"...               Carlos Quartel: Vejo o quadro ainda mais negro. E vejo-o não só em Portugal, como vejo a abulia, o desinteresse pela coisa pública a alastrar, por esse mundo fora, enquanto cresce o egoísmo e os universos de cada um se tornam cada vez mais pequenos. Acararam-se as tertúlias, praticamente não se lê, a escola anda mais preocupada com as casas de banho e as escolhas de sexo dos alunos do que com a entrega de um pacote de conhecimentos, com uma formação cívica saudável, com os grandes princípios da verdade, da liberdade. da solidariedade, da decência como elementos base. Redes sociais, assuntos alarves, mexericos e futebol tudo fornecido por telefones, que irão provocar uma geração de cegos, pelo esforço para ler os minúsculos textos. E uma geração de dactilógrafos .......... Está aberto o caminho para a imbecilidade geral ....              Alexandre de Sousa – Actor: Como sabe, Portugal nunca foi romancista, porque não sabe ler nem escrever, há quase novecentos anos. E isso é responsabilidade da Casta e não do povo.              Sérgio: Absolutamente brilhante e delicioso! Há muito que desisti deste penico muito mal frequentado e pestilento e nauseabundo e "orgulho" foi coisa que nunca me ocorreu!!!!!!!                   João Floriano: Devemos chorar ou rir de nós? Tem dias! Hoje a crónica de Paulo Tunhas está genial. Ri com muito gosto sobre a aparição de Nossa Senhora de Fátima na Assembleia da República se bem que a haver nova aparição esse seria o local mais apropriado: o quarto pastorinho já lá está. Não consigo compreender a dificuldade do articulista em classificar o «género literário» que melhor se adapta à presente situação. sem qualquer dúvida é uma tragédia grega com a unidade de acção (as desgraças são sempre as mesmas praticadas pelos mesmos e quem sofre são também sempre os mesmos do costume), unidade de tempo  (os anos vão passando mas parece que estamos prisioneiros numa bolha) e unidade de lugar (entre S. Bento e Belém). Não falta o coro, a comentar e  avisar sobre a desgraça iminente e temos ainda as máscaras, fundamentalmente de pau. Há-as para todos os tipos e gostos. Mas os gostos literários vão-se refinando. Daí não ser de modo algum desajustado encontrar fortes influências do teatro do absurdo. Não sei se alguém se lembra do «Pai Tirano» de 1941. Uma colectividade popular ensaia e leva à cena uma peça de teatro de tipo canastrão, onde às tantas as peripécias pessoais interferem com o enredo da peça. O que se assiste é a uma hilariante palhaçada em palco perante a assistência que não percebe que raio de peça é aquela. Há uma senhora particularmente encantada que diz a quem a acompanha: «Deixa-me ver que isto é teatro e do bom!». Assim estamos nós.  

Nenhum comentário: