sábado, 29 de outubro de 2022

Mas sim, tem razão

 

Se, nos prédios de apartamentos, sobretudo, não houver contenção nos sons que se produzem dentro desses, em termos de respeito alheio, muita gente sofrerá, a menos que consiga abstrair-se, em concentração ou indiferença – o que não é muito comum, contudo.

A vizinha chata

Qualquer pessoa que trabalhe em casa, como eu, sabe que a explosão de ruído de que não se consegue prever o início ou o fim é disruptiva. Desgastante. Cansativa. Intolerável e por isso… vizinha chata

EUGÉNIA DE VASCONCELLOS Poeta, ensaísta, escritora

OBSERVADOR, 28 out 2022, 00:158

Quarta-feira. Debate do OE. Sento-me diante da televisão a tomar notas para a crónica. De repente, percebo que o Partido Socialista e António Costa, especialmente António Costa, estão a viver uma intensa relação mística, porém delirante, com Passos Coelho, ausente do hemiciclo desde 2015. Pergunto-me: será folie à deux, partilhada entre o Partido Socialista e o seu Primeiro Ministro? Ou, se o colectivo não contar como um, deverá chamar-se folie à famille socialista? Entre a «vozearia» e o «lamaçal» esperei que, por associação, o nosso Primeiro-Ministro envergonhado pelos 4,4 milhões de pobres, a metade do país que governa, citasse João da Ega, n´Os Maias, quando diz «tenho a alma numa latrina e preciso de um banho por dentro». Mas não. Orgulha-se da sua prestação. Desisto – já aconteceu anteriormente, não vou escrever sobre o debate. Decido-me pela vizinha.

Em todos os prédios há uma vizinha chata. Manda o estereótipo que seja uma solteirona ou uma viúva com dois gatos e um periquito. Sabe quem entra, quem sai, queixa-se da música alta, do barulho das visitas, da falta de limpeza nas escadas, da gritaria dos miúdos e da vida em geral. O meu prédio não é excepção. Também tem uma vizinha chata. A vizinha chata sou eu. Sem ser solteirona ou viúva, sem ter gatos nem periquitos, mesmo sem ter a menor ideia de quem entra ou de quem sai, com as escadas limpas, e ainda que gritaria de miúdos, ou cães a ladrar, não me incomode, de todo, a vizinha chata, tenho a certeza, sou eu. O barulho enlouquece-me. Shhh…

A confirmação deste facto já anteriormente aceite por mim, chegou-me há algum tempo, ao ler a The Atlantic Magazine, quando me deparei com um artigo intitulado Why do rich people love quiet? Devo confessar que, expectante, parei logo no fim do título só para ir verificar o meu saldo bancário no telemóvel: continuava pobre. E com a agravante de ter uma sensibilidade auditiva de rica politicamente incorrecta.

A autora do texto, Xotchitl Gonzalez, regressa à sua experiência como aluna de uma minoria étnica, como a própria se define por ser porto-riquenha, numa universidade de topo nos Estados Unidos, onde o silêncio faz parte das regras não escritas de comportamento, nas bibliotecas, quartos ou lugares de estudo. Um silêncio, então, em conflito com a sua forma de estar e conviver, fosse a estudar ou a fazer trabalhos com música alta, ou a conversar em idêntico volume. Posteriormente, fala da migração desse silêncio característico do Upper East Side para Brooklyn, onde vive, através do processo de gentrificação, e de como esse silêncio se opõe, na sua opinião, a uma «cultura de alegria» para a subjugar.

Neste tempo em que todos os valores se equivalem num multiculturalismo demolidor, é preciso bom senso. A nossa saúde sofre com o ruído: hipertensão, insónia, falta de concentração, cortisol elevado, perda de memória. Estes e outros sintomas diminuem com a exposição ao silêncio. Reggaeton e silêncio, diga Xotchitl Gonzalez o que disser, na evocação mais ou menos romântica da sua infância e raízes culturais, não se equivalem.

Antes de mudar para a casa onde vivo, há cinco anos, fui tomar café com os meus senhorios. Simpáticos, informaram-me que no prédio havia pessoas com alguma idade… percebi. E fiquei aliviada. Pensei, que bom, silêncio. Eu também faço parte dos silenciosos: não obrigo os vizinhos a ouvirem a minha música, nem faço sapateado com os saltos, não faço bricolage e se, por acaso, for preciso usar berbequins ou martelos nalgum arranjo, aviso o condomínio antecipadamente para que possa notificar os moradores. Qualquer pessoa que trabalhe em casa, como eu, sabe que a explosão de ruído de que não se consegue prever o início ou o fim é disruptiva. Desgastante. Cansativa. Intolerável e por isso… a vizinha chata. Como se sabe que há um fio de conforto discreto naquele zum-zum diário de paredes meias com estranhos, pessoas como nós: o apito da panela de pressão, o som do aspirador no dia certo em luta com os móveis e os cantos das salas, a destreza na execução de uma peça repetida cem vezes ao piano por mãos pequeninas que vão crescendo, o elevador que se abre e a porta que se fecha. O quotidiano dos outros, ao nosso lado: uma companhia.

Mas a verdade é que vivemos numa cidade sem lei. Tudo é permitido e quando não é, cria-se uma excepção: somos sobrevoados sem descanso e agora mais ainda, sobram-nos três horas na paz relativa dos motores dos aviões. Nos prédios com alojamento local, a «cultura da alegria», com música aos gritos, bebedeiras pelas escadas e desconhecidos que entram à meia dúzia em casas de um só quarto, bate de frente na cultura do trabalho e de levar os miúdos à escola. Aos estaleiros de obra que nos rodeiam todos os dias por todos os lados dão-se licenças excepcionais para que trabalhem também aos sábados a par dos habilidosos do berbequim e do martelo, reformados ou de fim-de-semana. E nem vale a pena falar daqueles que ainda tentam viver nas zonas da baixa onde o mau turismo invade as ruas diariamente, com os restaurantes e os cafés transformados em bares numa movida deboomboxes, lixo e urina – enquanto escrevo isto, decerto alguém acabou de anunciar mais um extraordinário prémio para Lisboa, a melhor cidade para os residentes estrangeiros em geral que a podem pagar. E podem pagar o preço do novo artigo de luxo: o silêncio. Lisboa um dia será o novo Upper East Side.

Enquanto esse dia não chega, recordo Victor Hugo a quem o ruído enlouquecia. Não foi ele quem forrou o quarto onde escrevia, para o isolar, a cortiça? Se lhe passar pela cabeça pensar, olha-me esta, a comparar-se com o Victor Hugo, lembre-se: não é uma questão de talento, mas de ruído.

A autora escreve segundo a antiga ortografia

CRÓNICA   OBSERVADOR   LISBOA  PAÍS

COMENTÁRIOS:

Carla Martins: Infelizmente não existe o direito ao sossego neste país. No meu caso queixo-me principalmente de cães a ladrar, que ninguém educa. Não se pode dar um passeio pelo bairro, nem sequer estar sossegado em casa. Existe muita falta de educação.              José Ribeiro: Detesto barulhos despropositados, a única coisa mesmo que não gosto nas crianças, os meus netos no campo que berrem à vontade, em casa querem-se calmos, serenos e sem gritos.           Francisco Tavares de Almeida: Pois, como a percebo. Vivo numa quinta com a estrada pública mais próxima a 400m e o primeiro vizinho a 500m. Devido a uma herança genética e ao quinino semanal durante 2 anos, quase nada ouço do ouvido direito e pouco mais do esquerdo, o único onde ainda vale a pena usar um aparelho, Mesmo assim, aos fins-de-semana ou nas férias, com estadias de família alargada, ou até quando a minha mulher se lembra de elevar o som do "smartphone" para ouvir o RAP, carrego no botãozinho e oiço a voz pré-gravada: desligado.              João Floriano: Hoje não gostei particularmente da crónica. Vivo numa zona periférica, relativamente silenciosa, a não ser quando os aviões passam aqui por cima, como está a acontecer precisamente agora, ouço os pássaros, o vento, mas pago caro porque quem aqui não tiver transporte próprio não se safa. Mesmo assim há vizinhos chatos que até embirram com o cheiro das sardinhas assadas e o fumo das lareiras.                    Alexandre Machado: Bom dia, Gosto das suas crónicas e comungo consigo o tema desta. Apenas um reparo, que precisa de ser confirmado, porque o que li ficou há muito tempo para trás. É muito possível que Víctor Hugo detestasse o ruído, mas quem mandou forrar o quarto com cortiça, por causa do barulho proveniente do boulevard foi Marcel Proust. Escrevia na sua cama e a velha criada deslocava-se de pantufas.              Luísa Possollo: Quem forrou o quarto com cortiça foi Marcel Proust, o autor de «A la Recherche du Temps Perdu. Não sei se Victor Hugo fez o mesmo, têm personaliddes tão diferentes! Obrigada pelas suas crónicas que leio sempre. Aprendi nesta que falhei uma vez numa das regras de condomínio sobre o ruído!               Américo Silva: Dizia Jacques Chirac, eles são insuportáveis, é o barulho, é o cheiro. Talvez por isso hoje em França, quem manda calar um grupo de pessoas no TGV ou no restaurante, restaurante de grã-finos entenda-se, é acusado de racista.               bento guerra; Sim, vizinha, não bata com a porta!             Maria Augusta Martins: Tem razão. está na hora de ir viver para o campo. Vai ver que os barulhos são diferentes e mais doces.

 

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