Se, nos prédios de apartamentos,
sobretudo, não houver contenção nos sons que se produzem dentro desses, em
termos de respeito alheio, muita gente sofrerá, a menos que consiga abstrair-se,
em concentração ou indiferença – o que não é muito comum, contudo.
A vizinha chata
Qualquer pessoa que trabalhe em casa,
como eu, sabe que a explosão de ruído de que não se consegue prever o início ou
o fim é disruptiva. Desgastante. Cansativa. Intolerável e por isso… vizinha
chata
EUGÉNIA DE VASCONCELLOS Poeta, ensaísta, escritora
OBSERVADOR, 28 out 2022,
00:158
Quarta-feira. Debate do OE. Sento-me diante da televisão a tomar notas para a
crónica. De repente, percebo que o Partido Socialista e António Costa,
especialmente António Costa, estão a viver uma intensa relação mística, porém
delirante, com Passos Coelho, ausente do hemiciclo desde 2015. Pergunto-me:
será folie à deux, partilhada entre o Partido Socialista e o seu Primeiro
Ministro? Ou, se o colectivo não contar como um, deverá chamar-se folie à
famille socialista? Entre a «vozearia» e o «lamaçal» esperei que, por
associação, o nosso Primeiro-Ministro envergonhado pelos 4,4 milhões de pobres,
a metade do país que governa, citasse João da Ega, n´Os Maias, quando diz
«tenho a alma numa latrina e preciso de um banho por dentro». Mas não.
Orgulha-se da sua prestação. Desisto – já
aconteceu anteriormente, não vou escrever sobre o debate. Decido-me
pela vizinha.
Em todos os prédios há uma vizinha chata. Manda
o estereótipo que seja uma solteirona ou uma viúva com dois gatos e um
periquito. Sabe quem entra, quem sai, queixa-se da música alta, do barulho das
visitas, da falta de limpeza nas escadas, da gritaria dos miúdos e da vida em
geral. O meu prédio não é excepção. Também tem uma vizinha chata. A vizinha
chata sou eu. Sem ser solteirona ou viúva, sem ter gatos nem periquitos, mesmo
sem ter a menor ideia de quem entra ou de quem sai, com as escadas limpas, e
ainda que gritaria de miúdos, ou cães a ladrar, não me incomode, de todo, a
vizinha chata, tenho a certeza, sou eu. O barulho enlouquece-me. Shhh…
A
confirmação deste facto já anteriormente aceite por mim, chegou-me há algum
tempo, ao ler a The Atlantic Magazine, quando me deparei com um artigo intitulado Why do rich people love quiet? Devo confessar que, expectante, parei logo no
fim do título só para ir verificar o meu saldo bancário no telemóvel:
continuava pobre. E com a agravante de ter uma sensibilidade auditiva de rica
politicamente incorrecta.
A
autora do texto, Xotchitl Gonzalez,
regressa à sua experiência como aluna de uma minoria étnica, como a própria se
define por ser porto-riquenha, numa universidade de topo nos Estados Unidos,
onde o silêncio faz parte das regras não escritas de comportamento, nas
bibliotecas, quartos ou lugares de estudo. Um silêncio, então, em conflito com a sua forma de
estar e conviver, fosse a estudar ou a fazer trabalhos com música alta, ou a
conversar em idêntico volume. Posteriormente, fala da migração desse silêncio
característico do Upper East Side para Brooklyn, onde vive,
através do processo de gentrificação, e de como esse silêncio se opõe, na
sua opinião, a uma «cultura de alegria» para a subjugar.
Neste tempo em que todos os valores se equivalem num
multiculturalismo demolidor, é preciso bom senso. A
nossa saúde sofre com o ruído: hipertensão, insónia, falta de concentração,
cortisol elevado, perda de memória. Estes e outros sintomas diminuem com a
exposição ao silêncio. Reggaeton e silêncio, diga Xotchitl Gonzalez o que
disser, na evocação mais ou menos romântica da sua infância e raízes culturais,
não se equivalem.
Antes
de mudar para a casa onde vivo, há cinco anos, fui tomar café com os meus
senhorios. Simpáticos, informaram-me que no prédio havia pessoas com alguma
idade… percebi. E fiquei aliviada. Pensei, que bom, silêncio. Eu também faço
parte dos silenciosos: não obrigo os vizinhos a ouvirem a minha música, nem
faço sapateado com os saltos, não faço bricolage e se, por acaso, for preciso
usar berbequins ou martelos nalgum arranjo, aviso o condomínio antecipadamente
para que possa notificar os moradores. Qualquer pessoa que trabalhe em casa,
como eu, sabe que a explosão de ruído de que não se consegue prever o início ou
o fim é disruptiva. Desgastante. Cansativa. Intolerável e por isso… a
vizinha chata. Como se sabe que há um fio de conforto discreto naquele
zum-zum diário de paredes meias com estranhos, pessoas como nós: o apito da
panela de pressão, o som do aspirador no dia certo em luta com os móveis e os
cantos das salas, a destreza na execução de uma peça repetida cem vezes ao
piano por mãos pequeninas que vão crescendo, o elevador que se abre e a porta
que se fecha. O quotidiano dos outros, ao nosso lado: uma companhia.
Mas
a verdade é que vivemos numa cidade sem lei. Tudo é permitido e quando não é, cria-se uma
excepção: somos sobrevoados sem descanso e agora mais ainda, sobram-nos três
horas na paz relativa dos motores dos aviões. Nos prédios com alojamento
local, a «cultura da alegria», com música aos gritos, bebedeiras pelas escadas
e desconhecidos que entram à meia dúzia em casas de um só quarto, bate de
frente na cultura do trabalho e de levar os miúdos à escola. Aos estaleiros
de obra que nos rodeiam todos os dias por todos os lados dão-se licenças
excepcionais para que trabalhem também aos sábados a par dos habilidosos do
berbequim e do martelo, reformados ou de fim-de-semana. E nem vale a pena falar
daqueles que ainda tentam viver nas zonas da baixa onde o mau turismo invade
as ruas diariamente, com os restaurantes e os cafés transformados em bares numa
movida deboomboxes, lixo e urina – enquanto escrevo isto, decerto alguém acabou
de anunciar mais um extraordinário prémio para Lisboa, a melhor cidade para os
residentes estrangeiros em geral que a podem pagar. E podem pagar o preço do
novo artigo de luxo: o silêncio. Lisboa um dia será o novo Upper East Side.
Enquanto
esse dia não chega, recordo Victor Hugo a quem o ruído enlouquecia. Não foi ele
quem forrou o quarto onde escrevia, para o isolar, a cortiça? Se lhe passar
pela cabeça pensar, olha-me esta, a comparar-se com o Victor Hugo, lembre-se:
não é uma questão de talento, mas de ruído.
A autora escreve segundo a antiga
ortografia
CRÓNICA OBSERVADOR LISBOA PAÍS
COMENTÁRIOS:
Carla Martins: Infelizmente não existe o direito ao sossego neste país. No meu caso
queixo-me principalmente de cães a ladrar, que ninguém educa. Não se pode dar
um passeio pelo bairro, nem sequer estar sossegado em casa. Existe muita falta
de educação. José
Ribeiro: Detesto barulhos
despropositados, a única coisa mesmo que não gosto nas crianças, os meus netos
no campo que berrem à vontade, em casa querem-se calmos, serenos e sem gritos. Francisco Tavares de Almeida: Pois, como a percebo. Vivo numa
quinta com a estrada pública mais próxima a 400m e o primeiro vizinho a 500m.
Devido a uma herança genética e ao quinino semanal durante 2 anos, quase nada
ouço do ouvido direito e pouco mais do esquerdo, o único onde ainda vale a pena
usar um aparelho, Mesmo assim, aos fins-de-semana ou nas férias, com estadias
de família alargada, ou até quando a minha mulher se lembra de elevar o som do
"smartphone" para ouvir o RAP, carrego no botãozinho e oiço a voz
pré-gravada: desligado.
João Floriano: Hoje não gostei particularmente da crónica. Vivo numa
zona periférica, relativamente silenciosa, a não ser quando os aviões passam
aqui por cima, como está a acontecer precisamente agora, ouço os pássaros, o
vento, mas pago caro porque quem aqui não tiver transporte próprio não se safa.
Mesmo assim há vizinhos chatos que até embirram com o cheiro das sardinhas
assadas e o fumo das lareiras. Alexandre Machado:
Bom dia, Gosto
das suas crónicas e comungo consigo o tema desta. Apenas um reparo, que precisa
de ser confirmado, porque o que li ficou há muito tempo para trás. É muito
possível que Víctor Hugo detestasse o ruído, mas quem mandou forrar o quarto
com cortiça, por causa do barulho proveniente do boulevard foi Marcel Proust.
Escrevia na sua cama e a velha criada deslocava-se de pantufas. Luísa Possollo: Quem forrou o quarto com
cortiça foi Marcel Proust, o autor de «A la Recherche du Temps Perdu.
Não sei se Victor
Hugo fez o mesmo, têm personaliddes tão diferentes! Obrigada pelas suas crónicas
que leio sempre. Aprendi nesta que falhei uma vez numa das regras de condomínio
sobre o ruído! Américo
Silva: Dizia Jacques
Chirac, eles são insuportáveis, é o barulho, é o cheiro.
Talvez por isso hoje em França, quem manda calar um grupo de pessoas no TGV ou
no restaurante, restaurante de grã-finos entenda-se, é acusado de racista. bento guerra;
Sim, vizinha, não
bata com a porta! Maria
Augusta Martins: Tem razão. está na hora de ir viver para o campo. Vai
ver que os barulhos são diferentes e mais doces.
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