Um discurso simultaneamente
rigoroso e de picardia, sem esperança, afinal, de qualquer solução de melhoria.
De JAIME NOGUEIRA PINTO.
5 de Outubro: do primeiro ao último
Neste último 5 de Outubro, Portugal já
não está na dianteira de coisa nenhuma, nem da constituição do Estado, como em
1143, nem do republicanismo europeu, como em 1910.
JAIME NOGUEIRA PINTO, Colunista
do Observador
OBSERVADOR, 08 out
2022, 00:208
O primeiro 5 de
Outubro
Portugal,
ou o que iria ser uma nação independente de muitos séculos, foi oficialmente
criado pelo Estado afonsino no dia 5 de Outubro de 1143 quando, depois de uma
longa trégua, em Zamora, D. Afonso VII de Castela e Leão, Imperator Totius
Hispaniae, reconheceu o primo, Afonso Henriques, como Rex Portucalensis.
Afonso
Henriques era cristão, era guerreiro, era político, e não queria estar sujeito
ao primo; os fidalgos de Entre-Douro-e-Minho, senhores da guerra que arrancamos
às crónicas medievais e a alguma ficção de Herculano e de Arnaldo Gama, não
gostavam dos seus pares de Castela; os galegos, com os condes Peres de Trava,
oscilavam entre uns e outros. Havia também uma Igreja portucalense, com
arcebispos de Braga e bispos do Porto que não queriam depender nem de Santiago,
nem de qualquer Sé metropolitana castelhana. E uns burgueses nas cidades que
acalentavam alguma independência dos nobres guerreiros que, supostamente, os
protegiam. E finalmente, cá muito em baixo, uns servos da gleba que tratavam de
amanhar a terra, criar filhos e gado e ir escapando aos desastres da guerra e
às pestilências.
Com
esta sociedade de “ordens”, o filho do conde D. Henrique de Borgonha e da filha
ilegítima de D. Afonso VI, D. Teresa, criou um novo reino. Sempre a combater,
primeiro contra os galegos e os partidários da mãe, depois contra os
castelhanos e os leoneses e depois ainda contra os “mouros”, que foi empurrando
para o Sul, seguindo uma linha – Leiria, Santarém, Lisboa, Alcácer do Sal – que
flectia depois para Évora, fechando com Beja, Moura, Serpa e Juromenha.
Passou
a vida nisto – na guerra – e a fazer filhos e filhas, à volta de vinte
reconhecidos. A Santa
Sé, que na Respublica Christiana funcionava como uma espécie de
Nações Unidas – com menos retórica e maior eficácia -, demorou a
reconhecer o novo reino de Portugal. Com o muçulmano por inimigo principal,
Roma não queria fragmentações entre os cristãos nas cruzadas do Ocidente e só
reconheceria D. Afonso Henriques a 23 de Maio de 1179, pela bula Manifestis
Probatum, de Alexandre III. A Bula dirigia-se “ao caríssimo filho em Cristo,
Afonso, ilustre rei dos portugueses”, “bom filho e príncipe católico”.
Nesse
tempo, os almóadas dominavam El Andaluz, Henrique II era rei de Inglaterra e
Luís VII, rei de França. Os Estados, os novos reinos, estavam então a
começar e, aqui no Ocidente, iriam formar nações. A portuguesa daria prova de
vida 200 anos depois, quando Castela, pela via da legalidade dinástica, quis
impor um rei estrangeiro ao reino de Portugal.
Foi
este o primeiro 5 de Outubro, em Zamora, forjado por um “pai- cavaleiro” a quem
Pessoa pediria “o exemplo inteiro e a inteira força” contra futuros “infiéis”.
O 5 de Outubro de 1910
O
outro 5 de Outubro foi há 112 anos: Portugal, a nação portuguesa, já tivera o
seu tempo de expansão nos séculos XV e XVI, a sua ascensão, e a sua queda. Já seguira a evolução europeia dos regimes – monarquia
feudal, monarquia católica absoluta, despotismo esclarecido, invasões
francesas, revolução liberal, guerra civil, monarquia constitucional,
liberalismo convulso, regeneração, fragmentação partidária.
A
Europa do último quartel do século XIX era toda monárquica, com excepção da
Suíça e da França – com uma “jovem República”, a Terceira, proclamada em 1871,
depois da derrota frente aos prussianos.
O
partido republicano português era então um pequeno partido burguês, sem
operários, com militares subalternos e alguns de letrados. Uma espécie de
“clube republicano”, como o que Eça caricatura em A Capital, sito na Rua
do Príncipe; clube a que Artur Corvelo – que começara por achar “o partido
republicano em Portugal bem
desunido, bem vago, sobretudo bem limitado” – acabaria por aderir, subitamente
arrebatado por uma “grande energia de amor humanitário”, uma forte
disposição de “esposar a miséria universal” e uma infundada esperança de
encontrar ali operários, frente aos quais pudesse, brandindo a espada, decretar
incêndios de palácios e interrogar reis prisioneiros “num terror de apoteose
popular”.
Mas
o que era então ainda um partido de caricatura iria crescer à custa das
profundas divisões dos monárquicos no pós-fontismo e, sobretudo, do que foi
sentido como uma humilhação nacional – o Ultimato.
A Esquerda cresceu, assim, à custa do
patriotismo ofendido e exacerbado, cavalgando populisticamente a humilhação dos
portugueses perante os abusos do imperialismo britânico que “os Braganças”,
cúmplices da internacional realista, permitiam. As campanhas de ocupação dos
“Africanos” e a consequente extensão e consolidação do Império não conseguiram
estancar os efeitos dessa humilhação.
A fragmentação partidária, os
escândalos financeiros reais ou imaginários da Fazenda e da Coroa criaram uma
hostilidade às “elites governativas” nas classes ascendentes das cidades. João Franco tentou uma solução
kaiseriana, ao mesmo tempo que tratava de modernizar a direita com o seu novo
partido. Mas tudo dependia do apoio de D. Carlos e a esquerda
portuguesa, que sempre se mostrou capaz de juntar o maquiavelismo das soluções
à retórica dos grandes princípios, assassinou o rei a 1 de Fevereiro de 1908.
D. Manuel, traumatizado, abandonou João Franco e depois tudo se precipitou para
a “balbúrdia sanguinolenta”
que também acabaria por ser a Primeira República.
Nesse
5 de Outubro, a República triunfou depois de poucas horas de um duelo de
artilharia em Lisboa das peças da Rotunda e dos cruzadores tomados pelos
marinheiros republicanos contra uma força da Bateria Móvel de Queluz, comandada
por Paiva Couceiro. Couceiro
era um combatente corajoso e coerente, mas, inexplicavelmente, avisado em
Cascais da revolução em marcha, resolve seguir a rotina de todos os dias, indo
de comboio até Paço d’Arcos e a pé de Paço d’Arcos para Queluz – e
chegando tarde à contra-revolução.
Assim
– e com os tradicionais assassinatos de padres por “populares”– se passou o 5
de Outubro de 1910.
No fim da linha
Neste último 5 de Outubro, Portugal já
não está na dianteira de coisa nenhuma, nem da constituição do Estado, como em
1143, nem do republicanismo europeu, como em 1910 – e já não tem impérios, a
haver ou a perder. É um pequeno país da União Europeia, que se debate, não só
com os problemas dos pequenos países com lugar cativo na “cauda da Europa” mas
com outros que lhe são próprios.
Não
terá talvez já excepcionalidade além da permanência, vai para meio século, de
uma atmosfera ideológica dominante e inalterável, resistente às oscilações do
poder partidário. É uma mentalidade que se alimenta é alimentada pelo
discurso político e mediático: uma retórica oitocentista, maniqueia, moralista,
baseada em histórias já de si simplistas mas ainda assim simplificadas de modo
a poderem ser absorvidas e repetidas num meio cada vez mais pobre, cultural,
moral, intelectual e realmente, em que aparentemente “está tudo bem”; histórias antigas de bons, maus e vilões, sempre os
mesmos; anúncios apocalíticos da chegada de bandos iliberais, de ditaduras
fascistas, de direitas populistas. A originalidade portuguesa estará aqui na
continuidade dos mesmos “princípios imortais”, da mesma epopeia
“anti-fascista”, da mesma glorificação festiva de uma cruzada de pantomina
alheada da realidade passada, presente e futura.
Gramsci, quando
escreveu no cárcere os seus Cadernos, lembrou precisamente o que já
sabiam os Iluminados do século XVIII: que as ideias dominantes de uma época
eram as ideias da classe dirigente, por isso, para mudar a classe dirigente, a
classe operária teria de mudar as ideias dominantes. Seguindo o seu conselho, a classe política actual, temendo
que “os populistas”, cavalgando o descontentamento popular, a mudem, agarra-se
a velhos fantasmas e difunde-os nos discursos comemorativos – todos
essencialmente iguais –, agitando papões iliberais e empenhando-se na remoção
mediática de tudo o que a possa pôr em causa ou ao seu poder.
Chama-se a isto “ hegemonia
cultural”, o que, dada a incultura generalizada é, aqui uma
denominação quase risível.
Ao menos, neste 5 de Outubro, ao contrário do que aconteceu no de
1910, já não se matam padres em Arroios. Agora há métodos mais abrangentes,
modernos e eficazes de tomar e conservar o poder, como o assassinato moral, o
entorpecimento do povo com o ópio dos “novos direitos humanos europeus”,
a imposição de “legislação avançada” – métodos que moem mas que também
acabam por matar. E não são só dois padres em Arroios que matam.
A SEXTA
COLUNA CRÓNICA OBSERVADOR 5 DE
OUTUBRO POLÍTICA
COMENTÁRIOS:
Caria Clotilde Osório: No primeiro 5
de Outubro dependíamos de nós e de condicionalismos externos que afectavam a
península (a ocupação árabe). No segundo, dependíamos de nós e respondíamos a
condicionalismos externos que afectavam os territórios ultramarinos. Neste 5 de
Outubro já não dependemos de nós e não temos capacidade de resposta a coisa
alguma: economicamente dependemos da Europa; legalmente dependemos da Europa e
das leis e constituição europeia; culturalmente dependemos da Europa e das
novas "Luzes"; moralmente dependemos de quem nos der dinheiro
(angolanos, líbios, chineses, russos, venezuelanos, o PS, o PSD, etc) para
gastar; ideologicamente de quem nos resolver os problemas pessoais (esquerda,
direita, extrema, borda, canto, etc). Ou seja, festejem o 5, o 6, o 10 ou até o
32 de Outubro. Falem da varanda, da praia, de fato ou biquíni, tanto faz. A nós
e a eles. A Portugal aplica-se a lei de Lavoisier: Nada se cria, nada se perde,
tudo se transforma. Eis a Coisa. Maria Correia:
Muito bom! Antonio
Marques Mendes : Artigo
interessante? Sim. Mas enganador. Lembra-me a técnica do Boaventura, um
preâmbulo plausível para concluir com uma ideologia enganadora. No caso do
Boaventura o Marxismo pós moderno, no caso do autor um proto fascismo,
disfarçado de iliberalismo. Pois é, há que
ter cuidado com simplificações sumárias da história. Álvaro Aragão Athayde: Finis Patriae. Paris ‘68 e Lisboa ‘74 foram grandes esperanças e
grandes desilusões. As
Esquerdas e as Direitas estão mortas, há que realizar-lhes um funeral de estalo
e passar adiante que a vida continua. Isabel silva:
Acho incompreensível que Portugal não
comemore o dia da sua fundação. bento guerra:
Voltaram à varanda e deixaram
discursos susceptíveis de várias interpretações ,como os oráculos.Para o ano
,há mais
Américo Silva: A
classe dominante partilha o que a distingue do povo dominado, como seja o
antirracismo, multiculturalismo, ecologismo e feminismo, e assim acrescenta
riqueza àquela que já possui, e mantém o poder afastando as classes populares,
supostamente incultas. Adaptado de Christophe
Guilluy S Belo:
Como sempre, muito bem, JNP. Obrigada.
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