De Eugénia de Vasconcellos, no seu vigor de escrita, segurança de ideias,
independência crítica, que, naturalmente exigem uma forma criativa menos
dependente do status em moda, o qual estatui os componentes ideais para uma criatividade
“à la page”, com os elementos do
apreço segundo uma perspectiva de esquerda e que Eugénia de Vasconcellos denuncia
corajosamente, no seu modus faciendi deturpador
da arte literária, que busca o reconhecimento galardoador da obra criada, menos
por real criatividade do que por avidez no prémio.
Nobel
da literaquê?
O menor dos
incómodos neste previsível Nobel será aquilo que se identifica como escrita
feminina. Literatura feminina. Quando é preciso dar um género
à literatura, ela já encolheu.
EUGÉNIA DE
VASCONCELLOS Poeta, ensaísta, escritora
OBSERVADOR, 07 out 2022, 00:1612Subscrever
Escrevo
à quarta-feira o texto que o Observador publica na sexta. Esta semana, porém,
escrevo-o intencionalmente um dia depois, logo após o anúncio do prémio Nobel
da Literatura e antes, penso, da imprensa portuguesa fazer o clássico exercício
laudatório, desta vez a Annie Ernaux.
Devo
confessar que na senda de Toni Morrison, e salvo raras e belas excepções, não tenho
a melhor impressão da escrita do eu, seja sob a forma de auto-biografia ou
de auto-ficção, mesmo nesta abordagem francamente superior de Ernaux, de pretensão
mais clínica, socio-histórica, em que desloca o eu para o tempo onde
essa primeira pessoa do singular se transforma e dilui num putativo nós circunstancial
e nas suas dinâmicas. As mais internas e as externas, sempre sob o olho
multifacetado do observador-observado, do construtor-contruído: o escritor. O
mundo passa pela experiência pessoal do mundo. Da culpa sexual à revolução
sexual. Do aborto clandestino à legalização do aborto. Dos filhos ao Alzheimer
da mãe. Da dominação masculina ao #MeToo. O projecto literário de
Annie Ernaux foi e é Annie Ernaux.
Literariamente,
este processo de escavação e análise da vida através dos seus artefactos, a
triagem dos objectos e a sua classificação à luz dos movimentos sociais e
culturais que lhe servem de pretexto auto-refexivo, seja o objecto a parte do
corpo sobre a qual o amante ejacula, ou onde encontra a lente de contacto, ou o
que comeu e vomitou, não me traz coisa alguma. E creio que será pela própria
condição dessa posição de escrita, isto é, dobrada e redobrada sobre si-mesma,
a tempo inteiro. Mas percebo que traga muito a uma maioria de leitores
comprometidos consigo próprios e com as causas da contemporaneidade. De outra
forma, não seria possível ser um sucesso de crítica e de vendas da França à China.
Não reduzo o valor documental dos mais ou menos vinte livros de Annie Ernaux. De igual
modo, também não elevo o valor desses documentos pessoais e/ou geracionais a
arte. Se o objectivo do Nobel era premiar o feminismo através da literatura,
dessem-no a Margaret Atwood, uma grandíssima escritora que faz o pleno.
Annie
Ernaux tem uma obra de filiação beauvoiriana – se isto se pode dizer – num
crescendo para os feminismos posteriores. Às questões existencialistas, ao
individualismo, à mulher como construção social e à desconstrução do sentido
do eu e do eu sexual, somou as questões levantadas pela geração a que
pertence. A que, mesmo vinda da baixa classe média, acede ao ensino superior e
se confronta com o emprego que não corresponde às competências académicas, nem
às expectativas sociais e económicas, a geração que se opôs ao papel
tradicional da mulher e à «tirania do homem», e a que se viu dominada por uma
profunda insatisfação pessoal. Todavia, a filiação não garante a alta literatura,
por muito que seja consensual. Pode-se fazer alta literatura com esta filiação?
Acredito que sim, apesar do solipsismo, com esta ou com qualquer outra.
Legítima ou ilegítima – não sei, no entanto, se nos dias de hoje se voltaria a
publicar Lolita…
O
menor dos incómodos neste previsível Nobel, já que o nome de Annie Ernaux
tem sido reforçado ano após ano para este prémio, será aquilo que se identifica
como escrita feminina. Literatura feminina. Um estereótipo daquelas que são as
preocupações e os interesses das mulheres e o seu alcance. Quando é preciso dar
um género à literatura, ela já encolheu.
O
maior dos incómodos é a manutenção do establishment pós-modernista.
Meia dúzia de mediadores culturais informa uma centena de fazedores de cultura
e arte sobre quem e o que é cultura e arte. Os fazedores, expectantes na subida
ao pódio artístico e cultural, reforçam as escolhas dos mediadores,
validando-os. Esta é a herança cultural e artística que recebemos da revolução
russa conforme nos chegou pela via francesa do marxismo cultural e dos seus
pobres critérios. E é ela que hoje domina o pensamento e as instituições
europeias.
Prefiro
aos pressupostos pós-modernistas os de outro nobelizado, T. S. Eliot, em Tradition
and the Individual Talent, o seu muito recomendável ensaio de 1919, onde o
poeta redefine «tradição», conhecimento profundo da história, arte, da
literatura à pintura, por um lado, e, por outro, a «despersonalização» da
escrita. O passado, diz Eliot, deve ser alterado pelo presente tanto quanto
este deve ser dirigido por aquele.
Só
assim o arco de humanidade que a obra poética e literária deve desenhar nas
suas linhas, será amplo.
A autora escreve segundo a
antiga ortografia
LITERATURA CULTURA NOBEL DA
LITERATURA PRÉMIO NOBEL
COMENTÁRIOS:
Rosa Lourenço: Literatura não
tem sexo assim como qualquer expressão artística. A Cultura é universal. A Arte é neutra em termos de
género, creio. Quando se
defende a quota de pessoas do sexo feminino, creio que é o modo mais correcto
de subestimar e humilhar a mulher. Qualquer
pessoa deve ser valorizada apenas pelo mérito, pela qualidade, pela
experiência, pela inovação e nunca por ser do sexo feminino ou, para ser mais
actual, transsexual, etc.
Rui Lima: O
drama é que a Academia funciona em modo politicamente correcto por isso há
escritores à partida excluídos e não posso de deixar de pensar em Michel
Houellebecq. Pontifex
Maximus: O
Nobel da literatura está destinado a gente de esquerda ou de temáticas do
agrado dessa gente. Só isso permitiu que um medíocre como o Saramago assim
enriquecesse.
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