sábado, 8 de outubro de 2022

Desassombro crítico

 

De Eugénia de Vasconcellos, no seu vigor de escrita, segurança de ideias, independência crítica, que, naturalmente exigem uma forma criativa menos dependente do status em moda, o qual estatui os componentes ideais para uma criatividade “à la page”, com os elementos do apreço segundo uma perspectiva de esquerda e que Eugénia de Vasconcellos denuncia corajosamente, no seu modus faciendi deturpador da arte literária, que busca o reconhecimento galardoador da obra criada, menos por real criatividade do que por avidez no prémio.

Nobel da literaquê?

O menor dos incómodos neste previsível Nobel será aquilo que se identifica como escrita feminina. Literatura feminina. Quando é preciso dar um género à literatura, ela já encolheu.

EUGÉNIA DE VASCONCELLOS  Poeta, ensaísta, escritora

OBSERVADOR, 07 out 2022, 00:1612Subscrever

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Escrevo à quarta-feira o texto que o Observador publica na sexta. Esta semana, porém, escrevo-o intencionalmente um dia depois, logo após o anúncio do prémio Nobel da Literatura e antes, penso, da imprensa portuguesa fazer o clássico exercício laudatório, desta vez a Annie Ernaux.

Devo confessar que na senda de Toni Morrison, e salvo raras e belas excepções, não tenho a melhor impressão da escrita do eu, seja sob a forma de auto-biografia ou de auto-ficção, mesmo nesta abordagem francamente superior de Ernaux, de pretensão mais clínica, socio-histórica, em que desloca o eu para o tempo onde essa primeira pessoa do singular se transforma e dilui num putativo nós circunstancial e nas suas dinâmicas. As mais internas e as externas, sempre sob o olho multifacetado do observador-observado, do construtor-contruído: o escritor. O mundo passa pela experiência pessoal do mundo. Da culpa sexual à revolução sexual. Do aborto clandestino à legalização do aborto. Dos filhos ao Alzheimer da mãe. Da dominação masculina ao #MeToo. O projecto literário de Annie Ernaux foi e é Annie Ernaux.

Literariamente, este processo de escavação e análise da vida através dos seus artefactos, a triagem dos objectos e a sua classificação à luz dos movimentos sociais e culturais que lhe servem de pretexto auto-refexivo, seja o objecto a parte do corpo sobre a qual o amante ejacula, ou onde encontra a lente de contacto, ou o que comeu e vomitou, não me traz coisa alguma. E creio que será pela própria condição dessa posição de escrita, isto é, dobrada e redobrada sobre si-mesma, a tempo inteiro. Mas percebo que traga muito a uma maioria de leitores comprometidos consigo próprios e com as causas da contemporaneidade. De outra forma, não seria possível ser um sucesso de crítica e de vendas da França à China. Não reduzo o valor documental dos mais ou menos vinte livros de Annie Ernaux. De igual modo, também não elevo o valor desses documentos pessoais e/ou geracionais a arte. Se o objectivo do Nobel era premiar o feminismo através da literatura, dessem-no a Margaret Atwood, uma grandíssima escritora que faz o pleno.

Annie Ernaux tem uma obra de filiação beauvoiriana – se isto se pode dizer – num crescendo para os feminismos posteriores. Às questões existencialistas, ao individualismo, à mulher como construção social e à desconstrução do sentido do eu e do eu sexual, somou as questões levantadas pela geração a que pertence. A que, mesmo vinda da baixa classe média, acede ao ensino superior e se confronta com o emprego que não corresponde às competências académicas, nem às expectativas sociais e económicas, a geração que se opôs ao papel tradicional da mulher e à «tirania do homem», e a que se viu dominada por uma profunda insatisfação pessoal. Todavia, a filiação não garante a alta literatura, por muito que seja consensual. Pode-se fazer alta literatura com esta filiação? Acredito que sim, apesar do solipsismo, com esta ou com qualquer outra. Legítima ou ilegítima – não sei, no entanto, se nos dias de hoje se voltaria a publicar Lolita…

O menor dos incómodos neste previsível Nobel, já que o nome de Annie Ernaux tem sido reforçado ano após ano para este prémio, será aquilo que se identifica como escrita feminina. Literatura feminina. Um estereótipo daquelas que são as preocupações e os interesses das mulheres e o seu alcance. Quando é preciso dar um género à literatura, ela já encolheu.

O maior dos incómodos é a manutenção do establishment pós-modernista. Meia dúzia de mediadores culturais informa uma centena de fazedores de cultura e arte sobre quem e o que é cultura e arte. Os fazedores, expectantes na subida ao pódio artístico e cultural, reforçam as escolhas dos mediadores, validando-os. Esta é a herança cultural e artística que recebemos da revolução russa conforme nos chegou pela via francesa do marxismo cultural e dos seus pobres critérios. E é ela que hoje domina o pensamento e as instituições europeias.

Prefiro aos pressupostos pós-modernistas os de outro nobelizado, T. S. Eliot, em Tradition and the Individual Talent, o seu muito recomendável ensaio de 1919, onde o poeta redefine «tradição», conhecimento profundo da história, arte, da literatura à pintura, por um lado, e, por outro, a «despersonalização» da escrita. O passado, diz Eliot, deve ser alterado pelo presente tanto quanto este deve ser dirigido por aquele.

Só assim o arco de humanidade que a obra poética e literária deve desenhar nas suas linhas, será amplo.

A autora escreve segundo a antiga ortografia

LITERATURA   CULTURA   NOBEL DA LITERATURA   PRÉMIO NOBEL

COMENTÁRIOS:

Rosa Lourenço: Literatura não tem sexo assim como qualquer expressão artística. A Cultura é universal. A Arte é neutra em termos de género, creio. Quando se defende a quota de pessoas do sexo feminino, creio que é o modo mais correcto de subestimar e humilhar a mulher. Qualquer pessoa deve ser valorizada apenas pelo mérito, pela qualidade, pela experiência, pela inovação e nunca por ser do sexo feminino ou, para ser mais actual, transsexual, etc.             Rui Lima: O drama é que a Academia funciona em modo politicamente correcto por isso há escritores à partida excluídos e não posso de deixar de pensar em Michel Houellebecq.            Pontifex Maximus: O Nobel da literatura está destinado a gente de esquerda ou de temáticas do agrado dessa gente. Só isso permitiu que um medíocre como o Saramago assim enriquecesse.

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