sábado, 1 de outubro de 2022

Como sempre, elucidando


Com o preceito devido ao Historiador sapiente e ao Homem Político, de pensamento escorreito. Assim é Jaime Nogueira Pinto, a quem estaremos sempre gratos.

Itália: a vitória do nacionalismo popular conservador

Com claro apoio popular, a hostilidade dos grandes media e Bernard-Henry Lévy e Von der Leyen como árbitros da respeitabilidade das escolhas do povo italiano, talvez Meloni esteja no caminho certo.

JAIME NOGUEIRA PINTO, Colunista do OBSERVADOR

OBSERVADOR, 01 out 2022, 00:2031

No Domingo, 25 de Setembro, uma eleição com forte carga ideológica, bipolarizada entre uma coligação de centro-direita (Fratelli d’Italia, Lega, Forza Italia, Noi Moderati) e uma de centro-esquerda (Partito Democratico, Alianza Verti e Sinistra+Europa), terminou com uma claríssima vitória da direita, que recolheu cerca de 44% dos votos, contra os 26% dos seus opositores.

Importante e significativo é que, na coligação vencedora, a direita mais à direita, os Fratelli de Giorgia Meloni, tenha tido 26% dos sufrágios, ou seja, mais de metade dos votos dos seus parceiros de coligação. Meloni garantiu assim a liderança do bloco vencedor, com 235 parlamentares em 400 na Câmara dos Deputados, e 115 senadores em 200 na Câmara Alta. Duas largas maiorias absolutas.

Na coligação triunfante há várias direitas ou famílias da Direita: a nacionalista popular, dos Fratelli de Meloni, a conservadora identitária, da Lega de Matteo Salvini, a liberal conservadora, da Forza Italia de Silvio Berlusconi, e, finalmente, quase a passar despercebido, o Noi Moderati de Maurizio Lupi, uma sobrevivência histórica do que foi o grande partido centrista da Primeira República Italiana, a Democracia Cristã, dominante entre 1948 e 1994.

Alguma História

Nas eleições de 1968 – há 54 anos – a Democracia Cristã teve 39% dos votos e o segundo partido mais votado foi o Partido Comunista Italiano, com 27%. Em 1976, já com Enrico Berlinguer, o aristocrata que sucedeu aos ortodoxos Longo e Togliatti, os comunistas italianos alcançariam 34,4% dos sufrágios. Democratas cristãos e comunistas eram as duas grandes forças da Primeira República Italiana, em que o sistema proporcional dava voz a todas as tendências e partidos, desde os neo-fascistas do Movimento Social Italiano aos comunistas radicais do Partido Socialista Italiano de Unidade Proletária.

Na eleição fundacional de Abril de 1948 os Democratas-cristãos, de Alcide de Gasperi, com o apoio da Santa Sé e dos Estados Unidos de Truman, chegado aos 48,5%. A coligação de esquerda, uma Frente Popular de comunistas e socialistas, ficara-se pelos 31%. É dessa altura o famoso cartaz de propaganda lançado por Giulio Andreotti, subsecretário da Presidência do Conselho: “Nel secreto della Cabina, Dio ti vede, Staline no

A frase era de Giovanni Guareschi, o criador de Don Camillo, e seria depois popularizada por Fernandel, em Don Camillo e L’Onorevole Peppone (1955). O Partido Comunista de Togliatti era então um partido comunista à antiga, estalinista, de duros costumes, como o Partido Comunista Português de Cunhal.

Depois, Estaline morreu e Togliatti também. A seguir a Togliatti veio Luigi Longo e depois Berlinguer, em 1972; e com ele o Eurocomunismo e, em Itália, o “Compromisso Histórico” entre centristas e comunistas. Mas foi só com a morte de Berlinguer, em 1984, que se iniciou a crise identitária dos comunistas italianos, uma crise que veio a culminar com a queda do Muro de Berlim e com a proposta do então Secretário-geral, Achille Occhetto, de “novos caminhos” para os comunistas. O Congresso de Rimini, de Fevereiro de 1991, acabou com o Partido Comunista Italiano e criou o Partito Democratico della Sinistra. Na divisão, subsistiu o resistente Partito della Rifondazione Comunista.

Nos anos 90, os escândalos Tangentopoli e Mani pulite, revelando a corrupção dos grandes partidos da Primeira República – democrata-cristão, comunista e socialista – levaram a uma profunda crise política que marcou o fim dessa Primeira República Italiana, inaugurada em 1948.

O Partido Democrático, fundado em 24 de Outubro de 2007, resultou da fusão das esquerdas pós-comunistas com o L’Ulivo, de Romano Prodi, um católico progressista que, com as forças sobreviventes da esquerda radical, procurou fazer frente ao centro-direita de Berlusconi.

O vencedor da eleição de 94 foi a Forza Italia, de Berlusconi. Com o fim da Guerra Fria e da União Soviética e os chineses a aparecerem como super-capitalistas de direcção central, estava então na moda, mundialmente, achar-se que a Política podia e devia ser dominada pela Economia e que governar uma nação era como gerir um negócio.

Não era bem a mesma coisa, como se veria, mas Berlusconi ganhou com 43% dos votos.

Em 1996, foi a vez da vitória do centro esquerda, com Prodi e os ex-comunistas, agora pós-comunistas, porque os partidos da Primeira República tinham desaparecido mas os eleitores não. Assim, tal como Berlusconi apanhara os eleitores da democracia cristã e alguns sociais-democratas e se aliara aos pós-fascistas de Fini, o L’Ulivo e o Partido Democrático apanhavam os eleitores comunistas, socialistas e da esquerda da democracia cristã.

A Segunda República caminhou para o bipolarismo centro-direita/centro-esquerda – o centro-direita com a Forza Italia, a Alianza Nazionale pós-fascista de Fini, a Lega Nord e outros partidos menores, unidos na coligação La Casa Delle Libertá; e o centro-esquerda com coligações de geometria variável, ora lideradas pelo L’Ulivo, ora pelo Partido Democrático. Mas esse “bipartidarismo” acabou há dez anos com nova fragmentação. Porque em Itália, como na Europa e no mundo, as forças políticas sistémicas do quase meio século de Guerra Fria não se adaptaram às transformações dos novos tempos.

A globalização e o globalismo, que trouxeram o crescimento económico na Ásia, trouxeram também a desindustrialização e o congelamento e a regressão da renda das classes trabalhadoras e das classes médias na Europa e nos Estados Unidos. Seguiu-se a crise das identidades e soberanias nacionais europeias perante a imigração descontrolada, a escalada dos poderes de Bruxelas, a desnacionalização das economias nacionais – e a reacção ao poder estratégico das novas esquerdas, agora empenhadas na imposição de projectos hedonistas, anticristãos e experimentalistas para reescrever ou cancelar a História e a humanidade.

A ausência de resposta dos partidos tradicionais a estes problemas e desafios e o abandono pelas esquerdas das classes trabalhadoras explicam o aparecimento e o triunfo de novos partidos. Só na Anglo-América o sistema bipartidário e as suas consequências em termos de mecânica eleitoral permitiram a sobrevivência dos partidos tradicionais, mas com profundas mudanças na ideologia e na prática.

Nos Estados Unidos, a radicalização foi especialmente evidente – com o Partido Republicano radicalizado no sentido do conservadorismo identitário, como reacção aos efeitos do globalismo, da desindustrialização e da radicalização do Partido Democrático, dominado pelos delírios das novas esquerdas.

Razões da vitória

Foi com esta vaga de fundo que os Fratelli d’Italia e Giorgia Meloni, com uma agenda nacionalista, cristã, conservadora, justicialista e anti-globalista, multiplicaram seis vezes, em quatro anos, o apoio entre os italianos. O que parece ter chocado muita gente. Até por cá.

 Também aqui, os juízos de políticos, comentadores e pivots sobre as eleições italianas conseguiram superar todas as expectativas, mesmo as mais pessimistas; com o desconhecimento de conceitos básicos – do que são o fascismo, o nacionalismo, o populismo, o conservadorismo, a Direita, a extrema-direita – a tocar a indigência.

Tudo foi e é falado, citado, misturado, numa confusão em que é difícil distinguir a ignorância da má-fé. Meloni e os partidos da coligação “de extrema-direita” são fascistas; já os partidos da “coligação democrática” não são nem estalinistas, nem trotskistas, nem coisa alguma. E porque é que Meloni é “populista”? Porque “cavalga o descontentamento do povo” e “faz promessas que não pode cumprir”, chegou a esclarecer um deputado do Partido que nos governa.

Mas o pior ainda é o moralismo, o maniqueísmo, a permanente afirmação de rectidão moral e cívica perante as “coisas terríveis” que podem vir, ou que estão para vir – como se não estivéssemos já estruturalmente mergulhados em muitas outras, e bem mais concretas, coisas terríveis. Pouco importa: em Portugal os “cidadãos vigilantes” parecem preferir alertar-nos para outros perigos, denunciando, na Suécia, os nazis; em Itália, os fascistas; em Espanha, os franquistas; na Hungria, as malfeitorias do abominável Orbán; e na Polónia, a tenebrosa reação católica.

De resto, com todas estas terríveis iliberalidades prestes a acontecer por essa Europa fora, é natural que, aqui, a nossa cinquentenária democracia estremeça e sofra – ou rejubile, com a nostálgica possibilidade de um papão, de um velho inimigo que a distraia e distraia o povo das reais misérias que o assolam. A crer nos alarmados comentários, parece que o fascismo vem mesmo aí; e vem como na velha canção, “ora com botas cardadas ora com pezinhos de lã”, para acabar com tudo o que é bom e justo e próspero e puro e generoso; vem qual minhoca que ameaça infiltrar-se na impoluta maçã democrática – e logo no coração da União Europeia.

Tentemos raciocinar: o fascismo triunfou em Itália em Outubro de 1922. Era um movimento fundado por um ex-socialista revolucionário, leitor de Maquiavel, de Nietzsche, de Pareto e Sorel, levado pela questão nacional a abandonar o socialismo. O fascismo movimento e o fascismo regime foram totalitários, anti-democráticos, anti-liberais. Tiveram imitadores por toda a Europa e, na Alemanha de Hitler, transmutaram-se em nacional-socialismo, uma doutrina radicalizada num messianismo etnocêntrico levado a extremos apocalípticos singulares e intransmissíveis.

O fascismo italiano nasceu de uma conjuntura de guerra civil de baixa intensidade numa Itália traumatizada, como toda a Europa, pela ameaça comunista e pelo espectro do genocídio de classe na Rússia. Mas cem anos depois a conjuntura é outra. Se não, se não for outra, se é, como sugerem, de uma simples repetição que se trata, se, com Meloni, vier de facto aí o fascismo, então teremos também de nos precaver e alarmar à esquerda, não vão os normalizados partidos da esquerda radical, convertidos à Europa dos novos “direitos humanos”, livres do passado e de cercas sanitárias, apanhar-nos de surpresa e impor-nos um comunismo à antiga.

A nova direita italiana – como algumas das novas direitas populares europeias – define-se por valores nacionais, cristãos, europeus e de justiça e solidariedade social. E define-se sobretudo pelos seus inimigos – o globalismo, o multiculturalismo, as políticas radicais de policiamento da linguagem, de cancelamento da História e de refundação experimentalista da humanidade.

 Ao contrário do que, geralmente, acontece na Esquerda, internacionalista, na Direita, nacionalista, o modo de enquadrar os valores comuns é diferente de cultura para cultura, de nação para nação.

De qualquer modo, Meloni – que começou na política, ainda adolescente, na Frente da Juventude do Movimento Social Italiano (o partido neo-fascista de Giorgio Almirante), que seguiu depois a desfascistização de Gianfranco Fini, na Alianza Nazionale, e que veio a fundar, em 2014, os Fratelli d’Italia – foi claríssima quanto ao lugar do fascismo e de Mussolini:

“O fascismo é um momento da nossa História nacional e Mussolini é também uma personagem histórica.” Não fugia à questão, limitava-se a lembrar a pertença ao passado de uma realidade aos que, por maniqueísmo, e perante a vaga europeia de resistência a alguns dos seus “dogmas estabelecidos”, não hesitavam em usá-la para pôr em causa a legitimidade da soberania popular (que os “populistas da extrema-direita”, e nunca os “democratas”, sempre manipulavam).

Ouvido pela RAI 3 em vésperas da eleição italiana, um dos mais proeminentes disseminadores de alguns destes “dogmas estabelecidos”, Bernard-Henry Lévy (que Michel Houellebecq descreve como “um filósofo sem uma única ideia original mas com excelentes relações”), não pode ter sido mais claro: caso os eleitores italianos escolhessem a coligação de centro-direita, a escolha não era respeitável e, como tal, não devia ser respeitada.

Também Ursula von der Leyen, antes das eleições italianas, não hesitou em ameaçar com os instrumentos de retaliação financeira de que “a Europa” dispunha uma Itália que “avançasse para uma situação difícil”, obrigando a União Europeia “a agir, como fizemos com a Hungria e a Polónia.

Com claro apoio popular, a hostilidade dos grandes media e Bernard-Henry Lévy e von der Leyen como árbitros da respeitabilidade das escolhas do povo italiano, talvez Meloni esteja no caminho certo.

A SEXTA COLUNA   CRÓNICA   OBSERVADOR   ITÁLIA   EUROPA   MUNDO

COMENTÁRIOS:

V. Oliveira: Como se impunha, uma análise lucida e brilhante! Com as causas e consequências explicadas de forma clara. Onde não faltaram as referências aos dogmas estabelecidos - a cartilha do novo "jornalismo" e dos partidos incumbentes. Obrigado.            Rui Lima: Como sempre o JNP  é de uma claridade que  é um verdadeiro raio de luz na pobre  imprensa nacional , por escrever bem e pelo que escreve . Não ê só em Portugal em toda a Europa há alertas constantes para o perigo dos  Nazis e fascistas  agora com a concorrência do Putin , na realidade nenhum partido identitário põe em causa a democracia, o sufrágio universal  o estado social, a Europa ou o Euro. Estes partidos têm  um programa semelhante ao que tinham os partidos democratas cristãos  que foram os grandes construtores da  Europa  amiga dos trabalhadores, nessa  época as fronteiras eram fronteiras, a realidade é que esses partidos do centro direita hoje abraçaram as causas da esquerda   abandonaram os valores ocidentais por isso estão a ser substituídos .              Nuno Frazão: Brilhante! Como sempre.                João Floriano: «Tentemos raciocinar». Até poderia ser um apropriado subtítulo para esta excelente crónica do Dr. Jaime Nogueira Pinto. O problema é que pedir à esquerda que raciocine ou que pelo menos tente, tem alguns constrangimentos. Para já ainda não se percebeu se a esquerda tem mesmo capacidade para pensar ou até mesmo se é selectiva no objecto do seu pensamento. Já sabemos que pensa e muito nas várias maneiras de insultar quem não é de esquerda e criar narrativas em que os bons pertencem à esquerda e os maus são de direita. Às vezes parece-me que estou perante adultos a recrear na política as guerras infantis de índios e cowboys. Em crianças esse jogo implantou na nossa mente que os bons eram sempre os cowboys e os índios uns selvagens  que urge derrotar. Crescemos e sabemos que é muito mais complicado do que isto. Mas a esquerda não quer saber, convém-lhe a perpetuação da narrativa: esquerda boa, direita má. Daí o burburinho caseiro com o resultado das eleições em Itália e o mau olhado para que tudo corra mal a Meloni sobretudo que seja atraiçoada pelos seus parceiros de coligação, matando todos os coelhos de um só cajadada. A falta de conhecimentos e ignorância histórica de vários comentadores televisivos, a maior parte ficou-se pela rama, pela espuma do colarinho sem ter mesmo provado a cerveja é em muitos casos propositada. Não convém à esquerda esmiuçar o que de facto é o populismo, o nacionalismo, o conservadorismo...... são maléficos e ponto final parágrafo. A esquerda decide por nós e não precisamos de perder tempo a tentar raciocinar. Se Meloni tem razão, se é o caminho ou não, só o futuro poderá dizer. Em vez de Meloni talvez o apelido Volpe (raposa) lhe pudesse ser mais favorável. Giorgia vai ter de ser sagaz e rápida como uma «volpe» associada com «lupi» como Salvini e Berlusconi.            Joaquim Almeida: Lúcida revisão da matéria contra  "a confusão onde é difícil distinguir a ignorância da má-fé". Espero que ainda neste mês de Outubro, se não amanhã mesmo, o Brasil nos dê mais uma vitória do nacionalismo conservador liberal  contra o globalismo socialista e mega-capitalista.  Uma dessas vitórias que fazem relinchar um Bernard H. Levy  metido a besta...           Joaquim Lopes: Como sempre Jaime Nogueira Pinto, limpa a poeira deitada pelos media sem excepção em Portugal e fala claro. Os comentadores, pivots e gente sem ética e os partidos políticos da Geringonça 2 têm razões para se preocupar, mas isso levará decerto a que acelerem o saque nas comissões que levam nos negócios do Estado, muito poucos foram os políticos depois de Abril que não enriqueceram roubando o Estado, são os Lulas de cá.  Ursula von der Leyen não pode imiscuir-se na política interna das Nações e dos Estados, a UE não é uma Federação, deveria demitir-se e o Parlamento Europeu deveria exigir a sua demissão, pela falha na política energética, pela falha na questão da guerra no Leste e pela desindustrialização e por ser defensora do globalismo e apoiante se não agente da RPC. Ursula von der Leyen está num cargo não eleito numa decrépita UE. Foi ministra de Merkel, fez um mau trabalho na pandemia apenas serviu a Pfizer, apoia a destruição do tecido produtivo na Europa. A Itália é um país onde a indústria ainda terá recuperação, sempre foi diferente da Alemanha que destruiu a indústria alemã e o saber fazer. O saber fazer, o trabalho industrial e técnico está a perder-se a uma velocidade assustadora, ficamos dependentes da emigração que deverá ser  escrutinada pelos serviços de informação, pelos vistos por cá destruídos para entregar a uma força que tem demasiadas funções a GNR. Por que cá os jovens nem sabem para que serve uma chave de fendas.                     João Ramos: Há uma coisa que os senhores (ou senhoras) da Europa têm que perceber, é que a Europa está a mudar e por via das próprias populações que estão fartas de lhes tentarem, irresponsavelmente, impingir teorias e “hábitos “ que pouco ou nada têm que ver com as suas raízes e por isso reagem de acordo com partidos que os conseguem entender e que eles (as populações) entendem, está claro como água, só não vê quem não quer ou é mal intencionado…            Luis Ferreira: Seria uma pena que as crónicas deste homem não fossem publicadas.

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