sábado, 15 de outubro de 2022

“Dinossauro Excelentíssimo”

 

“Dinossauro Excelentíssimo”

O meu interesse pela leitura iniciou-se com os livros infantis que o meu pai nos enviava de África, para a aldeia onde vivemos durante a guerra. Livros belos, de encadernações sugestivas, que guardei através da vida, extraídos dos filmes de Walt Disney a que se juntaram, em África, os livros emprestados pelas amigas e até os consultados nas bibliotecas. A adolescência fez-me vibrar com os livros sentimentais da Magali, Delly ou Max du Veuzy, da Maria Luísa Linares, da Concha Linares Becerra, mas depressa os livros sérios da Europa-América, além, é claro, dos que o meu pai tinha na sua estante, entre os quais todo o Júlio Dinis, o Alexandre Herculano, Silva Gaio, e os encantadores de Virgínia de Castro e Almeida, com os de leitura obrigatória do liceu, formavam a panorâmica, reconheço que não muito vasta, do meu crescimento intelectual. O convívio posterior com os colegas do secundário e a opção por românicas trariam novas achegas literárias de progressivo prazer, a que se acrescentaram os Astérix e os Tintins, já então estando eu a leccionar, e lembro-me bem dos risos e prazeres dessas leituras de engenho e graça. Mas outros momentos de gosto literário surgiram com as peças – sobretudo – de Sartre, e as leituras de Simone de Beauvoir, para além dos romans-fleuve, o teatro francês e outras obras de que a literatura francesa foi manancial de prazer, entre os escritores russos, mais ou menos sombrios, que não chegava a completar, por, limitada que sou, não amar, como Régio, “ o Longe e a Miragem, e os abismos, as torrentes, os desertos...”, mas as coisas banais de um mundo banal ou menos, como as ligadas às ilusões – ou realidades - de felicidade e bem-estar, por efémeros que sejam.

Tudo isto vem a propósito de um livro que comprei em 1973, que comecei a ler na altura e pus de parte, já então repugnada pela intenção maldosa de uma espécie de alegoria criada em torno da figura de Salazar, e em que voltei a pegar, sem, contudo, desfazer essa impressão primeira de asco. Eu também lera “La Nausée”, de Sartre, “L’Étranger” de Camus, “O Processo” de Kafka, confesso que opressivamente, os livros dos escritores franceses, contudo, com uma disposição de espírito mais aberta, não só pela graça de alguns episódios, como pela filosofia existencialista que pretendiam demonstrar, Sartre com o saber firme e espectacular do seu engenho criativo e filosófico, a figura do “Meursault” do Camus, pródiga em características cómicas, a começar pelo seu início, de narrador/personagem principal – “Aujourd'hui maman est morte. Ou peut-être hier, je ne sais pas”. “O Processo”, todavia, li-o com reticência sombria, como mais tarde leria o “1984” de George Orwell pela criação de uma sociedade de ostracismo absurdo e repugnante, que hoje, talvez, já não me atreveria a reler.

Mas, como há pouco transcrevi uns textos sobre Salazar, figura superior da nossa História Pátria, peguei no livro de Cardoso Pires, apenas para me confrontar com o maquiavelismo de um pseudo-retrato hediondo, que fez da alegoria – baseada nos dados biográficos de Salazar – um quadro que só aponta para a miséria moral, pese embora o trabalhado criativo, do autor do mamarracho.

Não, não vou debruçar-me sobre esse “Dinossauro Excelentíssimo”, apenas aponto a fealdade do carácter de quem o escreveu, nele vertendo o seu ódio – contrariamente à criatividade dos escritores surrealistas anteriores, descrevendo racionalmente uma sociedade de deficiente carisma em que nos movíamos e movemos, sombria, naturalmente, mas imparcialmente descrita.

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