domingo, 23 de outubro de 2022

“Vai-te encher de moscas”


Não será mais insulto mas uma ordem carinhosa ao pobrezinho que nos pede esmola, ou mesmo ao nosso filhinho ou a outro qualquer ser da nossa amizade esfomeada.

Entregues à bicharada

Prepara-se um imenso amanhã repleto de grilos crocantes, autocarros em greve, frio, cobertores, clausuras a pretextos sortidos. E escuridão. Entrámos num século sem luzes, figuradas e literais.

ALBERTO GONÇALVES Colunista do Observador

OBSERVADOR, 22 out 2022, 00:2457

Açúcar? Mata. Sal? Esfola. Hidratos? Engordam. Carnes vermelhas? São um perigo. Gorduras? Nem a brincar. Peixe? Não alimenta. Marisco? Provoca gota. Lacticínios? Avariam o fígado. Vegetarianismo? Uma moda inconsequente. Removidos os venenos citados, a alimentação fica entregue à bicharada. Não falo de frangos e perus, cuja criação evidentemente favorece as alterações climáticas. Falo de insectos.

Falo de insectos porque não se tem falado o suficiente, porque amanhã se celebra o Dia Mundial do Insecto Comestível e porque no próximo dia 27 se realiza, em Leça da Palmeira, a 4ª edição das comemorações do Dia Mundial do Insecto Comestível, a cargo de uma entidade chamada Portugal Insect. Parece-me grave que semelhante iniciativa não convoque a atenção suscitada por um Mundial da bola ou assim. Na página de Facebook da Portugal Insect, a notícia do evento tinha, à hora a que escrevo, 32 “gostos” e 11 comentários, na maioria negativos e enojados. Para cúmulo, apesar de algumas reportagens televisivas, os “media” não ajudam à divulgação. Eu ajudo.

O programa de dia 27, a decorrer no Clube de Vela Atlântico, é o seguinte: 9.30: Abertura; 10.00: Apresentação da Portugal Insect e do sector; 10.15: Sessão Técnica – Produção de insectos; 11.15: Coffee Break; 11.45: Workshop – Utilização de insectos em produtos alimentares; 13.00: Almoço; 14.00: Sessão técnica – Transformação e utilização de insectos; 14.30: Perspectivas internacionais do sector dos insectos como fonte nutricional; 15.00: Mesa redonda; 16.00: Encerramento. O preço da inscrição são meros 120 euros, leia-se a doação do dr. Costa com folga para uns rebuçados de gafanhoto que, lá em casa, farão a alegria da petizada. O cartaz da coisa é ilustrado com a imagem do que julguei serem larvas. Investiguei e descobri que afinal são tenébrios. O que são tenébrios? Investiguei outra vez: são larvas.

Provavelmente, os afortunados participantes do evento almoçarão aquilo que surge no queijo ou no bife quando os esquecemos à temperatura ambiente. E o melhor de tudo é que começam por aí a vender-nos a ideia de que, em breve, boa parte da humanidade almoçará o mesmo. Nem o proverbial atraso português impediu a cantina do Politécnico de Lisboa de servir “chocolates” e “hambúrgueres” confeccionados a partir de familiares da lombriga. E, pelo mundo civilizado afora, comer larvas e grilos ameaça tornar-se banal. Ou pelo menos garantem-nos que sim, a fim de nos convencer. As Nações Unidas, que nunca falham, andam desde 2013 a promover essa alternativa “sustentável” e “nutritiva”.

Por mim, nem por um instante duvido que os insectos sejam a comida do futuro, até porque no passado é preciso recuar uns séculos, quiçá uns milénios, para encontrar europeus que fizessem disso, digamos, o prato principal. Falta de hábito, um óptimo hábito. Por pura ignorância, sempre que reclamamos de uma mosca na sopa pretendemos sugerir que a criatura está ali a mais. Não tarda, reclamaremos que há apenas uma mosca na sopa. Basta que a mensagem da ONU se entranhe, ou que a escassez e o preço dos alimentos tradicionais os tornem inalcançáveis, de acordo com o que acontecer primeiro.

A bem do planeta, espero que, o que quer que aconteça, aconteça depressa. E não me refiro só aos alimentos. É óbvio que, nos diversos aspectos da vida corrente, existe uma abençoada inclinação para remover as massas brutas do caminho da perdição em que nos enfiáramos. Felizmente, nos lugares de decisão temos elites por definição esclarecidas que sabem o que nos convém e que, com maior ou menor gentileza, nos orientam para esse radioso destino. Após milhares de instrutivas viagens em jactos privados e inúmeros banquetes reflexivos, que o corpinho mimoso do eng. Guterres não se fez à custa de tenébrios nem se mantém a pedalar velocípedes, as elites concluíram: não se admite que, em 2022, ainda haja gente a deglutir panados de porco, a deslocar-se em automóvel particular, a ter automóvel particular, a aquecer ou a resfriar a casa conforme lhe apetece, a acender lâmpadas ao calhas, a fazer compras aos domingos e a comprar o que, dentro do possível, escolhe. A sorte é que a probabilidade de tal bandalheira continuar em 2023 é baixa.

Não é à toa que os supermercados desataram a fechar a cadeado as latas de conserva, um luxo que arruína os oceanos. A tendência Outono-Inverno já se prevê amiga do ambiente. Daí em diante, prepara-se um imenso amanhã repleto de grilos crocantes, autocarros em greve, bicicletas, frio, cobertores, clausuras a pretextos sortidos. E escuridão. Graças à lucidez dos senhores que mandam, entrámos num século sem luzes, figuradas e literais. Até que enfim: a Terra não podia esperar. Esperamos nós, sentados no breu da sala gelada a petiscar larvas. Um dia, as larvas petiscam-nos de volta. Todos acabamos entre bichos.

FUTURO   TECNOLOGIA   PLANETA TERRA   NATUREZA   AMBIENTE   CIÊNCIA

COMENTÁRIOS:

Fernando Cascais: Atenção, a evolução passou precisamente por alterações significativas na alimentação. Supostamente saímos de cima das árvores para o chão porque passámos a ser carnívoros. Passámos a andar de pé para podermos espreitar a caça. A nutrição é fundamental na nossa evolução ou involução. A fome cria sub-nutrição e um retrocesso significativo na aprendizagem e desenvolvimento. A fartura por sua vez traz a preguiça e doenças relacionadas com a obesidade. Se o destino do Homem são as estrelas - se ficarmos por aqui a sopa primordial vai chegar ao dia em que começa a ferver - a alimentação que nos levará nos foguetões não será, obviamente, à base de carne e peixe. Se conseguíssemos dobrar o tempo e espreitar o Homem (não tarda teremos que escrever Mulher) no século XXX, qual o aspecto que teria (caso sobrevivesse e continuasse a evoluir)?

Se somos mais altos do que os nossos pais, sempre mais protegidos dos perigos e cada vez mais sintéticos, dentro de 900 anos seremos muito diferentes, uma espécie nova com uma alimentação totalmente diferente da que conhecemos hoje. A evolução, sem dúvida, que passa também pela alimentação, com larvas ou sem larvas, esta que temos tem os dias contados.                António Lamas: Adorei a crónica.  Chamou-me a atenção para o assunto, pelo que vou estar presente no evento, devidamente equipado com mata-moscas, insecticida e repelente.                Ana Martins: Na mouche. Como sempre!              Maria Clotilde Osório: Muito bom. A bicharada que nos (des)governa talvez pudesse era ser "cozinhada"               Eduardo L: Muito bom. Continuo a dizer: isto é como rã posta num tacho de água a aquecer. Quando der por ela, não saltou fora e já está cozida. Quem ainda não percebeu o que se está a passar a nível global com impacto nas nossas vidas quotidianas é tempo de acordar. Desde a patranha covid, passando pela agenda ‘verde’ até às ‘sanções’ à Rússia que estão a disparar para trás com estrondo isto não leva bom caminho. Resultado, inflação galopante, empobrecimento e uma crise energética sem precedentes. Era tudo evitável? claro que sim. Sem ser conspirativo parece definitivamente haver uma agenda nefasta por detrás de tudo isto. Em direcção aos amanhãs que cantam, versão século XXI. Mas tal como a rã as pessoas não parecem dar por isso e aplaudem. Até ser demasiado tarde. Glorioso SLB Então mas o planeta ñ estava a aquecer? E o Inverno afinal vai ser frio. Já ñ se pode confiar nos “mentereologistas”!                    João Floriano: Excelente! Constato no entanto que na ordem de trabalhos do  Insect Summit ou lá o que é devia figurar uma palestra sobre os insectos na política. E olha que há mesmo muitos: moscas varejeiras, grilos falantes, cigarras e formigas, baratas tontas... em estado adulto e estado larvar ( estou a referir-me às juventudes partidárias em formação). Num futuro muito próximo não poderemos mais reclamar se encontrarmos uma mosca a nadar na sopa (há grilos que nadam em Cascais). Como dizia a minha falecida mãezinha: é o conduto.          Américo Silva:  Crónica soberba, nem toda com a mesma qualidade, a perfeição absoluta não é humana, destaco: Após milhares de instrutivas viagens em jactos privados e inúmeros banquetes reflexivos, que o corpinho mimoso do eng. Guterres não se fez à custa de tenébrios...               Cipião Numantino Bem esgalhado este tema do nosso estimado AG! E esse simpósio, workshop ou lá como se chama, deve transparecer mais como um paradeiro de lesmas ou mesmo de caracóis, diletos comparsas de jornada tendo a rapidez como lema. Pessoal, difícil saber o que nos vai acontecer daqui a uns séculos e, então, se for daqui a milénios, convenhamos, já tenho dúvidas se seremos nós a comer os insectos ou se serão estes que nos comerão a nós. De resto as teorias darwinianas pouco se aplicarão ao caso em apreço já que a evolução, hodiernamente, se faz a golpes de maneios híbridos e as galápagos da vida não mais terão sossego para seguir a ordem natural das coisas. Uma certeza eu tenho por adquirida e esta é que a "ordem social" dos insetos é bem capaz de ser bem mais consistente que a nossa. Andam por aqui há muitos milhões de anos a mais do que nós e, em resumo, acho que terão significativamente mais chances de sobrevivência nos cataclismos cósmicos que "in ilo tempore" advirão. Seja como for não há como fazer esquecer o que sucederá a jusante desta equação. Entre outras questões, o nosso trato digestivo, está exclusivamente adaptado a grandes comezainas desde os tempos do caçador/recolector e uma dieta exclusiva à base de insectos suporia uma adaptação em contraponto à natural evolução física que nos precedeu. Ou seja (desculpem o meu francês) isso de só comermos insectos colocar-nos-ia a kaggar demasiadamente fininho, o definhamento e o mirrar intestinal estaria assegurado e a alteração do trato digestivo colocar-nos-ia em confronto com a evolução natural do organismo que tem feito escol desde há muitos milhões de anos. Os reis de antanho desde sempre quiseram fazer transparecer isso mesmo. E as suas reais kaggadelas eram transportadas secretamente por criados, para que não se soubesse que os seus igualmente reais kagueiros defecavam precisa e exatamente igual aos seus prolíficos plebeus e serventuários. Não! Não me convenço que lesmas, caracóis, melgas, grilos ou mosquitos vários sirvam de menu principal. Permanecerão certamente no cardápio como meras entradas e que servirão de refeição principal em meras ocasiões de remanso sempre que a feijoada à transmontana nos aconselhar ao repouso do comilão guerreiro que existe em todos nós. No mais, mesmo a febre vegetariana não me convence por aí além. E enquanto, entre outras adendas, alguém não me explicar qual a razão por que jovens moças vegetarianas têm todas umas barriguinhas salientes de tísicas, minha gente, será mais difícil converterem-me ao vegetarianismo do que aliciarem todos os seguidores de Mafoma a abocanhar diariamente uns saborosos e nutritivos nacos de toucinho. Modas, meus caros! Meras modas passageiras que fazem acreditar almas simples ou mesmo simplórias que sangrar corpos como antigamente se fazia é o caminho certo para a cura de todas as doenças. Deixai-os poisar! Eles que se deliciem com lombrigas enquanto eu fico no recato da cervejaria Portugália degustando o belo bife com ovo a cavalo. Quando muito, só fujo de restaurantes chineses se vir cães ou gatos abandonados na zona e olho com zeloso desdém para as prateleiras de sushi que, isso do cru, o "rapaz" que sou eu, não acha definitivamente graça mesmo nenhuma. Em contraponto aos adoradores de insectos vou continuar a permanecer atento a ver se me caiu uma mosca na sopa. E, se assim for, empurro-a para o lado da mesa que essa de insectívoro não é para o filho de pais que já marcharam e serviram de repasto a esses que pretendem agora que eu os venha a comer. Toda a casa senhorial romana tinha uma espécie de vomitadeira onde, patrícios empanzinados vomitavam o que tinham comido e bebido em excesso para imediatamente voltarem para o triclinium onde iniciavam de novo nova e lauta refeição. Esses, sabiam-na toda. Insectos? Tenham dó! Desapareçam daqui oh melgas!...           Maria Clotilde Osório >  Fernando Cascais: Nada contra a perspectiva evolutiva. Tudo contra a teoria evolutiva apresentada. Cientificamente já não é considerada como sendo correcta. Nesse tipo de teoria, os homens na Amazónia e nas florestas tropicais viveriam ainda nas árvores ou de forma muito semelhante aos hominídeos originais e não, como foi o caso quando os Europeus chegaram a essas paragens, de forma muito semelhante à nossa (grupos organizados e em "casas"). O mesmo acontecia aos povos das ilhas do Pacífico. Não desmerecendo, a evolução genética ainda é um factor muito pouco estudado no que concerne ao nosso passado enquanto animais descendentes de seres unicelulares. A teoria da evolução de Darwin que ajudou a ciência e o conhecimento a evoluir está em grande parte ultrapassada. Não se entenderia porque é que os símios actuais se deixaram ficar lá por cima. Que o meio ambiente influencia o nosso desenvolvimento assim como a alimentação não há qualquer dúvida. Que os seres humanos que durante milénios tiveram os insectos como parte da sua alimentação não sofrem de qualquer desvio nem morfológico (maior ou menor estatura, dedos mais compridos, dentes mais pequenos ou menos dentes, etc) nem intelectual é um facto. E não seremos diferentes em aspecto no séc XXX como não éramos no séc X (a média mais pequena em estatura mas já havia muitos com alturas superiores a 1,90m) como o demonstram quer relatos escritos quer armaduras. No restante éramos iguais. E se recuarmos ao séc X a.C. encontramos os mesmos homens com uma alimentação bem diferente e os mesmos problemas (gordos e magros, inteligentes e néscios, altos e baixos, etc)                Francisca Gusmao: Muito bem dito.

 

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