quinta-feira, 6 de outubro de 2022

“Na Terra, tanta guerra…”

 

Um artigo corajoso de uma mulher corajosa, cisne branco fraternal ocidental, informando e defendendo, com altivez e precisão - se bem me lembro, de quando vivi de longe os sofrimentos do Xá e repudiei, no sofá da indignação, as bestialidades tacanhas de Khomeini e seus acólitos, que ainda têm seguidores hoje… EUGÉNIA DE VASCONCELLOS, poeta, ensaísta, escritora. Mulher de saber e coragem.

Entre o véu e a bomba, cisnes negros

O Irão é o exemplo da escolha entre dois males, escolhido que foi o maior deles. Como é do activismo marxista ocidental levado a cabo em campo e nos media, idiota útil ao serviço do que desconhece.

EUGÉNIA DE VASCONCELLOS Poeta, ensaísta, escritora

OBSERVADOR,  30 set 2022, 00:169

Às vezes, tantas vezes, muitas mais do que aquelas que desejaríamos, a escolha possível é entre dois males. Recomenda o bom senso a escolha do menor dos males na expectativa de progredir a partir dele até ao aceitável e, posteriormente, ao bom. Lenta, progressiva e seguramente.

Acredito que esta escolha conservadora e sustentada pela moderação, uma virtude perdida, pareça inaceitável a qualquer radical de sofá dos dias de hoje e cujas causas se medem em ressentimento histórico, fragmentação social, likes e partilhas. No entanto, o tempo como a história têm demonstrado à saciedade as consequências das utopias de papel uma vez realizadas. Da União Soviética à Alemanha Nazi.

E no Irão repressivo, aterrorizador, por onde, há 43 anos, os mulás se passeiam impunemente enquanto submetem, insultam e humilham as mulheres e aprisionam o país e o povo nas trevas. O Irão é o exemplo da escolha entre dois males, escolhido que foi o maior deles. Como é igualmente o exemplo do activismo marxista ocidental levado a cabo em campo e nos media, idiota útil ao serviço do que desconhece. Activismo radical que terá satisfeito, à data, no fim dos anos 70, a União Soviética, os seus agentes, os seus aliados: os clérigos islâmicos radicais e os tradicionalistas.

As circunstâncias têm raízes fundas, não podem compadecer-se de estados de alma, da volatilidade das emoções, da desinformação ou qualquer outra forma de manipulação, seja através dos media ou das redes sociais.

Os radicais de sofá de hoje, de Chomsky a R. Waters e discípulos, que repudiam a resposta ucraniana e dos países ocidentais e da NATO à Rússia de Putin, sem a menor empatia pelo sofrimento de um povo, enquanto se condoem, e bem, diante da violência escabrosa que matou Masha Amini e, de acordo com informações da IRH, mais de 57 pessoas nos últimos onze dias, são os mesmos, se não em carne pelo menos em espírito, que colaboraram na entrega do Irão a estes extremistas religiosos que o destruíram. Onde está a capacidade para assumir responsabilidades, aprender com os erros? Onde?

Sabemos todos que cometemos erros de avaliação e que estes nos levam a más decisões e às suas consequências. A redenção está na aprendizagem: mais conhecimento, melhores decisões. Nem por isso assim acontece como, infelizmente, vemos nas tomadas de posição ditas pacifistas no que à Ucrânia diz respeito.

O governo do Xá era corrupto? Sim. Era uma autocracia? Sim. Reza Pahlavi estava numa deriva repressiva? Sim. As assimetrias económicas eram profundas? Sim. A inflação, como o crescimento económico, dispararam? Sim. Fazia parte da arquitectura de segurança ocidental a manutenção do Irão como cliente dos Estados Unidos? Sim. O Irão era o garante de petróleo face ao embargo da OPEC em 73-74? Sim. Era um bastião pró-ocidental no equilíbrio precário do Médio Oriente? Sim. Tudo isto é verdade.

Como é igualmente verdade que, na senda de Ataturk, se caminhava para a modernização e industrialização do país; se vivia a expansão dos direitos das mulheres, inclusive eleitorais e parlamentares; a abertura do acesso à saúde e à educação; e a necessária sujeição da igreja ao Estado – por isso a utilização obrigatória do véu foi banida, por isso é importante que o véu, sinal de submissão, arda, e é um acto de comovedora e extraordinária coragem: o corpo da mulher sempre foi um lugar político e religioso, do oriente ao ocidente. Das mulheres veladas às mães da pátria. Dos ventres sagrados aos direitos reprodutivos.

No dia 8 de Março de 1979, em Teerão, as mulheres saíram à rua para protestar contra o uso obrigatório do véu, um presente da República Islâmica do Irão e do seu supremo líder, Khomeini, cujas palavras foram: «uma mulher não usar véu, é apresentar-se nua». E saíram para protestar o que o véu representava: a retirada das mulheres dos locais de trabalho diferenciados, das universidades, das ruas; o retorno à permissão de voltar a casar as mulheres a partir dos 9 anos de idade, entre outras vilezas, qual delas a pior. Saíram para protestar o apagamento das mulheres da vida pública, o seu silenciamento. Durante os seis dias de protestos, estiveram na rua cerca de 100.000 mulheres, muitas foram espancadas, apedrejadas e esfaqueadas até com vidros partidos. Aconselho as belíssimas fotografias tiradas por Hengameh Golestan, nas ruas de Teerão. Mulheres confiantes da sua voz, de cabelos soltos, de saias curtas, óculos escuros, enfermeiras e professoras de batas… podiam ser as fotografias das nossas mães.

O impensável também acontece: um país rico em petróleo, com uma posição estratégica privilegiada, entre a União Soviética e o Golfo Pérsico, entre a Europa e o Médio Oriente, em processo de modernização, pode transformar-se numa teocracia e retroceder séculos num só ano. O que não se previu nem se pôde acautelar, é o cisne negro. A teocracia iraniana saída da revolução contra o Xá, por exemplo.

Mas o assassinato de Masha Amini também revelou um cisne negro.

Putin que, para os marxistas/wokistas do costume se viu obrigado pela NATO e pelos Estados Unidos, com a conivência da União Europeia, a invadir a Ucrânia, também revelou um cisne negro: Zelensky e o povo ucraniano. Encurralado que está agora, Putin espreita o nosso inverno: que a crise económica e energética, com a inflação a crescer e a recessão à espera, nos desuna a partir das nossas dificuldades e o favoreça. Se isso falhar, a anexação justificará o ataque nuclear, a menos que a China o impeça.

Ou um cisne negro.

PS: Aconselho o visionamento do vídeo com as filmagens feitas a 8 de Março, em Teerão, no link acima. É um documento único onde é dada voz às protagonistas dos protestos: as mulheres na rua. Aconselho também o livro de Nassim Nicholas Taleb, The Black Swan: The Impact of the Highly Improbable, sobre os acontecimentos altamente improváveis e o seu fortíssimo impacto, que o autor denomina «cisnes negros».

A autora escreve segundo a antiga ortografia

IRÃO   MÉDIO ORIENTE   MUNDO   MULHER   SOCIEDADE

Maria Augusta Martins: Cara senhora: A meu ver está a fazer uma leitura ás avessas, O Komeihni foi apoiado pela França, e pelas "democracias" europeias. Os soviéticos pouco tiveram a ver pois ainda era recente as atitudes que tiveram para com os persas. Os Estados Unidos que apoiavam o xá resolveram tirar-lhe o tapete para pressionarem o mercado do petróleo. Saiu-lhes o tiro pela culatra e pagaram bem caro e continuam a pagar essas democratices. Quem não vai de modas e sabe da poda são os israelitas!                 José Tomás: A visão que a autora tem do Irão e da Turquia é a ocidental, e pressupõe que o que é ocidental é, necessariamente, melhor. Não discordo dessa opinião (é a minha, também), discordo é de a impor aos outros. As 100 mil mulheres das belas imagens no link para onde remete, eram uma gota de água na sociedade iraniana. Teerão tinha 5 milhões de habitantes em 1979, 10 se contarmos os arredores. Aquelas mulheres eram de uma burguesia urbana, que representava 5%, se tanto, da sociedade iraniana, que olhava para elas, e para os restantes "sinais de progresso" que lhes eram impostos, com estranheza e hostilidade. Por isso, a tese de que o regime corrupto do Xá e o seu projecto de "ocidentalizar" o Irão era "melhor" do que o regime que vigora desde 1979 (tal como o de Ataturk será melhor que o de Erdogan) é, meu ver, condescendente com um povo que não é só composto dos iluminados que pensam como nós. Uma pessoa que se diz "conservadora", deve ter presente que "avanços sociais" impostos à bruta por elites "progressistas" podem causar uma reacção ainda mais gravosa do que os "males" que querem combater. No Irão, em 1979, no Ocidente, em 2022.                Francisco Tavares de Almeida > José Tomás: No geral concordo consigo mas não faria equivalências entre Turquia e Irão, nem sequer entre Ataturk e Reza Pahlevi. Aliás a comparação possível - consideradas as circunstâncias - seria entre o pai do Xá e Ataturk e aí as diferenças são imensas. Para mim a maior semelhança política entre Irão e Turquia é que ambos os regimes actuais são produto de erradíssimas políticas ocidentais, com França, EUA e Alemanha como principais autores.              José Tomás > Francisco Tavares de Almeida: A comparação é feita no artigo e não me parece descabida. Afinal, trata-se de dois autocratas de dois impérios islâmicos "decadentes" que, sem quaisquer escrúpulos (não é uma crítica, mas uma constatação), se propuseram moldar nações a partir de estados multi-étnicos e modernizá-los através da "ocidentalização" dos costumes. E quanto a Erdogan, a meu ver, não só não é um "produto das políticas ocidentais", como, pelo contrário, as "políticas ocidentais" deram cobertura ao golpe que, em 2016, visou o seu derrube (é só lembrar a cara de Merkl, quando soube que o "putsch" tinha fracassado), na linha, aliás, da cobertura que os franceses deram ao golpe de 92, na Argélia, e os americanos, israelitas e europeus deram ao golpe do general El-Sisi, no Egipto, em 2013, em todos os casos, para evitar que as escolhas democráticas causassem um "recuo civilizacional" (certamente que as mulheres emancipadas argelinas e egípcias preferem os "Pinochets" locais, aos governos islamitas que eles derrubaram, à custa de dezenas de milhares de mortos - e, mais uma vez, este não é um juízo de valor, apenas a constatação de quão complicado isto tudo é).              Francisco Tavares de Almeida: Gostei francamente do artigo de Eugénia de Vasconcellos o que nem sempre tem acontecido. Mas, neste caso sou até mais papista do que o Papa.

Todos sabem das questões do petróleo, das ambições de franceses e até americanos em desalojar os ingleses (e indirectamente a nossa Fundação Gulbenkian, que perdeu muitos e muitos milhões). Todos sabem que Khomeini viveu numa "villa" da Cöte d'Azur paga pelo governo francês. Já nem todos sabem que aí Khomeini gravava discursos inflamados em "cassettes" que eram levadas para o Irão nas malas diplomáticas francesas e depois reproduzidas pelos "mullahs" nas mesquitas. Mas a questão da relação das mulheres ou, se quiserem, da sua emancipação com a queda do Xá, nunca vi tratada como merece.            João Floriano: o corpo da mulher sempre foi um lugar político e religioso, do oriente ao ocidente. Uma crónica excelente, soberba que me obriga a morder a língua sobre as críticas negativas que alguma vezes aqui fiz à poeta Eugénia. Destaco  a frase  que transcrevi porque é perfeita para caracterizar tudo o que tem acontecido à volta do corpo feminino, desde todo o marketing ocidental, à demonização de regimes teocráticos como no Irão e até mesmo à negação desse mesmo corpo, dessa identidade por parte dos wokes. É preciso ter uma coragem enorme para sair à rua, para protestar, para se fazer ouvir debaixo de tanta violência, tanta repressão. Cisnes negros pela vestes, pela simbologia que carregam, até aqui  Eugénia de Vasconcelos me conseguiu comover. Excelente!               bento guerra: A História não correu como a Eugénia gostaria, devia ter sido diferente. O Irão é uma teocracia, modelo de poder absoluto, para o qual não há antídoto. Os americanos ainda tentaram contrariá-lo, mas saíram de rabo entre pernas .A questão é que "oil maters".Haverá pequenas mudanças,como se passou na Arábia Saudita e alguns Emiratos. Mas ,quem vai alterar a "vontade de Deus"?               Carlos Quartel: Visão estreita sobre o Irão. O problema do Irão não é a repressão sobre as mulheres é a repressão sobre todo um povo. Repressão implacável, por um grupo que tudo controla e tudo decide, com o argumento de que não passam de representantes de deus, governando em nome dele. De facto. o presidente é deus e o grande líder é só o seu delegado.. Uma treta imensa, colonizado por árabes radicais, que , entretanto, se apoderaram de toda a riqueza do país. É um problema que só os iranianos poderão resolver, quando decidirem, sabendo que os mulás têm exército privativo e que darão luta. A repressão sobre as mulheres é só a parte mais visível e mais mediática de um problema muito mais profundo.                   João Floriano > Carlos Quartel: Não partilho da sua opinião de que a autora tem uma visão estreita sobre o Irão, como pode ser provado através de outros excertos do texto. Fala-se de um aspecto particular da repressão, de um grupo em particular, o que torna no meu ponto de vista a saída das mulheres à rua ainda mais corajosa, mais digna de admiração. Na hipótese mais provável voltarão para casa, onde maridos, pais e outros homens da família as irão censurar, agredir, insultar e martirizar após na rua terem fugido à perseguição da polícia dos costumes, da moralidade falsa dos aiatolas.

 

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