Um artigo
corajoso de uma mulher corajosa, cisne branco fraternal ocidental, informando e
defendendo, com altivez e precisão - se bem me lembro, de quando vivi de longe
os sofrimentos do Xá e repudiei, no sofá da indignação, as bestialidades tacanhas
de Khomeini e seus acólitos, que ainda têm seguidores hoje… EUGÉNIA DE VASCONCELLOS, poeta, ensaísta, escritora. Mulher de saber e coragem.
Entre o véu e a bomba,
cisnes negros
O Irão é o exemplo da
escolha entre dois males, escolhido que foi o maior deles. Como é do activismo
marxista ocidental levado a cabo em campo e nos media, idiota útil ao serviço
do que desconhece.
EUGÉNIA DE
VASCONCELLOS Poeta, ensaísta, escritora
OBSERVADOR, 30 set 2022, 00:169
Às
vezes, tantas vezes, muitas mais do que aquelas que desejaríamos, a escolha
possível é entre dois males. Recomenda o bom senso a escolha do menor dos
males na expectativa de progredir a partir dele até ao aceitável e,
posteriormente, ao bom. Lenta, progressiva e seguramente.
Acredito
que esta escolha conservadora e sustentada pela moderação, uma virtude perdida,
pareça inaceitável a qualquer radical de sofá dos dias de hoje e cujas
causas se medem em ressentimento histórico, fragmentação social, likes e
partilhas. No entanto, o tempo como a história têm demonstrado à
saciedade as consequências das utopias de papel uma vez realizadas. Da
União Soviética à Alemanha Nazi.
E no
Irão repressivo, aterrorizador, por onde, há 43 anos, os mulás se passeiam
impunemente enquanto submetem, insultam e humilham as mulheres e aprisionam o
país e o povo nas trevas. O
Irão é o exemplo da escolha entre dois males, escolhido que foi o maior deles.
Como é igualmente o exemplo do activismo marxista ocidental levado a cabo em
campo e nos media, idiota útil ao serviço do que desconhece. Activismo radical
que terá satisfeito, à data, no fim dos anos 70, a União Soviética, os seus
agentes, os seus aliados: os clérigos islâmicos radicais e os tradicionalistas.
As
circunstâncias têm raízes fundas, não podem compadecer-se de estados de alma,
da volatilidade das emoções, da desinformação ou qualquer outra forma de
manipulação, seja através dos media ou das redes sociais.
Os
radicais de sofá de hoje, de Chomsky a R. Waters e discípulos, que
repudiam a resposta ucraniana e dos países ocidentais e da NATO à Rússia de
Putin, sem a menor empatia pelo sofrimento de um povo, enquanto se condoem, e
bem, diante da violência escabrosa que matou Masha Amini e, de acordo com
informações da IRH, mais de 57 pessoas nos últimos onze dias, são os mesmos, se
não em carne pelo menos em espírito, que colaboraram na entrega do Irão a estes
extremistas religiosos que o destruíram. Onde está a capacidade para assumir
responsabilidades, aprender com os erros? Onde?
Sabemos
todos que cometemos erros de avaliação e que estes nos levam a más decisões e
às suas consequências. A redenção está na aprendizagem: mais conhecimento,
melhores decisões. Nem por
isso assim acontece como, infelizmente, vemos nas tomadas de posição ditas
pacifistas no que à Ucrânia diz respeito.
O governo do Xá era corrupto? Sim.
Era uma autocracia? Sim. Reza Pahlavi estava numa deriva repressiva? Sim. As
assimetrias económicas eram profundas? Sim. A inflação, como o crescimento
económico, dispararam? Sim. Fazia parte da arquitectura de segurança ocidental
a manutenção do Irão como cliente dos Estados Unidos? Sim. O Irão era o garante
de petróleo face ao embargo da OPEC em 73-74? Sim. Era um bastião pró-ocidental
no equilíbrio precário do Médio Oriente? Sim. Tudo isto é verdade.
Como
é igualmente verdade que, na senda de Ataturk, se caminhava para a modernização
e industrialização do país; se vivia a expansão dos direitos das mulheres,
inclusive eleitorais e parlamentares; a abertura do acesso à saúde e à
educação; e a necessária sujeição da igreja ao Estado – por isso a utilização
obrigatória do véu foi banida, por isso é importante que o véu, sinal de
submissão, arda, e é um acto de comovedora e extraordinária coragem: o corpo da
mulher sempre foi um lugar político e religioso, do oriente ao ocidente. Das
mulheres veladas às mães da pátria. Dos ventres sagrados aos direitos
reprodutivos.
No dia 8 de Março de 1979, em Teerão, as mulheres
saíram à rua para protestar contra o uso obrigatório do véu, um
presente da República Islâmica do Irão e do seu supremo líder, Khomeini, cujas
palavras foram: «uma
mulher não usar véu, é apresentar-se nua». E saíram para protestar o que o véu representava: a
retirada das mulheres dos locais de trabalho diferenciados, das universidades,
das ruas; o retorno à permissão de voltar a casar as mulheres a partir dos 9
anos de idade, entre outras vilezas, qual delas a pior. Saíram para protestar o apagamento das mulheres da vida
pública, o seu silenciamento. Durante os seis dias de protestos, estiveram na rua
cerca de 100.000 mulheres, muitas foram espancadas, apedrejadas e esfaqueadas
até com vidros partidos. Aconselho as belíssimas fotografias tiradas por
Hengameh Golestan, nas ruas de Teerão. Mulheres confiantes da sua voz, de
cabelos soltos, de saias curtas, óculos escuros, enfermeiras e professoras de
batas… podiam ser as fotografias das nossas mães.
O impensável também acontece:
um país rico em petróleo, com uma posição estratégica privilegiada, entre a
União Soviética e o Golfo Pérsico, entre a Europa e o Médio Oriente, em
processo de modernização, pode transformar-se numa teocracia e retroceder
séculos num só ano. O que não se previu nem se pôde acautelar, é o cisne negro.
A teocracia iraniana saída da revolução contra o Xá, por exemplo.
Mas o assassinato de Masha Amini
também revelou um cisne negro.
Putin que, para os marxistas/wokistas
do costume se viu obrigado pela NATO e pelos Estados Unidos, com a conivência
da União Europeia, a invadir a Ucrânia, também revelou um cisne negro: Zelensky
e o povo ucraniano. Encurralado que está agora, Putin espreita o nosso inverno:
que a crise económica e energética, com a inflação a crescer e a recessão à
espera, nos desuna a partir das nossas dificuldades e o favoreça. Se isso
falhar, a anexação justificará o ataque nuclear, a menos que a China o impeça.
Ou um cisne negro.
PS:
Aconselho o visionamento do vídeo com
as filmagens feitas a 8 de Março, em Teerão, no link acima. É um documento
único onde é dada voz às protagonistas dos protestos: as mulheres na rua.
Aconselho também o livro de Nassim Nicholas Taleb, The Black Swan: The Impact
of the Highly Improbable, sobre os acontecimentos altamente improváveis e o seu
fortíssimo impacto, que o autor denomina «cisnes negros».
A
autora escreve segundo a antiga ortografia
IRÃO MÉDIO
ORIENTE MUNDO MULHER SOCIEDADE
Maria Augusta Martins: Cara senhora: A meu ver está a fazer uma leitura ás avessas, O Komeihni foi apoiado pela
França, e pelas "democracias" europeias. Os soviéticos pouco tiveram
a ver pois ainda era recente as atitudes que tiveram para com os persas. Os
Estados Unidos que apoiavam o xá resolveram tirar-lhe o tapete para
pressionarem o mercado do petróleo. Saiu-lhes o tiro pela culatra e pagaram bem caro e
continuam a pagar essas democratices. Quem não vai de modas e sabe da poda são os
israelitas! José Tomás: A visão que a autora tem do Irão e da Turquia é a ocidental, e pressupõe
que o que é ocidental é, necessariamente, melhor. Não discordo dessa opinião (é
a minha, também), discordo é de a impor aos outros. As 100 mil mulheres das
belas imagens no link para onde remete, eram uma gota de água na sociedade
iraniana. Teerão tinha 5 milhões de habitantes em 1979, 10 se contarmos os
arredores. Aquelas mulheres eram de uma burguesia urbana, que representava 5%,
se tanto, da sociedade iraniana, que olhava para elas, e para os restantes
"sinais de progresso" que lhes eram impostos, com estranheza e
hostilidade. Por isso, a tese de que o regime corrupto do Xá e o seu projecto
de "ocidentalizar" o Irão era "melhor" do que o regime que
vigora desde 1979 (tal como o de Ataturk será melhor que o de Erdogan) é, meu
ver, condescendente com um povo que não é só composto dos iluminados que pensam
como nós. Uma pessoa que se diz "conservadora", deve ter presente que
"avanços sociais" impostos à bruta por elites
"progressistas" podem causar uma reacção ainda mais gravosa do que os
"males" que querem combater. No Irão, em 1979, no Ocidente, em 2022. Francisco Tavares de Almeida
> José Tomás: No geral concordo consigo mas
não faria equivalências entre Turquia e Irão, nem sequer entre Ataturk e Reza
Pahlevi. Aliás a comparação possível - consideradas as circunstâncias - seria
entre o pai do Xá e Ataturk e aí as diferenças são imensas. Para mim a maior semelhança
política entre Irão e Turquia é que ambos os regimes actuais são produto de erradíssimas
políticas ocidentais, com França, EUA e Alemanha como principais autores. José Tomás > Francisco Tavares de Almeida: A comparação é feita no artigo
e não me parece descabida. Afinal, trata-se de dois autocratas de dois
impérios islâmicos "decadentes" que, sem quaisquer escrúpulos (não é
uma crítica, mas uma constatação), se propuseram moldar nações a partir de
estados multi-étnicos e modernizá-los através da "ocidentalização"
dos costumes. E quanto a Erdogan, a meu ver, não só não é um "produto das
políticas ocidentais", como, pelo contrário, as "políticas
ocidentais" deram cobertura ao golpe que, em 2016, visou o seu derrube (é
só lembrar a cara de Merkl, quando soube que o "putsch" tinha
fracassado), na linha, aliás, da cobertura que os franceses deram ao golpe de
92, na Argélia, e os americanos, israelitas e europeus deram ao golpe do
general El-Sisi, no Egipto, em 2013, em todos os casos, para evitar que as
escolhas democráticas causassem um "recuo civilizacional" (certamente
que as mulheres emancipadas argelinas e egípcias preferem os "Pinochets"
locais, aos governos islamitas que eles derrubaram, à custa de dezenas de
milhares de mortos - e, mais uma vez, este não é um juízo de valor, apenas a
constatação de quão complicado isto tudo é). Francisco Tavares de Almeida: Gostei francamente do artigo de
Eugénia de Vasconcellos o que nem sempre tem acontecido. Mas, neste caso sou
até mais papista do que o Papa.
Todos sabem das questões do petróleo, das ambições de
franceses e até americanos em desalojar os ingleses (e indirectamente a nossa
Fundação Gulbenkian, que perdeu muitos e muitos milhões). Todos sabem que
Khomeini viveu numa "villa" da Cöte d'Azur paga pelo governo francês.
Já nem todos sabem que aí Khomeini gravava discursos inflamados em
"cassettes" que eram levadas para o Irão nas malas diplomáticas
francesas e depois reproduzidas pelos "mullahs" nas mesquitas. Mas a
questão da relação das mulheres ou, se quiserem, da sua emancipação com a queda
do Xá, nunca vi tratada como merece. João
Floriano: o corpo da
mulher sempre foi um lugar político e religioso, do oriente ao ocidente. Uma
crónica excelente, soberba que me obriga a morder a língua sobre as críticas
negativas que alguma vezes aqui fiz à poeta Eugénia. Destaco a
frase que transcrevi porque é perfeita para caracterizar tudo o que tem
acontecido à volta do corpo feminino, desde todo o marketing ocidental, à
demonização de regimes teocráticos como no Irão e até mesmo à negação desse
mesmo corpo, dessa identidade por parte dos wokes. É preciso ter uma coragem
enorme para sair à rua, para protestar, para se fazer ouvir debaixo de tanta
violência, tanta repressão. Cisnes negros pela vestes, pela simbologia que
carregam, até aqui Eugénia de Vasconcelos me conseguiu comover.
Excelente! bento
guerra: A História não correu como a
Eugénia gostaria, devia ter sido diferente. O Irão é uma teocracia, modelo de
poder absoluto, para o qual não há antídoto. Os americanos ainda tentaram
contrariá-lo, mas saíram de rabo entre pernas .A questão é que "oil
maters".Haverá pequenas mudanças,como se passou na Arábia Saudita e alguns
Emiratos. Mas ,quem vai alterar a "vontade de Deus"? Carlos Quartel: Visão estreita sobre o
Irão. O problema do Irão não é a repressão sobre as mulheres é a repressão
sobre todo um povo. Repressão implacável, por um grupo que tudo controla e tudo
decide, com o argumento de que não passam de representantes de deus, governando
em nome dele. De facto. o presidente é deus e o grande líder é só o seu
delegado.. Uma treta imensa, colonizado por árabes radicais, que , entretanto,
se apoderaram de toda a riqueza do país. É um problema que só os iranianos
poderão resolver, quando decidirem, sabendo que os mulás têm exército privativo
e que darão luta. A repressão sobre as mulheres é só a parte mais
visível e mais mediática de um problema muito mais profundo. João Floriano
> Carlos Quartel: Não partilho da sua opinião de
que a autora tem uma visão estreita sobre o Irão, como pode ser provado através
de outros excertos do texto. Fala-se de um aspecto particular da repressão, de
um grupo em particular, o que torna no meu ponto de vista a saída das mulheres
à rua ainda mais corajosa, mais digna de admiração. Na hipótese mais provável
voltarão para casa, onde maridos, pais e outros homens da família as irão
censurar, agredir, insultar e martirizar após na rua terem fugido à perseguição
da polícia dos costumes, da moralidade falsa dos aiatolas.
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