sexta-feira, 21 de outubro de 2022

Já Ricardo Reis o disse


“Para ser grande sê inteiro”. Pode ser esse um dos motivos para a integração em novas doutrinas – o pretender revelar-se a par da doutrinação, sobretudo se esta foge à norma em uso. Uma questão de superioridade vistosa, que também nos atravessou a adolescência: a verdade é que os colegas que foram chamados à Pide, tinham prestígio, pois liam livros proibidos e foram interrogados por isso, e até presos por alguns dias. Hoje já não é necessário tanta leitura, a norma da fuga à norma arraigou-se nos espíritos, é o que está a dar, mesmo sem letras, e “democracia” é bem um termo piedoso, quebrador de barreiras, ainda que revele tendências despóticas na imposição doutrinária, pelo menos a de hoje. É claro que Paulo Tunhas se arriscou às chufas dos comentadores, embora fossem poucos os comentários colocados, mas certamente que ele não se importa, porque se fundamenta com leituras, inteiramente “inteiro” nos seus conceitos, e deve ser por isso também que recebe chufas dos que não precisam de leituras para assim chufarem, amantes que são de algum desse poder tirânico, pelo menos do que está na  moda, e que Paulo Tunhas nos descreve com saber e arte.

 

O amor da tirania

O populismo de direita, com todo o seu cortejo de raivazinhas anti-democráticas, e por mais nefasto que seja, me parece menos perigoso do que o amor pela tirania de uma vasta fatia da extrema-esquerda

PAULO TUNHAS

OBSERVADOR, 20 out 2022, 07:0722

A última coisa que deve surpreender uma pessoa minimamente lida em história e familiarizada com o entendimento da sociedade partilhado por muitos dos seus contemporâneos é o desprezo muito comum pela democracia. Esse desprezo, mais espontâneo ou mais reactivo consoante os casos, esteve sempre aí aos olhos de toda a gente. No mais das vezes, ele exprime-se de uma forma difusa e, regra geral, inconsequente. Não convém, sob esta forma, atribuir-lhe muita importância: de uma certa maneira, ele é uma patologia da própria democracia, enquanto projecto sempre inacabado e essencialmente imperfeito. Noutros casos, porém, ele revela um entendimento consequente, teoricamente elaborado, da sociedade e desdobra-se num amor, que raras vezes ousa dizer o seu nome, pela tirania. Aqui, deve-se sem dúvida levá-lo a sério. Porque ele exprime um programa de sociedade que coloca radicalmente a democracia em causa. Não há aqui vestígio algum de amor pela liberdade, por mais que a palavra “liberdade” esteja muitas vezes na boca dessa gente. Falo de “democracia” num sentido lato e convenientemente impreciso, como é sempre fatal nestas coisas, que são por essência insusceptíveis de definições rigorosas. E seria descabido, neste contexto, comparar as democracias contemporâneas ao projecto subjacente à Atenas do século V a.C., tal como simbolizado pela célebre oração fúnebre de Péricles em Tucídides. A democracia, no entendimento comum, não é exactamente, para usar uma linguagem bíblica, uma terra prometida, uma “terra de leite e mel”, mas a verdade é que há uma espécie de aliança com ela que caracteriza as sociedades mais livres que conhecemos. No que respeita àqueles que a desprezam, deixo de lado os adeptos do desprezo inconsequente. Por uma razão simples: ele vem, em geral, do abismo de solidão em que vivem mergulhados muitos indivíduos e o desprezo exibe exactamente essa solidão excruciante. A solidão condu-los àquilo que normalmente se chama “egoísmo lógico”, uma vontade desmesurada e irrevisível de ter razão contra todos os outros. Um seu complemento quase fatal é a adopção, com graus de elaboração variados, de uma forma ou outra de teorias de conspiração, que lhes permitem o benefício narcísico de julgarem ver aquilo que ao comum passa desapercebido. Sociologicamente, é sem dúvida um fenómeno importante. Politicamente, duvido que o seja grandemente. É o desprezo consequente, aquele que vem armado de teorias da sociedade e da história, que é politicamente significativo. À sua maneira, também ele exprime um egoísmo lógico, mas trata-se de um egoísmo lógico vestido de uma linguagem que se pretende sofisticada e feita para ser transmitida nos lugares de saber e nos media. Há aqui também teoria da conspiração, mas em versão doutoral e universitária, ministrada como se de uma ciência se tratasse. Esta última forma de egoísmo lógico que revela o ódio à democracia manifesta-se no discurso político corrente. Mas aparece magnificada em relação a certos e determinados objectos. A aversão à democracia israelita é sem dúvida um seu objecto preferencial. Mas a invasão russa da Ucrânia é aquele que presentemente suscita as suas manifestações mais radicais. Assim, para os seus adeptos, a verdadeira causa da guerra não é a Rússia de Putin, mas antes os Estados Unidos, o Ocidente e a Nato. Eis, aos olhos deste conspiracionismo, o invisível que tudo explica e que a todo o momento a ideologia ocidental nos quer encobrir. Muita gente discute se o motor desta rejeição da democracia e da liberdade tem uma origem primeiramente negativa ou positiva. Dito de outra maneira: se aquilo que verdadeiramente a motiva é a detestação dos Estados Unidos e do Ocidente ou o puro amor pela força bruta e pela mentira incondicionada de que esta se serve para atingir os seus fins. Bom, é certo que nenhum dos factores é completamente isolável do outro. Mas é verosímil que seja o elemento por assim dizer positivo que represente a força dominante. A afirmação é, regra geral, prévia por relação à negação. O amor da força bruta – o amor da tirania – goza de uma certa precedência por relação à rejeição da liberdade. A força bruta e a mentira alucinada que a acompanha como justificação oferecem um excesso de sentido que satisfaz muitos espíritos. São uma pura afirmação liberta das condições limitativas da razoabilidade. No acto do seu exercício e na curiosa libertação que nos garantem face à obrigação do respeito pelos factos. Amar a tirania é, para o egoísmo lógico em geral – tanto o inconsequente quanto o consequente, e sobretudo para este último -, mais satisfatório do que amar a liberdade. A tirania do Eu encontra nesse amor uma ilimitação que dificilmente o amor da liberdade lhe permitiria.

Por esta e por outras, o chamado populismo de direita, com todo o seu cortejo difuso e inconsequente de raivazinhas anti-democráticas, e por mais nefasto que seja, me parece muito menos perigoso do que o amor teoricamente consequente pela tirania que uma vasta fatia da extrema-esquerda exibe. No primeiro caso, temos direito a uma das patologias possíveis da democracia. No segundo, à sua rejeição pura e simples. As reacções à invasão russa da Ucrânia fornecem um exemplo quase perfeito desse amor da tirania que é a própria substância política de muitos espíritos.

 

COMENTÁRIOS (4 de 23)

bento guerra > Américo Silva: Excelentes perguntas, para um Tunhas, que deve andar a sofrer suores nocturnos e escassa leitura da História recente.

Américo Silva: Não sei se refere ao súbito encanto do ocidente por Lula da Silva, à derrota de Papandreou quando quis perguntar aos gregos a sua opinião sobre política económica e social, aos referendos de 1992 e 2005 ao tratado de Maastricht, aos referendos inexistentes ao tratado de Lisboa, à extrema financiação da vida pública, veja-se o caso BES, ao frenesi interventivo da comissão europeia, ou à davocracia universal?.

Otavio Luso > Rui Lima: Talvez o México tivesse mais razões para uma “operação especial” e invadir os USA, para recuperar território que estes abusivamente anexaram ao seu.

Rui Lima: Obrigado pelo seu oportuno artigo, nunca compreendi o benefício exorbitante de que gozam junto das opiniões públicas os regimes ditos de esquerda quando cometem os seus crimes.  Vamos imaginar que eram os USA que iniciavam uma “operação especial” no México ou em  Cuba até teriam as suas razões … haveria manifestações diárias frente às suas embaixadas , o regime iraniano reprime e mata, as feministas estão paradas ou estão com o regime como aconteceu num debate em França. As ditaduras de esquerda beneficiam de tolerância total nas opiniões públicas no Ocidente.

 

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