“Para ser grande sê inteiro”. Pode ser esse um dos motivos para a integração em novas doutrinas – o pretender
revelar-se a par da doutrinação, sobretudo se esta foge à norma em uso. Uma
questão de superioridade vistosa, que também nos atravessou a adolescência: a
verdade é que os colegas que foram chamados à Pide, tinham prestígio, pois liam
livros proibidos e foram interrogados por isso, e até presos por alguns dias. Hoje
já não é necessário tanta leitura, a norma da fuga à norma arraigou-se nos
espíritos, é o que está a dar, mesmo sem letras, e “democracia” é bem um termo
piedoso, quebrador de barreiras, ainda que revele tendências despóticas na
imposição doutrinária, pelo menos a de hoje. É claro que Paulo Tunhas se
arriscou às chufas dos comentadores, embora fossem poucos os comentários colocados,
mas certamente que ele não se importa, porque se fundamenta com leituras,
inteiramente “inteiro” nos seus conceitos, e deve ser por isso também que
recebe chufas dos que não precisam de leituras para assim chufarem, amantes que
são de algum desse poder tirânico, pelo menos do que está na moda, e que Paulo Tunhas nos descreve com saber e arte.
O amor da tirania
O populismo de direita, com todo o seu cortejo de
raivazinhas anti-democráticas, e por mais nefasto que seja, me parece menos
perigoso do que o amor pela tirania de uma vasta fatia da extrema-esquerda
PAULO TUNHAS
OBSERVADOR, 20
out 2022, 07:0722
A última coisa que deve surpreender
uma pessoa minimamente lida em história e familiarizada com o entendimento da
sociedade partilhado por muitos dos seus contemporâneos é o desprezo muito
comum pela democracia. Esse
desprezo, mais espontâneo ou mais reactivo consoante os casos, esteve sempre aí
aos olhos de toda a gente. No mais das
vezes, ele exprime-se de uma forma difusa e, regra geral, inconsequente. Não
convém, sob esta forma, atribuir-lhe muita importância: de uma certa maneira, ele é uma
patologia da própria democracia, enquanto projecto sempre inacabado e
essencialmente imperfeito. Noutros
casos, porém, ele revela um entendimento consequente, teoricamente elaborado,
da sociedade e desdobra-se num amor, que raras vezes ousa dizer o seu nome,
pela tirania. Aqui, deve-se sem dúvida levá-lo a sério. Porque ele
exprime um programa de sociedade que coloca radicalmente a democracia em causa. Não há aqui vestígio algum de amor pela liberdade, por
mais que a palavra “liberdade” esteja muitas vezes na boca dessa gente. Falo de
“democracia” num sentido lato e convenientemente impreciso, como é sempre fatal
nestas coisas, que são por essência insusceptíveis de definições rigorosas. E
seria descabido, neste contexto, comparar
as democracias contemporâneas ao projecto subjacente à Atenas do século V a.C.,
tal como simbolizado pela célebre oração fúnebre de Péricles em Tucídides. A democracia, no entendimento comum, não é
exactamente, para usar uma linguagem bíblica, uma terra prometida, uma “terra
de leite e mel”, mas a verdade é que há uma espécie de aliança com ela que
caracteriza as sociedades mais livres que conhecemos. No que respeita
àqueles que a desprezam, deixo de lado os adeptos do desprezo inconsequente.
Por uma razão simples: ele vem, em geral, do abismo de solidão em que vivem
mergulhados muitos indivíduos e o desprezo exibe exactamente essa solidão
excruciante. A solidão condu-los àquilo que normalmente se chama “egoísmo
lógico”, uma vontade desmesurada e irrevisível de ter razão contra todos
os outros. Um seu complemento quase fatal é a adopção, com graus de
elaboração variados, de uma forma ou outra de teorias de conspiração, que lhes
permitem o benefício narcísico de julgarem ver aquilo que ao comum passa
desapercebido. Sociologicamente, é sem dúvida um fenómeno importante.
Politicamente, duvido que o seja grandemente. É o desprezo consequente, aquele
que vem armado de teorias da sociedade e da história, que é politicamente
significativo. À sua
maneira, também ele exprime um egoísmo lógico, mas trata-se de um egoísmo
lógico vestido de uma linguagem que se pretende sofisticada e feita para ser
transmitida nos lugares de saber e nos media. Há aqui também teoria da
conspiração, mas em versão doutoral e universitária, ministrada como se de uma
ciência se tratasse. Esta última forma de egoísmo
lógico que revela o ódio à democracia manifesta-se no discurso político
corrente. Mas aparece
magnificada em relação a certos e determinados objectos. A aversão
à democracia israelita é sem dúvida um seu objecto preferencial. Mas a invasão
russa da Ucrânia é aquele que presentemente suscita as suas manifestações mais
radicais. Assim, para os seus adeptos, a verdadeira causa da
guerra não é a Rússia de Putin, mas antes os Estados Unidos, o Ocidente e a Nato. Eis, aos olhos deste conspiracionismo, o invisível
que tudo explica e que a todo o momento a ideologia ocidental nos quer
encobrir. Muita gente discute se o motor desta rejeição da democracia e da
liberdade tem uma origem primeiramente negativa ou positiva. Dito de outra
maneira: se aquilo que verdadeiramente a motiva é a detestação
dos Estados Unidos e do Ocidente ou o puro amor pela força bruta e pela mentira
incondicionada de que esta se serve para atingir os seus fins. Bom, é certo que nenhum dos factores é completamente
isolável do outro. Mas é verosímil que seja o elemento por assim dizer positivo
que represente a força dominante. A afirmação é, regra geral, prévia por
relação à negação. O amor da
força bruta – o amor da tirania – goza de uma certa precedência por relação à
rejeição da liberdade. A força
bruta e a mentira alucinada que a acompanha como justificação oferecem um
excesso de sentido que satisfaz muitos espíritos. São uma pura afirmação
liberta das condições limitativas da razoabilidade. No acto do seu exercício e
na curiosa libertação que nos garantem face à obrigação do respeito pelos
factos. Amar a tirania é, para o egoísmo lógico em geral –
tanto o inconsequente quanto o consequente, e sobretudo para este último -,
mais satisfatório do que amar a liberdade. A tirania
do Eu encontra nesse amor uma ilimitação que dificilmente o amor da liberdade
lhe permitiria.
Por esta e por outras, o chamado
populismo de direita, com todo o seu cortejo difuso e inconsequente de
raivazinhas anti-democráticas, e por mais nefasto que seja, me parece muito
menos perigoso do que o amor teoricamente consequente pela tirania que uma
vasta fatia da extrema-esquerda exibe. No primeiro caso, temos direito a uma
das patologias possíveis da democracia. No segundo, à sua rejeição pura e
simples. As reacções à invasão russa da Ucrânia fornecem um exemplo quase
perfeito desse amor da tirania que é a própria substância política de muitos
espíritos.
COMENTÁRIOS (4 de 23)
bento guerra
> Américo Silva:
Excelentes perguntas, para um Tunhas, que
deve andar a sofrer suores nocturnos e escassa leitura da História recente.
Américo Silva: Não
sei se refere ao súbito encanto do ocidente por Lula da Silva, à derrota de
Papandreou quando quis perguntar aos gregos a sua opinião sobre política
económica e social, aos referendos de 1992 e 2005 ao tratado de Maastricht, aos
referendos inexistentes ao tratado de Lisboa, à extrema financiação da vida
pública, veja-se o caso BES, ao frenesi interventivo da comissão europeia, ou à
davocracia universal?.
Otavio Luso > Rui Lima: Talvez o México tivesse mais razões para uma “operação
especial” e invadir os USA, para recuperar território que estes abusivamente
anexaram ao seu.
Rui Lima: Obrigado
pelo seu oportuno artigo, nunca compreendi o benefício exorbitante de que gozam
junto das opiniões públicas os regimes ditos de esquerda quando cometem os seus
crimes. Vamos imaginar que eram os USA que iniciavam uma “operação
especial” no México ou em Cuba até teriam as suas razões … haveria
manifestações diárias frente às suas embaixadas , o regime iraniano reprime e
mata, as feministas estão paradas ou estão com o regime como aconteceu num
debate em França. As ditaduras de esquerda beneficiam de tolerância total
nas opiniões públicas no Ocidente.
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