E perícia, num mundo de tanta
vileza e audácia no requinte de mandar matar e destruir. Mas continuaremos
ziguezagueando, ao sabor dos caprichos dos equipados em arte e manhas de
superior calibre e proveniência. Ao menos, que alguns se esquivem, apoiados
noutros dogmas, e que os difundam com sabedoria e convicção, confortando
corações, como outros fizeram ou fazem, mesmo com a simplicidade da tal “ceifeira que canta julgando-se feliz talvez”,
sem argumentos de razão, embora os do coração se lhes equivalham. Quanto à
Carlota Corday, sim, admiro-a, na sua coragem, por libertar o mundo de um tal criminoso…
ENCONTRO DE ESCRITORES - (6 bis)
HENRIQUE
SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 23.10.22
Agnósticos, ateus e outros incrédulos, eis
a plêiade dos que não acreditam em almas de um outro mundo. Eu também já fui
desses. Até que ouvi chamar por mim já umas três vezes e abandonei aquele grupo
inicial. Um dia, conto; hoje, não.
Esoterismo à parte, vamos ao que é exotérico. E os
escritores que hoje invoco também pertenciam àquele grupo inicial mas o
esoterismo deu-lhes por certo a volta e, mais dia, menos dia, desafio-os a virem
até cá para conversarmos um pouco. Talvez que Santo Ambrósio volte a ser de
grande utilidade. Ou São Boaventura, para não estar sempre a incomodar o mesmo.
Referi na crónica anterior o meu Avô.
Chamava-se (ou chama-se) José Tomás da Fonseca e esteve por cá de 1877 a 1968. A
sociedade portuguesa era na sua juventude predominantemente analfabeta[1] e
nas terras beirãs onde lhe nasceram os dentes, os Padres tinham um enorme
ascendente sobre a sociedade boçal. Querendo estudar, o meu Avô teve que ir
para Coimbra interno no Seminário onde, para além do ensino secundário, fez o
curso de Teologia. Mas, mesmo no final, «deu corda aos calcantes» e não tomou
votos[2].
Então, muito resumidamente, assumiu como suas as duas missões que nortearam
toda a sua vida: o combate ao analfabetismo adulto e o fim da
hierocracia que na prática existia nas zonas rurais. Todo o cenário em que
se movimentou fez dele um insubmisso, um rebelde. Mas, apesar disso, sempre foi
muito afável. Eu costumo dizer dele que foi a pessoa simultaneamente mais culta
e mais afável que alguma vez conheci. E dele guardo um poema que julgo
traduzir a essência do que lhe andou sempre no espírito.
OS REBELDES
Eu amo a luta
E abrigo a paz no coração.
Meu credo é feito d’alma
E feito de perdão.
Vivo de bênçãos,
Como a flor vive da luz,
Pregando na montanha,
Assim como Jesus,
As delícias do amor
E a paz universal.
Baionetas para quê?
Se a baioneta é igual
À faca do assassino!
Em vez d’homens de guerra,
Camponeses lavrando
E semeando a terra…
Que eu não amo o que mata
Ao meio duma rua,
Mas o que cria um filho
Ou guia uma charrua.
E embora admire e louve
Essa mulher que foi
Ao meio de Paris
Executar um herói,
Muito mais louvo e quero
Essa mulher d’aldeia
Que vai à fonte,
Acende o lume
E faz a ceia
E abre o peito
Dando a um filho de mamar.
Corday [3] é uma tormenta,
A camponesa um lar.
Criar – eis o preceito;
Amar – eis o dever.
O nosso peito abri-lo
A todo o que o quiser:
Aos que são cegos, luz;
Aos que têm fome, pão.
Por isso é que eu abrigo
A paz no coração.
Tomás da Fonseca
in Os
Deserdados, 1909
Era o meu Avô preferido, sobretudo porque foi o único
que conheci.
Na crónica anterior referi igualmente o
meu Tio, também ele filho do meu Avô como o meu Pai. Chamava-se (ou
chama-se) António
José Branquinho da Fonseca mas ficou conhecido só pelos
apelidos. Esteve por cá entre 1905 e 1974. Experimentou vários estilos literários,
desde o poema lírico ao romance passando pela novela, drama e poesia.
Contudo, ele próprio dizia que a sua expressão
natural era
o conto. E digam os seus biógrafos mais eruditos o que quiserem, eu digo
que ele sempre se manteve ligado ao bucolismo da sua meninice. Dentre a
extensíssima obra publicada, extraio o poema que segue que é, de longe, um dos
de que mais gosto:
CANÇÃO DA CANDEIA ACESA
Ainda
havia luz no céu
Quando se
encostou à minha porta
A sombra da
noitinha
E ali se
adormeceu...
Mas como é de
uso na aldeia,
Costume tão
velho já,
Ao sentir-se
alguém à porta
Eu disse-lhe:
- Entre quem está...
Entrou. Era a
noite... E, então,
Eu senti bem
a tristeza
Daquela gente
que não pode
Ter candeia
acesa.
Eu tenho-a,
Senhor;
Eu nem sei a
riqueza que tenho:
Tenho uma
terra
E também uma
casa
E um
rebanho...
E, além de
tudo, um amor,
A quem quero
e que me quer...
E que a
vontade do Senhor
A faça minha
mulher!
Era
o meu Padrinho de baptismo preferido, até porque não tive outro.
Então,
para levantar uma ponta do véu relativamente ao mistério inicial do meu
abandono do grupo dos agnósticos e outros incrédulos, aqui vou eu de seguida...
Olá!
Diz-me aqui, baixinho,
Desde quando sentes companhia
Quando os outros te vêem só.
Também vês aquela sombra
Que passa pelo canto do olho
E sentes aquele murmúrio
Junto do teu ouvido
E que os outros não sentem?
Fala-me
Daquela outra dimensão
Onde estão os nossos queridos,
Esses que por aqui vogam...
Que sentimos por perto,
Vemos em penumbra,
Que amamos pelo que foram,
Que amamos pelo fumo que são,
E que vemos pelo coração.
Sim, nós sabemos
Que eles estão aí,
Que nos vêem.
Sim, eles são os nossos anjos da guarda
E sabem que nós sabemos.
Pois é isso que nos conforta.
E que venha a nós o seu reino
De pureza e de bem.
Ámen!
E assim me despeço. Passai todos muito
bem!
Janeiro
de 2017
Henrique Salles da Fonseca
[1] Em 1910, a taxa de analfabetismo
adulto rondava os 90%
[2] Para saber mais, v. p. ex.
em http://www.antigona.pt/autores/luis-filipe-torgal/
[3] Marie-Anne Charlotte
Corday d'Armont (Normandia, França, 27 de Julho de 1768 - Paris, França, 17
de Julho de 1793) entrou para a história ao assassinar um dos mais importantes
defensores da política do Terror (Jean-Paul Marat) instaurada em França pelos
Jacobinos.
3 COMENTÁRIOS
José Rosado 23.10.2022 22:36:
Também eu Dr. Henrique sinto essas
presenças desde que os meus pais morreram, o que me faz acreditar que existe
vida depois da morte, noutra dimensão... Grande abraço!
Henrique Salles da
Fonseca 24.10.2022 10:46: Gosto dos dois poemas. Em 2017, no âmbito das
comemorações dos 140 anos do nascimento de T.F. “ no trilho de Tomaz da
Fonseca”, li o poema “Os rebeldes”. Há cerca de dois anos, na Universidade
Sénior Contemporânea, no Porto, li o poema “Canção da candeia acesa” num evento
sobre poesia. Sinto-me aprovada pelas escolhas!! Abraço. Benilde
Tomás Fonseca
Comentário a Henrique Salles da
Fonseca 24.10.2022 10:56: Gostei muito da sua crónica e gosto muito do escritor
Branquinho da Fonseca. Obrigada. Um abraço Filomena Ferro
Nenhum comentário:
Postar um comentário