sábado, 18 de março de 2023

Alguns dos meandros


Das políticas de hoje, com os países do Médio Oriente em cena. Para reviver e agradecer a JNP e seus comentadores, a maioria lida mas não apresentada (embora com pena).

O milagre de Pequim: Irão e Arábia Saudita reconciliados

Sem postulados ideológicos externos, Pequim quer aparecer como o grande arquitecto da paz numa ordem internacional alternativa à ordem internacional liberal.

JAIME NOGUEIRA PINTO, Colunista do Observador                         OBSERVADOR, 18 mar. 2023

O acordo entre a Arábia Saudita e a República Islâmica do Irão, anunciado na Sexta-Feira, 10 de Março, em Pequim, parece milagre. Não só porque a “grande discórdia” histórica do Islão entre sunismo e xiismo é hoje representada por estes dois Estados, mas porque a divergência se estende actualmente a vários conflitos – no Iémen, na Síria, no Líbano.

A discórdia entre sunitas e xiitas remonta aos primeiros tempos do Islão, à sucessão de Maomé e do Califado político-religioso. Para a linha dominante, a sunita, a sucessão legítima de Maomé fazia-se pelos que lhe eram mais próximos, os companheiros de campanhas e combates do Profeta: os califas Abu Bakr, Omar, que conquistou o Egipto e a Síria, e Osman. Para os xiitas (shia quer dizer dissidência ou seita) o sucessor deveria ser Ali, que sendo primo e genro do Profeta, casado com a sua filha Fátima, era, familiarmente, o mais próximo de Maomé. E depois da morte de Osman, assassinado no seu palácio de Medina, Ali, aclamado pelo povo, acabou por suceder-lhe. Mas. Ali encontrou grande resistência entre os omíadas da Síria, chefiados por Muawia, e foi morto em Kafa, na margem do Eufrates, em 661.

A sucessão decidiu-se no campo de batalha. Mas os xiitas, vencidos, mantiveram bem acesa a chama da dissidência – e tinham Ali e o seu filho Hussein como mártires. Embora os sunitas dominem largamente o mundo islâmico (serão 90% dos crentes), os xiitas mantiveram bastiões significativos, nomeadamente no Irão e no Iraque, onde estão os seus santuários.

Os dois poderes do golfo

A casa de Saud viu o seu fundador, Ibn Saud, ganhar o poder na península arábica em 1932. E no fim da Segunda Guerra, no encontro com F.D. Roosevelt, em 1945, no Egipto, Ibn Saud fechou a aliança entre a monarquia teocrática saudita e a república americana; aliança que iria marcar a segunda metade do século XX. Era uma parceria estratégica – económica, política e militar – em que os recursos petrolíferos sauditas seriam vendidos às grandes companhias, às míticas Seven Sisters – Anglo Iranian Oil Company, Shell, Standard Oil of Califórnia, Gulf Oil, Texaco, Standard Oil of New Jersey (ESSO), Standard Oil of New York –, e os Estados Unidos garantiriam a segurança do Reino.

As Seven Sisters dominavam a produção e distribuição do petróleo do Iraque, do Irão e da Arábia Saudita. Mas foi no Reino de Saud que foram encontradas as grandes jazidas petrolíferas a seguir à Segunda Guerra Mundial, uma guerra em que o factor petrolífero tinha sido decisivo, já que o petróleo, ou a sua falta, condicionara toda a estratégia e capacidade de iniciativa da Alemanha na Frente Leste. Hitler fora para a guerra sem equacionar o abastecimento energético e pagara bem caro esse seu esquecimento que lhe comprometera toda a campanha da Rússia, ao ter de avançar para o Cáucaso no Verão de 42. Políticos e homens de negócios aprenderam a lição.

O rei Saud, o mais velho dos filhos do fundador Ibn Saud, sucedeu ao pai em 1953. Começou por adoptar uma linha independente e neutralista na Guerra Fria, influenciado pelo alinhamento pró-Moscovo de Nasser do Egipto; reaproximou-se dos Estados Unidos quando Eisenhower bloqueou os anglo-franceses e Israel na crise do Suez de 1956; e retomou depois uma linha próxima de Nasser. Mas o conflito no Iémen, nos anos 60, fez com que os sauditas regressassem à aliança americana.

Em 1973, a guerra do Kippur e o embargo e crise petrolífera que se lhe seguiram, trouxeram de volta a hostilidade Riyhad-Washington; mas a cooperação com Washington voltaria a estreitar-se quando a Arábia Saudita se tornou líder da Organização dos Países Produtores de Petróleo e passou a poder comprar tecnologia militar aos norte-americanos.

Foi uma aliança decisiva para a vitória do Ocidente na Guerra Fria. No início da Administração Reagan, o novo czar da Inteligência americana, Bill Casey, pediu aos sauditas que aumentassem a produção e exportação de petróleo para fazer cair os preços e agravar as dificuldades financeiras dos soviéticos, cujas receitas vinham, em grande parte, do crude. E os sauditas não só o fizeram como, também a pedido de Casey, ajudaram os movimentos anti-governamentais no Afeganistão, em Angola e na Nicarágua.

Entretanto, em 1953, os Estados Unidos e a Inglaterra tinham apoiado o restabelecimento no trono do Xá Mohammad Reza Pahlavi, do Irão, derrubando Mossadegh, o seu primeiro-ministro neutralista que quisera nacionalizar o petróleo contra os interesses das Seven Sisters. O Irão foi extremamente beneficiado pela subida do preço do petróleo em 1973, lançando então uma série de projectos destinados a reproduzir o brilho da “grande civilização persa”. Para isso, dinamizou a OPEP, de que era membro fundador em 1960 com o Iraque, a Arábia Saudita, o Kuwait e a Venezuela. Mas o Xá, aliado do Ocidente, tentou ao mesmo tempo uma modernização e secularização que ofendeu o clero xiita e o mobilizou contra os Pahlavi que, no seu esforço reformista, perderam o apoio dos religiosos, mantendo a hostilidade da Esquerda. A partir do Verão de 1978, houve grandes manifestações de rua que, ao cabo de vários meses, levaram à queda do Xá, dando lugar ao triunfo da clerocracia xiita e à fundação da República Islâmica do Irão.

Vizinhos e inimigos

A partir da revolução iraniana de 1979, que levou os ayatollah ao poder, Riyadh e Teerão entraram numa rivalidade hostil, quer em termos de ideologia e discurso político, quer de interesses regionais. Esta hostilidade conheceu altos e baixos: em 2007, o presidente Ahmadinejad do Irão visitou Riyadh e foi recebido pelo rei Abdullah; mas em 2011 a guerra civil na Síria iria reencontrar sauditas e iranianos em campos contrários – os sauditas a apoiar os rebeldes e o Irão o presidente Bashar al-Assad. Em 2016 a hostilidade conheceu novo limite, com a execução do sheik Nimr Baqir al-Nimr, um importante clérigo xiita, crítico da monarquia saudita. A multidão atacou e saqueou, então, a embaixada saudita em Teerão, o que levou ao corte de relações e ao fecho das embaixadas dos dois países.

Entre 2016 e o recente acordo, as relações entre os dois grandes Estados da região degradaram-se, com a Arábia Saudita e a República Islâmica do Irão a olharem-se mutuamente como “inimigo principal”, chegando os serviços de segurança sauditas a cooperarem com os de Israel contra Teerão.

Nos finais da Administração Trump, em 2020, foram assinados entre Israel, os Emirados Árabes Unidos e o Bahrein os chamados Acordos de Abraão; acordos influenciados pela Casa Branca, mas permitidos pelos sauditas. Deste modo, com Marrocos e o Sudão a aproximarem-se também de Israel – o que o Egipto e a Jordânia já tinham feito em 1979 e 1994 – quebrara-se a bipolarização na região. Porém estes acordos de Abraão, do tempo de Trump, foram um dos últimos sinais de intervenção de Washington no Golfo.

Quando, no curso da guerra Rússia-Ucrânia, a Administração Biden quis convencer os sauditas a aumentarem a produção petrolífera (para, numa estratégia semelhante à de Casey nos anos oitenta, penalizar a Rússia), a proposta não só foi recebida com o redondo não do príncipe herdeiro Bin Salman, o homem-forte de Riyadh, como, juntando o insulto à injúria, a OPEP resolvia ainda cortar 2 000 000 de barris/dia na produção. Os apelos à democratização do presidente americano tiveram também efeitos nulos ou contraproducentes.  Os Estados do Golfo são autocracias e têm optado por uma “terceira via” no conflito Rússia-Ucrânia –  tal como muitos dos estadps africanos e sul-americanos, pouco  sensíveis a “cruzadas das democracias”.

A alternativa chinesa

Sabe-se agora que, desde 2021, se têm vindo a suceder encontros secretos entre negociadores das duas partes, no Iraque e em Oman, numa gradação ascendente que chegou aos ministros dos Negócios Estrangeiros. Discreta e habilmente, a China era compradora de petróleo dos dois rivais, embora importasse muito mais da Arábia Saudita (1 670 000 barris/dia em 2020).

O acordo entre os dois principais inimigos regionais parece ser um factor de estabilidade para a segurança do Golfo, podendo até ter um impacto positivo, quer na longa guerra civil síria, quer na mais dura confrontação no Iémen. Mas ficam de pé outras interrogações: o que farão os Estados Unidos e Israel quanto ao programa nuclear do Irão, agora que o Estado-pária recuperou estatuto?

Do ponto de vista geopolítico e da rivalidade Estados Unidos – República Popular da China, não há dúvida que Pequim marcou pontos ao conseguir este Acordo entre inimigos radicais. E explorou o sucesso com sentido de oportunidade, fazendo-o coincidir com o início do terceiro mandato de Xi Jinping. Assim, numa altura em que os Estados Unidos estavam a liderar a “cruzada das democracias” contra Moscovo, Pequim afirmava-se como o grande arquitecto da Paz.

Com esta geometria variável de relações – com os Estados Unidos, com a China e com a Rússia –, os sauditas parecem querer assumir-se como uma potência ascendente na cena mundial; uma potência que não quer ficar hipotecada a alinhamentos rígidos de blocos ou identidades ideológicas. O Irão, marginalizado pela pressão americana, viu que só tinha a ganhar com um acordo que o retirava do isolamento. E a China, sem postulados doutrinários externos, quer aparecer como guia e mediadora de uma ordem internacional alternativa à ordem internacional liberal, por definição alinhada ideologicamente.

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COMENTÁRIOS: (de 29)

Carlos Chaves: Obrigado Jaime Nogueira Pinto por mais esta excelente aula de história. Agora percebi porquê desta vez estamos a pagar os combustíveis aos preços que estamos (indirectamente financiando a política bélica e imperialista do Putin) e o porquê de Bruxelas nos estar a obrigar a aplicar o “green deal” a todo o custo! Obrigado.               Francisco Almeida: Sem pôr em causa nada do que JNP escreveu e louvando a metodologia e qualidade de exposição, eu daria diferentes ênfases na política dos EUA. Começando com Trump, no primeiro ano do seu mandato e por ordem: 1. Denunciou o acordo com o Irão e renovou e agravou as sanções; 2. Mudou a embaixada dos EUA de Tel-Aviv para Jerusalém; 3. Por intermediação do genro, um judeu ortodoxo(*), vendeu 1,1 milhões de dólares de armamento à Arábia Saudita (depois seguir-se-iam os Emiratos). Isto é, definiu o inimigo, o amigo, finalmente o aliado. Embora depois tenha disparatado(**) com o seu detestável egocentrismo, este primeiro ano foi magistral. Definiu uma política e estabeleceu o quadro em que se iria desenrolar. Recordando agora o início de Biden (deixando o ter começado por chamar assassino a Putín para pouco depois com ele se encontrar e reconhecer a Rússia como potência regional) enfatizou a aliança de democracias o que logo excluía a Arábia Saudita. Antes já suspendera a entrega das armas aos Emiratos e, o que JNP não referiu, criticou duramente o príncipe Bin Salman por muito provavelmente ter mandado assassinar Kamil Kashoggi. Note-se que podia tê-lo feito pela via diplomática mas não, foi mesmo por via mediática. Fosse ou não intencional - é irrelevante - mas definiu uma política de hostilidade em relação ao governo da Arábia Saudita(***). Assim nada é de estranhar a recusa de Bin Salman em recusar o aumento de produção. Apenas noto que a redução de 2 milhões de barris foi meramente simbólica. Muito importante como gesto político mas pouco significativa na prática porque, por dificuldades técnicas sobretudo nos produtores africanos, a OPEP, de facto, não estava a extrair esses 2 milhões de barris. Mas não creio que o interesse americano fosse primordialmente fazer baixar o preço mas mais para garantir o fornecimento à Europa, para esta se libertar da dependência russa. E penso assim porque seguidamente negociou o retorno ao acordo com o Irão e o levantamento das sanções o que permitiria a exportação do petróleo iraniano para a Europa. E isto é que é de estranhar porque, em termos de direitos humanos, de violência política, de liberdade, sobretudo de direitos das mulheres, o Irão é bem pior do que a Arábia Saudita. Onde ficou então a ética da aliança de democracias? Também por isso o acordo Irão-Arábia Saudita é arrasador. A China triunfou naquilo em que os EUA tinham duplamente falhado. Pode JNP ter razão no que sugere - Deus queira que sim - e o entendimento entre o Irão e a Arábia Saudita não perdurar mas a imagem perdedora dos EUA, numa área geográfica em que, não sendo a asiática, mas onde a imagem, o perder ou salvar a face tem uma importância difícil de entender por europeus, essa vai perdurar. (*) Para além do insólito do negócio entre um judeu ortodoxo e o regime do islamismo sunita mais radical, adivinha-se que estava subjacente a garantia que essas armas nunca seriam usadas contra Israel. (**) Trump anunciou que iria fazer um acordo fantástico com os palestinianos. Sendo duvidoso que fosse possível, esse anúncio prévio fê-lo impossível. (***) É impossível não estabelecer um paralelismo com António Costa e Passos Coelho. Na incapacidade própria, destrói-se a obra do antecessor.                       João Ramos: E a Europa no meio disto tudo, é esperar para ver…??? A Europa e as suas “aberturas”, vão a tornando inexistente…                 Carlos Costa > João Ramos: Não fale muito nisso, senão vão dizer que você é racista e xenófobo.            Alberto Rei > João Ramos: Não, Ramos. Na minha opinião por várias razões : a primeira, ficaram reféns dos EUA, quando tiveram de entregar a defesa aos EUA, e acomodaram-se. Quiseram, em troca, uma aliança mercantil, que está como está : na mesma sujeita ao diktat americano. a solução, a meu ver, seria alianças mais próximas, blocos. Bloco ibérico por exemplo, com total liberdade de movimentos e estabelecimento < bloco europa central : Alemanha e Polónia. assim, as coisas seriam mais fortes, senão seremos sempre a rua de trás (back alley) dos americanos, e ineficazes perante os outros, caranguejos sem tenazes.                       Carlos Quartel:  O que parece estar a desenhar-se, capitaneada pela China e como a Rússia como imediato, é uma aliança das ditaduras, contra a mundo democrático e das liberdades. Estamos do lado correcto e vamos ver para que lado caem Brasil, Índia e África do Sul, democracias que estão fora do lugar. Se assim for, pelo menos ficamos todos mais esclarecidos e com menos dúvidas. Haverá um mundo de escravos, sob o jugo das aristocracias esclarecidas, em que o cidadão normal se limita a obedecer às instruções dadas, com a esperança de rancho e camarata e o mundo democrático, onde cada cidadão é independente e livre de procurar o seu caminho, sem gurus nem  big brothers a espiar e controlar o seu pensamento. Cada um que escolha, se puder,,,,            ……………

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