sexta-feira, 24 de março de 2023

Difícil

 

                 


Sobretudo de aceitar. Mas hoje também vivemos em dificuldades

várias,  como em todo o sempre aconteceu. Gostamos de ler,

sobretudo, bem explicada  por Rui Ramos – embora apareça

truncado, no blog..

              OBSERVADOR, 22/3/23

 

Por volta de 1973, correram boatos de que o governo estaria a tramar uma velhacaria contra as forças armadas. Tratava-se, segundo se dizia, de diminuir o esforço de guerra deixando cair a Guiné, como caíra Goa em 1961. O exército, tal como em Goa, ficaria com as culpas. O corpo expedicionário da Guiné converteu-se num foco de alarmismo e de agitação, explorando o efeito das operações fronteiriças do PAIGC, que assim se tornou um peão da política interna portuguesa.

Estes rumores misturaram-se com reclamações corporativas, as quais deram o pretexto para se organizar no exército um “Movimento de Capitães”. O destaque dos capitães explica-se porque estes ocupavam o posto-chave da acção militar no ultramar, realizada sobretudo ao nível de companhia. Por volta de Outubro de 1973, o movimento conseguiu recolher secretamente 598 assinaturas de oficiais do quadro permanente para uma demissão colectiva de protesto. As concessões do governo de nada adiantaram. Nos fins de 1973, o Movimento dos Capitães instalava-se como estrutura secreta dentro das forças armadas, com comissões já eleitas. A de Moçambique sentiu-se capaz, no princípio de 1974, de tomar conta do “aparelho militar” na zona de operações.

O desenvolvimento de objectivos políticos era fatal. No meio oficial, cada vez se falava mais de uma intervenção política das forças armadas para romper o impasse político. Marcello Caetano imaginou sempre que, falhando, iria ser sucedido pelos militares. Em conversa com Diogo Freitas do Amaral, em Agosto de 1973, confessou-lhe que “o moral das nossas tropas é péssimo” e que já não queriam combater. Ele precisava de tempo, e “portanto preciso que os militares continuem a combater, enquanto os nossos inimigos nos atacarem”. Mas “é claro que tudo tem um limite”. Se os militares não quisessem, ele teria de entregar o poder às forças armadas, o que faria “de bom grado”. Nesta altura, ainda não havia reuniões do Movimento dos Capitães, mas Caetano já aguardava uma sucessão militar.

Toda a gente esperava que o exército fizesse alguma coisa. Ora, o exército parecia preparado para o fazer. Os programas sociais de contra-subversão tinham dado aos oficiais no ultramar uma larga experiência de administração e governo civil. Calcula-se que 80% das actividades das forças armadas tinham a ver com programas sociais e económicos, e que menos de 20% diziam respeito a operações militares.

Os militares absorveram a doutrina da contra-subversão, que atribuía a causa da guerra a “problemas sociais”. E quiseram resolver estes problemas através da reorganização das sociedades locais.

Em Angola e Moçambique, acabaram por criar uma péssima relação com as populações brancas, às quais se habituaram a culpar pelos tais “problemas sociais”. Em 1974, a mentalidade do capitão português começava a identificar-se com a do comissário político da guerrilha.

A crença, desenvolvida em África, na capacidade dos militares para construírem nações e sanearem sociedades explica, em parte, o papel político que o MFA se atribuiu a si próprio em Portugal em 1975. Otelo Saraiva de Carvalho deixou isso claro numa entrevista em 1974, quando imaginou as Forças Armadas, em Portugal, a abrir estradas e a administrar escolas e hospitais, como tinham feito na Guiné.

Em Fevereiro de 1974, num livro que vendeu dezenas de milhares de exemplares, o general Spínola insistiu em que a guerra não tinha “solução militar”, mas só “solução política”. Era um velho chavão, que toda a gente repetia desde sempre. O general Costa Gomes, um dos conspiradores da “abrilada” de 1961, tinha-o escrito nos jornais nesse mesmo ano, presumivelmente com o consentimento da hierarquia.

Tratava-se, de resto, de um dos primeiros princípios aprendidos nos cursos sobre “contra-subversão”. Em 1974 pareceu novidade porque foi entendido como a denúncia do fracasso de Caetano, incapaz de aproveitar o esforço militar de 1970. Mais do que isso: o desabafo de Spínola forneceu a prova de que esforços desse tipo seriam tempo perdido enquanto o governo não mudasse. O movimento militar que iria levar ao golpe de 25 de Abril de 1974 estava lançado.

Na última edição do programa E o Resto é História,conversei com o João Miguel Tavares sobre Óscar Carmona, o Presidente da República que mais anos esteve no cargo. Ouça aqui o podcast.

Gostou desta newsletter? Quer sugerir alguma alteração? Escreva-me para rramos@observador.pt.
Pode subscrever a newsletter “Perceber a História” aqui. E, para garantir que não perde nenhuma, pode assinar já o Observador aqui.

Rui Ramos é historiador, professor universitário, co-autor do podcast E o Resto é História [ver o perfil completo].

 


Nenhum comentário: