Perceber a
História — África: a solução militar do problema ultramarino
www
RUI RAMOS, OBSERVADOR <NEWSLETTERS@OBSERVADOR.PT> ANULAR
SUBSCRIÇÃO
|
|
18:46 (há 41 minutos)
|
|
|
Para mim
|
|
|
|
Os meses do fim
|
Ao contrário do que estava previsto,
o golpe de Estado de 25 de Abril não trouxe uma solução
política para o problema do ultramar. Uma solução política
pressupunha o envolvimento das populações num processo de participação
e decisão. Não foi isso que aconteceu. O golpe de Estado determinou,
ao contrário, uma solução militar, isto é, a resolução do problema
ultramarino através de um simples entendimento entre as chefias
militares portuguesas e as chefias dos partidos armados – nas quais,
significativamente, também pesavam cada vez mais os líderes
operacionais, em prejuízo dos políticos. A razão para tal desfecho
esteve no modo como o golpe de Estado provocou a desagregação do
dispositivo militar português no ultramar.
|
Ao contrário do que diz a lenda, a
perspectiva de um “colapso militar” no ultramar não foi a causa do 25
de Abril, mas a sua consequência. Há muitas explicações para isso.
Spínola ainda tomou a sério a “solução política”. Costa Gomes, em
Maio, em Angola, explicou que a guerra continuaria, caso os partidos
independentistas não desarmassem. O MFA não deve ter gostado. Os
capitães não podiam permitir que se regressasse à guerra, porque isso
poderia restabelecer a hierarquia militar e pôr em causa a ascendência
do MFA nas forças armadas. Tentaram assim confrontar Spínola com
factos consumados no ultramar.
|
Na Guiné, logo a 26 de Abril, houve
um golpe de quartel, com a prisão do comandante-chefe. Poucas semanas
depois, a única força de combate disciplinada que havia na Guiné era
o PAIGC. Nada mais se pôde fazer senão a sua vontade. No terreno,
tanto como as manobras dos capitães, pesou a falta de objectivos de
uma força que tinha sido mobilizada para uma missão, a de defender a
integridade da pátria, a qual viu subitamente terminada, sem que lhe
tivesse sido atribuída outra missão.
|
A partir de Julho de 1974 era claro
que o caminho seria a independência, de uma maneira ou outra. Quem é
que, a partir de então, quis ser o último soldado a morrer no
ultramar? Na metrópole, entretanto, a agitação contra a guerra
crescera. Para continuar as operações, teria sido necessário
restabelecer um constrangimento da actividade política que já
ninguém, por essas razões, estaria disposto a aceitar. E depois, como
seria possível continuar a guerra com os líderes dos partidos da
esquerda no governo? A guerra tinha de acabar.
|
No Verão de 1974, quando se
aperceberam de que já não havia vontade de combater no exército
português, alguns dos partidos armados resolveram jogar duro.
Unidades militares mais ou menos subvertidas e desmotivadas eram uma
presa fácil. Em Moçambique, o exército português teve, nos quatro
meses que se seguiram ao 25 de Abril, o dobro dos mortos registados
nos primeiros quatro meses de 1974. Em Angola, entre Maio e Agosto de
1974, morreram mais soldados portugueses do que durante todo o ano de
1973. Foi só então que verdadeiramente se levantou a perspectiva de
uma espécie de “colapso militar”. A partir daí, a preocupação dos
comandos militares portugueses foi retirar rapidamente, para evitar
uma “desonra”. Era preciso parar a guerra – e só se poderia parar a guerra
através de um entendimento com aqueles que a faziam. Por pouco que os
partidos armados representassem, representavam as armas que os
militares portugueses precisavam de sossegar. Para quê falar com mais
alguém?
|
O grande terror dos comandos militares,
em 1974, era alguma independência “rodesiana”, que criasse uma
situação de confronto em que, até por mero instinto de solidariedade
étnica, as tropas metropolitanas se vissem obrigadas a pôr-se ao lado
da população branca contra os partidos armados. Com dureza, impediram
os colonos brancos de se manifestarem. O ressentimento entre as
forças armadas e as populações europeias do ultramar era antigo.
|
Ao contrário do que acontecera na
Argélia, os civis portugueses do ultramar, depois do assalto da UPA em
1961, mantiveram-se longe da guerra. Viram-na como uma tarefa das
forças armadas, e quando foram atingidos outra vez – como
esporadicamente aconteceu em Moçambique, em Janeiro de 1974 –
culparam os militares. A verdade é que no exército português poucos tentaram
imitar os militares franceses que se revoltaram ao lado dos colonos
na Argélia. O sentimento dominante parecia ser a pressa em partir,
que logo contagiou os colonos. Aqui jogou também o facto de os
colonos portugueses serem, na sua maioria, de primeira geração. Quase
todos os colonos tinham um país para onde regressar, ao contrário do
que acontecia aos Boéres na África do Sul.
|
Pelo seu lado, os militares
desinteressaram-se de processos de transição que só poderiam ser
garantidos pela força, como as eleições multipartidárias, e apostaram
tudo num simples trespasse do poder para os partidos armados.
Suspeitou-se depois que o tivessem feito por opção ideológica.
Provavelmente, a ideologia veio depois, para justificar o expediente.
Tal como o esforço de guerra precisara da cobertura do
integracionismo, a retirada precisou da justificação do
internacionalismo revolucionário.
|
Os capitães do MFA não eram
simplesmente “cobardes” ou “traidores” ao serviço da União Soviética,
como depois insistiram os últimos ultramarinistas. Entre eles, havia
vários heróis da guerra. Ora, o acto da entrega negou tudo aquilo que
os tinha motivado em doze anos de esforço militar. Mais ainda:
desmentiu a promessa do 25 de Abril de que o golpe desse dia
representava uma libertação para todos os que viviam debaixo da
administração portuguesa, não só na Europa, como em África. Pior:
como se viu depois, entregou os soldados africanos do exército
português às mais horrorosas perseguições.
|
Para tudo isto, os homens do MFA
precisaram de razões, de razões que não apenas explicassem, mas
justificassem e legitimassem. O major Melo Antunes, o homem do MFA
mais comprometido nas negociações da “descolonização” em 1974, quando
teve de se defender, invocou a necessidade: uma vez que não se podia
continuar a guerra, não havia alternativa. Mas desde quando é que a
simples consciência da fatalidade gerou, naqueles que foram agentes
dessa fatalidade, uma boa consciência? Só a mitologia da esquerda
podia dar uma boa consciência aos homens do MFA. Só à esquerda seria
possível imaginar as ditaduras sanguinárias e corruptas do PAIGC, do
MPLA ou da FRELIMO como uma “libertação”, ou chamar “descolonização”
à ocupação de Angola por um exército expedicionário cubano.
|
Para serem capazes de ver liberdade
no despotismo, os capitães e os majores fizeram-se de esquerda: e
nessa conversão, deram à esquerda em Portugal, durante dois anos, uma
força e uma influência a que a esquerda nunca se atrevera a aspirar.
|
Só ultimamente se começou a perceber
o verdadeiro sentido da retirada portuguesa. Havia mais africanos a
combater do lado português do que do lado dos partidos armados: 42%
dos efectivos do exército português em 1973, ou cerca de 61 mil
militares, eram de recrutamento local. Este número não incluía as
unidades de segunda linha, como as milícias locais.
|
Na Guiné, metade dos confrontos com
o PAIGC eram da responsabilidade dessas milícias. Spínola
prometera-lhes a construção de uma sociedade civil africana,
pluralista e livre, contra o Estado revolucionário de tipo soviético
previsto pelo PAIGC. É provável que uma ditadura como a portuguesa
não fosse o sistema mais credível para patrocinar tal projecto.
Também é provável que tudo tenha começado tarde demais. De qualquer
modo, em 1974, a guerra em África já não era simplesmente uma guerra
colonial, entre portugueses e independentistas, mas uma guerra civil
entre africanos, com participação portuguesa – o que o eurocentrismo
(e, em certos casos, os preconceitos raciais) dos “anticolonialistas”
impediu de perceber. Só os portugueses podiam escolher entre ficar e
partir. Escolheram partir. Os outros tiveram de ficar. A guerra, para
eles, continuou.
|
Rui
Ramos é historiador, professor universitário, co-autor do
podcast E o Resto é História [ver o perfil completo].
|
|
|
|
| |
Nenhum comentário:
Postar um comentário