Bem
estranhas que são, por vezes. Mas as amizades verdadeiras sobrepõem-se, nas
perplexidades que essa vida dita. Sobretudo nos seres de representatividade realmente
humana, associada ao velho conceito do “honnête homme” clássico.
A responsabilidade e a culpa
Combatia pela verdade das coisas como foram. O destino
não foi generoso. E tudo o que o José Manuel teria necessitado era afinal um
pouco dessa generosidade que toda a vida ele dera aos outros.
MARIA JOÃO AVILLEZ Jornalista, colunista do Observador
OBSERVADOR,01
mar. 2023, 00:2234
1Um legado não é uma herança. Não são confundíveis embora muitas vezes me aperceba
da distração de empregar ambos os substantivos de igual modo. É como os
“chamados” – que sabemos serem muitos – e os “escolhidos” que ancestralmente
aprendemos serem muito menos. São imensos os que deixam herança, grande ou
pequena – mas só aos “escolhidos” é dado o dom de quando partem, ficaram
connosco através do seu legado.
Aconteceu
agora com um amigo. Em certo sentido, irmão ainda mais que amigo. Despediu-se
do mundo, partiu silenciosamente para outra morada, e foi como se se tivesse
fechado um enorme leque cujas folhas escondiam as muitas formas do sofrimento
que o provaram nos últimos anos. Provações de natureza diversa, sempre
pesadas, sofrimento de longo prazo, durou nove anos.
O
exercício de sobre ele escrever não me será fácil tal a dificuldade com que
hoje alguém normalmente constituído se defronta – não só neste caso, obviamente
– para galgar os vários muros que se interpõem entre o ar do tempo, o
pensamento único, a ditadura do politicamente correcto, o acinte e insulto como
base de argumentação; e do outro lado do muro, aquilo que se tem como uma
obrigação. Não falo do dever da amizade (esse guardá-lo-ia para mim) evoco uma
obrigação cívica (os sentimentos virão ou não virão depois, à tona da água
desta prosa). O que evoco é a obrigação que me advém de ter seguido,
acompanhado, testemunhado de muito perto, toda uma vida de alguém (desde que
ambos tínhamos 12 anos até anteontem). E querer contar o que vi.
2José
Manuel Espírito Santo Silva foi em Julho de 2020, um dos acusados do caso BES. Trabalhava de pertíssimo com Ricardo Salgado, no
Banco da família, desde que Salgado assumira a liderança do grupo BES: era seu
primo, amigo íntimo, confiava inteiramente nele, não escondia a admiração que
lhe votava, reconhecendo-lhe sem sombra de hesitação liderança, talentos e dons
que a si próprio se negava. Ricardo Salgado era “o” Ricardo, José Manuel
confiava em Ricardo. Confiou sempre, o que o dispensava de se interrogar. O
que ele não sabia na altura – mas poucos seriam os que verdadeiramente sabiam
de tudo – era que o líder do Grupo BES geria tudo (e todos) apoiado num
pequeno, muito pequeno, comité de colaboradores (para resumir de forma
obviamente simplista tão complexíssima e tristíssima ocorrência). Até ao fim
foi essa persistente e continuada confiança que sem falhas nem reticências ia
substituindo a perplexidade e mais tarde a dúvida quando ambas se cruzaram com
o próprio José Manuel. Terá sido incauto.
Correu
mal como se sabe. Pior talvez fosse aliás impossível. Como membro do
conselho de administração do banco não era possível – nem credível – não
atribuir também a José Manuel responsabilidades pelo rasto de destruição
deixado no país após o terramoto. Destruição abrangente: em perdas, danos,
escândalo e de milhares de pessoas lesadas nas suas grandes, médias ou pequenas
“economias”, confiadamente depositadas numa instituição bancária vista como de
aço e cuja reputação se suporia à prova de bala. Mas ninguém ainda conhecia
a história: nem a história do princi
ípio
ao fim, nem como ela fora. E um dia, a Justiça agiu, José Manuel foi acusado:
foi-o em vários processos – como o processo principal do caso BES e no caso do
último aumento de capital do banco –, mas a verdade impõe que se diga isto: a
justiça reconheceu que ele não pertencia ao pequeno comité que Salgado usava
para mandar no banco. E por
isso mesmo foi excluído do crime de associação criminosa que foi imputado a
Ricardo Salgado em Julho de 2020. Ou seja, houvera responsabilidade, não
havia culpa. Isto é: houvera a responsabilidade por outras situações, não havia
culpa pelo crime maior. A nuance não é de somenos. É nela que muito
provavelmente se instala uma das cruciais diferenças entre o bem e o mal (mesmo
que perdure a responsabilidade).
E não era senão aqui que eu queria
chegar, desde o início desta prosa. À imensa diferença entre responsabilidade e
culpa.
3Pouco tempo após o escândalo nacional
do BES procurei naturalmente este amigo, como se faz com aqueles com quem
crescemos, rimos, choramos e vivemos. Encontrei um homem quase irreconhecível.
Destroçado pela vergonha, a humilhação, a tristeza, era difícil distinguir onde
começavam e acabavam umas e outras, todas confluindo para o lago do seu
desgosto. Desfeito, parecia um resto de si mesmo. A sua boa formação, a noção
de honra, os valores em que fora educado, subitamente, de um minuto para o
outro, expulsavam-no do universo da dignidade onde sempre vivera. Nada do que
pública e mediaticamente ocorria em Portugal era de todo compatível com ele e o
seu carácter; com o que ele (verdadeiramente) era, mas que se dizia que
(falsamente fizera). Estava consumido pela dimensão da mancha que perante o
país parecia sepultar o nome Espírito Santo para sempre. O nome dos seus pais e
avós, um nome-marca-de-família. Um ex-libris de confiança, dentro e fora de
portas.
Quando conseguiu voltar ao de cima de
si mesmo, foi pessoalmente pedir desculpa às pessoas a quem tinha – também
pessoalmente – pedido para investirem no banco; procurou, um a um, os
presidentes ou directores de clubes, associações, instituições de que era
membro, dizendo-lhes que “saía por já não se achar digno de continuar a ser
membro ou de pertencer ao que quer que fosse”. E saiu, até do seu ginásio.
Meses depois teve finalmente ocasião de concretizar o que queria desde o
primeiro momento da sua tragédia: pedir desculpa ao país. Estou em condições de
afirmar que não o fez por imposição de advogados ou conselho de amigos, fê-lo
por si, genuinamente, sinceramente.
E
quem não acreditou em José Manuel Espírito Santo quando olhando os deputados da
Comissão de Inquérito de frente – e através deles, Portugal inteiro – ele
perguntou: “mas quem é que não acreditava no dr. Ricardo Salgado?”.
Ou
não é verdade que “se” acreditava? Que todos ou quase todos acreditavam?
Ofereci-me obviamente para sua
testemunha de defesa, fui ouvida em duas ocasiões distintas por dois juízes,
fiz o que me competia.
4Com
as contas naturalmente bloqueadas – as dele e de toda a família –, o viver como
pudesse e do que houvesse era – testemunhei-o também – a menor das dificuldades
ao pé da humilhação íntima, pessoal, familiar – e nacional – por que passava. Apesar do indefectível apoio da sua formidável
mulher, dos quatro filhos, e dos amigos, a provação não conheceria fim. Nunca
se refizera totalmente da arbitrariedade da sua prisão em Março de 1975, da
nacionalização do banco da família, do confisco dos seus bens; da saída do país
então ainda para um destino e modo de vida incertos. E agora perdia pela
segunda vez não só o banco de família como, achava ele, a honra. Ficaram
sequelas, irremovíveis: tão débil era a raiz do seu estado de “anima” que um
dia um brutal AVC varreu qualquer vento de esperança de melhores dias.
Continuávamos a vê-lo – continuámos sempre – mas nem a vida nem o sentido
voltaram. O choque sofrido tornara a doença irreversível.
À
medida que todas estas coisas aconteciam, uma coisa se sobrepunha, forte,
eloquente, grande, a tudo o resto: o seu exemplo. Os seus mais próximos
amigos e eu havíamos de perceber que esse viria a ser o seu melhor e maior
legado. Já tínhamos essa certeza adquirida ao longo da vida, mas a provação
ampliara a certeza. Não era uma herança, era um legado que nos deveria orgulhar
e responsabilizar: o exemplo da dignidade no seu sofrimento, na aflição
obsessiva com o grupo dos “lesados”, na insistência com que, ainda em bom
estado de saúde, não pensava senão na reabilitação do nome da família e em como
fazê-lo. Na genuína determinação, por vezes quase ingénua, com que lutava
contra cépticos, desconfiados, maldosos. O transtorno cerebral motivado pelo
AVC interpôs-se e vetou-lhe o seu combate pela verdade das coisas como foram. O
destino não foi generoso E tudo o que o Zé Manel teria necessitado era
simplesmente de um pouco dessa generosidade que toda a vida ele dera aos
outros.
5É
verdade: o exemplo vinha de longe. Desse Zé solar, radioso, acolhedor, terno,
amigo ate à medula do seu amigo. Praticava um incrível sentido de humor acerca
dele próprio, raro dom aliás: pouca gente conheci que ironizasse assim consigo
mesmo. Ríamos com ele e poucas coisas unem tanto os seres humanos quanto o
rir em comum das mesmas coisas. Amigo íntimo de reis e ex-reis, cosmopolita,
frequentador de aristocratas, conhecedor de bons ambientes, as honrarias nunca
o deslumbraram: era um simplório de trazer por casa.
Solar,
alegre, amigo. Quantas histórias e memórias, agora. Quanta vida partilhada,
tanto passado guardado por todos nós, seus amigos. Tanta coisa, de que a vida é
feita, tanto riso e festa e sonho, tantos maus bocados, aflições, perdas porque
passamos ainda jovens ou já menos jovens mas sempre o “Zé” presente. Só mais
tarde vínhamos a saber – e nunca por ele – como se interessava, colaborava,
auxiliava quem lhe batia a porta. Era um atento que disfarçava bem – atento à
família, ao amigo próximo, ao menos próximo, ao conhecido, ao desconhecido; e
um generoso que disfarçava mal: acudia de todas as maneiras, esbanjava
generosidade, driblava qualquer dificuldade por um familiar ou amigo. Nada do
que fazia pelos outros se confundia com dinheiro, cunhas ou favores, era ele
que se dava a si mesmo, envolvendo-se onde se sabia preciso e acorrendo onde
suspeitava ser bem vindo. Apesar de
após sol tão radioso ter vindo o peso da mais sombria das sombras, é com o Zé
solar que resolutamente ficamos. E com qual outro havia de ser com tão
maravilhoso exemplo de vida?
OBITUÁRIO SOCIEDADE BANCO
ESPÍRITO SANTO
2 COMENTÁRIOS (de 36)
Francisco Almeida: O texto é tocante e muitíssimo bem escrito como é apanágio da autora. Ler a caixa de comentários suscita-me duas
notas. 1. Uma pessoa que conheço muito bem foi em tempos gestor de uma muito
importante área do GES mas saiu anos antes do desastre e, aliás, sofreu
prejuízos porque conservou activos que lhe foram atribuídos como bónus
contratuais e de que liquidou imposto. Não resisti a perguntar-lhe se não tinha
sentido alguma desconfiança e a resposta foi inequívoca: - Desconfiar do
Ricardo seria a mesma coisa que um católico suspeitar que o Papa defraudava o
Banco do Vaticano 2. Vários comentaristas duvidam do desconhecimento do
falecido e, evidentemente, estão no seu direito. Só que, para serem coerentes -
alguns serão - têm de desconfiar de todos os antigos membros dos governos de
José Sócrates, com destaque para António Costa, seu número dois, e para Augusto
Santos Silva que até o defendeu expressa, pública e aguerridamente.
Seknevasse: Excelente testemunho, uma pureza de sentimentos que expõe e deixa na praça
pública, quando o muito mais fácil seria guardar na intimidade, não se expor a
criticas... MJA dou-lhe os parabéns pela coragem e coerência. Como sou apenas um cidadão
anónimo, longe de frequentar estes círculos, estou livre para criticar ou
louvar. A crónica é muito clara quando fala na questão da responsabilidade,
claro que estava lá, e claro que a vergonha deve ter sido terrível, qual anjo
caído. Um rico, ou um banqueiro, continuam a ser pessoas, com defeitos e
virtudes, parece que às vezes esquecemos isso, o sentimento de inveja e de
falha de avaliação sobrepõe-se a tudo. Não devia ser assim. A quem não leu
recomendo o livro "O Governador", está lá uma parte da história do
BES/GES e termino com uma nota pessoal, em 2011 fui convidado a pôr alguns
euros em acções da EDP, com valor "seguro" pelo BES caso descessem,
achei tão sem nexo que comentei ao telefone que o risco estaria numa falência
do banco... Quem diria que acontecia mesmo.. (o banco mau, é uma falência!) até
podia ser hoje um dos lesados... sei lá. Uma duvida permanece, seria a
liderança de Ricciardi que esteve por pouco em dez/2013 capaz de alterar o rumo
dos acontecimentos?
………………..
E mais um amigo:
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 01.03.23
José
Manuel Espírito Santo Silva (12 de Maio de 1945 - 25 de Fevereiro de 2023)
Ao conhecê-lo, ficava-se
automaticamente seu amigo, tal a simpatia que irradiava; uma simpatia natural,
calma, sem exuberâncias, a simpatia de um Senhor. Mas, ao conhecê-lo melhor,
ficava-se fascinado com a sua bondade, uma bondade que era a essencial ausência
de mal. E conhecendo-o mais, sentia-se-lhe a compaixão como o dever de homem
rico, banqueiro.
Eis o Zé de que já muitos temos
saudades.
1 de Março de 2023
Henrique Salles da Fonseca
Tags: avulso
COMENTÁRIO
Anónimo 02.03.2023 06:22;
Obrigado
Henrique pelas justíssimas palavras sobre o Zé ‼️Um grande Abraço Eddy Stock
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