terça-feira, 14 de março de 2023

CUF


Uma bela crónica de JOSÉ PACHECO PEREIRA, um estudioso da velha guarda, que deve servir de exemplo a muitos jovens que pretendam singrar num país que precisa desses estudiosos e desses trabalhadores. As Notas da Internet aclaram um pouco os dizeres de Pacheco Pereira e dos seus comentadores saudosistas. 

O passado é um país estrangeiro

O passado é um país estrangeiro: lá, as coisas são feitas de maneira diferente. L. P. Hartley

JOSÉ PACHECO PEREIRA

PÚBLICO, 11 de Março de 2023, 6:42

Esta frase de Hartley é uma das que mais cito, porque, para quem “anda aos papéis”, é absolutamente verdadeira. Podemos procurar semelhanças, continuidades, encontrar o “não há nada de novo sobre a Terra”, que, por muito que algo de isto exista e se verifique – principalmente, para nossa desgraça, na chamada “natureza humana” –, a ecologia dessa “natureza” muda e muda muito depressa. Rapidamente o “passado” se torna o “país estrangeiro”, onde se fazem as coisas de “maneira diferente”.

Uma boa maneira de perceber isso em toda a extensão é visitar a exposição dos arquivos da Cidade dos Arquivos (Barreiro) em Lisboa, na Gare Marítima de Alcântara, um raro caso de colaboração entre arquivos bastante diferentes, cuja importância para muitos aspectos da história de Portugal, cultural, social, económica, empresarial e política, é única. Ao virem com os seus “tesouros” para Lisboa, mostram, contra o provincianismo dos grandes, como sem lá ir e consultar os seus fundos toda a história de Portugal fica imperfeita.

Foto : (Colectivo de fotografias de autor do Barreiro)

A cidade do Barreiro é a única cidade portuguesa “feita” pelas fábricas, pela indústria, pelo único conglomerado industrial nacional que durante décadas estava no topo ibérico e europeu. Nenhuma empresa industrial podia ter a arrogância de dizer “o que o país não tem, a CUF cria”. Nenhuma cidade portuguesa tinha ou podia ter ruas com nomes como “Rua do Ácido Sulfúrico” ou “Rua do Amoníaco” (há uma em Estarreja), ou “Rua dos Superfosfatos” e Travessas da Estearina e da Glicerina. É certo que também havia uma “Rua do Dinheiro”, nome igualmente muito apropriado quer para quem tinha muito, quer para quem tinha muito pouco. Com excepção do “dinheiro”, tudo o resto acabou.

A Marinha Grande, as cidades do Vale do Ave, Seixal, Estarreja, Covilhã, entre outras, foram também “feitas” pela indústria, mas nenhuma se compara em dimensão ao Barreiro e ao papel da CUF, depois Quimigal, e também por isso já estamos bem dentro do “país estrangeiro”, hoje em grande parte póstumo. A desindustrialização acelerada ocorrida em todo o país tornou a paisagem industrial uma forma de arqueologia do presente, com toda a mudança social e económica que isso representa, e com impacto político nos votos em democracia, mas também na cultura associativa, no lazer, nos consumos, nas paisagens, no “viver” em geral.

Na exposição da Gare Marítima de Alcântara todo este mundo está representado, desde o impacto desportivo do Barreiro ao papel da língua internacional, o esperanto, ao quotidiano “social” dos operários, à actividade clandestina em particular do PCP, ao papel da CUF em trazer novas tecnologias químicas da Europa, mas também novas formas de gestão. As fotografias aéreas das fábricas, os planos de expansão, os bairros operários, os livros de pessoal, os produtos, dos adubos à juta, a expansão colonial, a “assistência social” anterior à “previdência”, a ligação do Barreiro à história política do Estado Novo, que vai da repressão selectiva à “perigosidade” que a PIDE, e bem, atribuía à cidade, ao papel dos adubos nos planos nacionalistas da Campanha do Trigo, a iconografia da publicidade, os logótipos, todo um mundo que já não existe, mas que fez o Portugal do século XX.

Esta história industrial comunica com a da ferrovia e dos portos, de toda a “faina fluvial” do Tejo e dos transportes para o Sul do país. O escafandro conhecido pelo “Joel”, manobrado por dois irmãos açorianos nos anos 30 e 40, um na máquina que bombeava o ar, outro no fundo do rio, personifica como podia ser muito perigoso trabalhar.

Este mundo é o do “passado” de Hartley, que está longe mas também nos “fez”. Podemos não ter a memória do que era a serapilheira, não saber o que é o esperanto, muito menos falá-lo, nunca ter respirado o ar junto da Rua do Ácido Sulfúrico, não saber porque é que um esquadrão permanente a cavalo da GNR fazia parte das “forças de segurança” do Barreiro, porque é que há tantos bons jogadores de xadrez na cidade, ou como era descer ao fundo do rio Tejo num escafandro que nem sequer era impermeável para salvar um batelão, desconhecer o que era uma “muleta” que não era para quem coxeava, ter uma ideia do mundo fervilhante do rio, fragatas e fragateiros, estivadores e pescadores, conhecer a tentativa dos “padres operários” para assegurar uma melhor vida para os seus fiéis e “infiéis”, ou saber quanto custava a uma família da outra margem tirar os vários bilhetes para irem visitar um pai ou um irmão na Cadeia do Forte de Peniche. Tudo isto é o Portugal real e está nos arquivos do Barreiro e em nenhum outro lado.

Reparem como tudo parece anacrónico, na verdade porque é o “passado”. Conhecê-lo é sabermos mais sobre nós próprios, sobre a dureza do trabalho fabril e portuário, sobre o risco de “falar de mais”, sobre as tentativas de modernização de empresários, gestores, engenheiros, num mundo em que não havia o glamour das start-ups, sobre o emprego e o desemprego, sobre as mulheres a quem o salário mesmo parco dava independência e força, sobre as bibliotecas das colectividades operárias, onde a Censura explicava em despacho que certos livros, que se podiam ler em todo o lado, ali não podiam entrar.

Se gostam de romances históricos, na maioria muito pouco históricos, aqui têm o “país estrangeiro” da história sem ficção, que já foi o nosso, mas já não é.

https://www.publico.pt/2023/03/11/opiniao/opiniao/passado-pais-estrangeiro-2041966
COMENTÁRIOS:

pintosa  Experiente : Tive dois tios no Barreiro, onde houve tempo em que parei muito. O mais novo foi toda a vida operário da CUF, tendo frequentado o Curso Industrial de Química nos anos 40. O mais velho também, mas foi despedido quando das greves de 1943. O que não foi mau para ele, pois empregou-se num dos estaleiros de reparações do Seixal e acabou a viver bem, para a época, com automóvel e férias anuais em Espanha, na década de 60. A primeira e única vez que fui a um estádio de futebol foi ao do Barreirense, com esse meu tio mais velho. Era comunista, como era barreirense. Pois é, embora possa não parecer, tenho origens operárias...  11.03.2023 19:41                     Herlander Braz  Iniciante : Infelizmente a Memória ainda é muito pouco trabalhada a nível da educação e social. Sem passado, ninguém tem futuro, compreender e aceitar o passado seria um exercício que nos ajudaria a entender ao que isto chegou. Mas o que ser é branquear.  11.03.2023 19:27            JPR_Kapa  Moderador  Excelente forma de nos convidar a (re)visitar a períodos da nossa história, os seus registos e documentos, através de uma exposição. O texto ajuda-nos e cria, desde logo, um percurso interpretativo.                  J I Toscano  Iniciante: E houve um período em que o Esquadrão permanente da GNR era substituído todos os meses. Bem haja pelo artigo e pela exposição. 11.03.2023 17:47              rafael.guerra Influente : Se o passado é um país estrangeiro, o presente é um extraterrestre.  11.03.2023 16:36                    Carlos Fonseca Experiente: Desempenhei funções de direcção em empresa da CUF. Tratava-se de um grupo com uma cultura empresarial ímpar no país e creio que mesmo no mundo. O passado é, de facto, um país estrangeiro. Todavia, o presente poderia ser bem diferente, de indústria modernizada. Cavaco e Catroga, este quadro superior do grupo, retalharam e venderam-na aos pedaços. Só no Barreiro tinha cerca de 25.000 trabalhadores. Agora, Cavaco declara que o País deve produzir bens transaccionáveis. Uma contradição grave de quem, como 1.º ministro, afirmava que Portugal deveria transformar-se num país de serviços, como a Suíça. Foi o autor principal da destruição da CUF. Também já é passado, mas mais recente e lamentável.  11.03.2023 12:23            Manuel Figueira.529114  Experiente : Não diga essas coisas de quem nunca se engana e jamais tem dúvidas.  11.03.2023 16:21           Josué  Iniciante : Um dos ideólogos do Cavaquismo foi precisamente Pacheco Pereira , como as pessoas mudam.  11.03.2023 22:14               rafael.guerra  Influente : Culpam Cavaco Silva de todos os males, mas quem asfixiou e enfraqueceu esse imenso conglomerado que era a CUF, foi o governo provisório de Vasco Gonçalves que em 1975 a nacionalizou. 12.03.2023 11:00                    Teodoro.antonio.1195414  Iniciante: Texto notável. Só não concordo com o autor que este já não é o nosso País. É sim. Pode não estar visível, mas está impregnado na nossa existência coletiva.  11.03.2023 12:02

Luis_Morgado  Experiente: Em Alferrarede-Abrantes, há um bairro também com uma Rua do Amoníaco e adicionalmente com as Ruas do Azoto e do Hidrogénio. Claro que a Avenida que dá acesso a esse bairro se chama Avenida da CUF e evidentemente que o bairro é conhecido como o bairro da CUF, que tinha piscinas e uma escola, onde o meu avô deu aulas, e uma interessante Arquitectura, suavemente moderna. .03.2023 11:10          radical do centro  Moderador: Este homem é grande. Uma figura maior do nosso País. É impossível não ficar marcado por este texto.  11.03.2023 10:16               cfcatarino1977 Experiente  As crónicas do JPP são o único motivo porque continuo a ser assinante do Público.                    Manuel Figueira.529114 Experiente: O Pacheco Pereira é o colunista do Público, e de outras publicações como a revista Sábado, com maior grau de cultura. Tem conhecimento da realidade, meteu e mete, as mãos na massa do trabalho de arquivo, não aprendeu o que sabe recitando livros de outros. Mas o Público tem muito mais gente que vale a pena ler: podia desfilar uma boa meia-dúzia de nomes, ou uma dúzia. se não lê mais ninguém não sabe o que perde.    FPS Moderador: Lá vou ter de mudar rotinas, um dia destes, e ir a Lisboa - à Gare Marítima de Alcântara. A publicidade aqui exposta, por JPPereira. não é enganosa, que promove a exposição dos conhecidos arquivos com tal força que não nos deixa indiferentes, pelo contrário. A forma como esse passado industrial do nosso século XX, aqui tão brilhantemente descrito por Pacheco Pereira, compele-nos a aceder ao estimulante desafio. Nota pessoal: esta crónica li-a com todo o gosto e muito prazer, que está escrita por quem domina a língua portuguesa e dela faz um uso que nem todos os poetas são capazes de fazer. Muito bem, José Pacheco Pereira!                  Manuel Figueira.529114

Experiente : O JPP não tem um saber de plástico, mas de tungsténio, na Língua, na História, na Cultura, em geral.  11.03.2023 13:08                     VivaViriato  Experiente: O “passado”. Conhecê-lo é sabermos mais sobre nós próprios, É esse o problema não o sabemos, a acresce outro não valorizarmos o que é nosso, naturalmente o que for bom, preferimos o país estrangeiro que refere ou as modas como as "start-up" que cita, aliás um mau exemplo, porque são empresas que estão sempre a arrancar e, por isso, 90% não vai a lado nenhum. São como os que têm o nome Leitão que nunca chegam a porco                 Navegante  Experiente: Bem haja JPP por me recordar alguns episódios desse país estrangeiro onde vivi a minha infância e juventude! A 25 de Abril de 1974 emigrei para outro país onde tenho vivido desde então, um país melhor que aquele onde nasci, com mais liberdade, qualidade de vida e cultura! Tem defeitos que não existiam no país antigo, mas não estou nada arrependido de ter emigrado para o país onde agora vivo! Você trouxe-me de volta as memórias do meu país natal! E fez muito bem! Você já mostrou, em artigos anteriores a este, como se percebe muito melhor a História através das vidas dos cidadão anónimos que da visão das estátuas dos figurões que enfeitam as nossas praças! O que você faz é inestimável! Um abraço de gratidão, JPP!                 11.03.2023 08:40  Terra de ninguem Iniciante : Europa? 11.03.2023 11:16

 

NOTAS DA INTERNET:

De apoio à crónica de JOSÉ PACHECO PEREIRA

O quê produzia a CUF?

A CUF produzia e comercializava milhares de produtos – adubos, óleos vegetais, azeites, sabões, velas, rações, têxteis, entre outros -, e do seu grupo, em Portugal e nas antigas colónias, faziam parte as empresas Tabaqueira, Lisnave e Setenave, o Banco Totta e a Companhia de Seguros Império.

O que o país não tem a CUF cria." "Nunca aos meus operários faltou pão e trabalho." Estas frases são atribuídas a Alfredo da Silva e, provavelmente, são duas imagens perfeitas do homem que terá sido o mais influente industrial português do final do século XIX e da primeira metade do século XX.30/06/2021

Carlos Ferro

30 Junho 2021 — 07:00

Oque o país não tem a CUF cria." "Nunca aos meus operários faltou pão e trabalho." Estas frases são atribuídas a Alfredo da Silva e, provavelmente, são duas imagens perfeitas do homem que terá sido o mais influente industrial português do final do século XIX e da primeira metade do século XX. O empresário que nasceu há 150 anos (30 de junho de 1871) foi uma das figuras centrais do desenvolvimento de um Portugal então marcado pela ruralidade e com uma indústria incipiente.

 

 

Nenhum comentário: