Uma bela crónica de JOSÉ PACHECO
PEREIRA, um estudioso da velha
guarda, que deve servir de exemplo a muitos jovens que pretendam singrar num
país que precisa desses estudiosos e desses trabalhadores. As Notas da Internet aclaram um pouco os
dizeres de Pacheco Pereira e dos seus
comentadores saudosistas.
O passado é um país estrangeiro
O passado é um país estrangeiro: lá, as coisas são feitas de maneira
diferente. L. P. Hartley
PÚBLICO, 11 de Março de 2023, 6:42
Esta frase de Hartley é uma
das que mais cito, porque, para quem “anda aos papéis”, é absolutamente
verdadeira. Podemos procurar semelhanças, continuidades, encontrar o “não há nada de
novo sobre a Terra”, que, por muito que algo de isto exista e se verifique –
principalmente, para nossa desgraça, na chamada “natureza humana” –, a ecologia
dessa “natureza” muda e muda muito depressa. Rapidamente o “passado” se torna o “país estrangeiro”,
onde se fazem as coisas de “maneira diferente”.
Uma boa maneira de perceber
isso em toda a extensão é visitar a exposição dos arquivos da Cidade dos
Arquivos (Barreiro) em Lisboa, na Gare Marítima de Alcântara, um raro caso de
colaboração entre arquivos bastante diferentes, cuja importância para muitos
aspectos da história de Portugal, cultural, social, económica, empresarial e
política, é única. Ao virem com os seus “tesouros” para Lisboa, mostram, contra
o provincianismo dos grandes, como sem lá ir e consultar os seus fundos toda a
história de Portugal fica imperfeita.
Foto : (Colectivo de fotografias de autor do Barreiro)
A cidade do Barreiro é a única cidade
portuguesa “feita” pelas fábricas, pela indústria, pelo único conglomerado
industrial nacional que durante décadas estava no topo ibérico e europeu.
Nenhuma empresa industrial podia ter a arrogância de dizer “o que o país
não tem, a CUF cria”. Nenhuma
cidade portuguesa tinha ou podia ter ruas com nomes como “Rua do Ácido
Sulfúrico” ou “Rua do Amoníaco” (há uma em Estarreja), ou “Rua dos
Superfosfatos” e Travessas da Estearina e da Glicerina. É certo que também
havia uma “Rua do Dinheiro”, nome igualmente muito apropriado quer para quem
tinha muito, quer para quem tinha muito pouco. Com excepção do “dinheiro”, tudo
o resto acabou.
A Marinha
Grande, as cidades do Vale do Ave, Seixal, Estarreja, Covilhã,
entre outras, foram também “feitas” pela indústria, mas nenhuma se compara em
dimensão ao Barreiro e ao papel da CUF, depois Quimigal, e também por isso já
estamos bem dentro do “país estrangeiro”, hoje em grande parte póstumo. A desindustrialização acelerada ocorrida em todo o
país tornou a paisagem industrial uma forma de arqueologia do presente, com
toda a mudança social e económica que isso representa, e com impacto político
nos votos em democracia, mas também na cultura associativa, no lazer, nos
consumos, nas paisagens, no “viver” em geral.
Na
exposição da Gare Marítima de Alcântara todo este mundo está representado, desde o impacto desportivo do Barreiro ao papel da língua
internacional, o esperanto, ao quotidiano “social” dos operários, à actividade clandestina em
particular do PCP, ao papel da CUF em trazer novas tecnologias químicas da
Europa, mas também novas formas de gestão. As fotografias aéreas das fábricas,
os planos de expansão, os bairros operários, os livros de pessoal, os produtos,
dos adubos à juta, a expansão colonial, a “assistência social” anterior à
“previdência”, a ligação do Barreiro à história política do Estado Novo, que vai
da repressão selectiva à “perigosidade” que a PIDE, e bem, atribuía à cidade,
ao papel dos adubos nos planos nacionalistas da Campanha do Trigo, a
iconografia da publicidade, os logótipos, todo um mundo que já não existe, mas
que fez o Portugal do século XX.
Esta história industrial
comunica com a da ferrovia e dos portos, de toda a “faina fluvial” do Tejo e
dos transportes para o Sul do país. O escafandro conhecido pelo “Joel”, manobrado
por dois irmãos açorianos nos anos 30 e 40, um na máquina que bombeava o ar,
outro no fundo do rio, personifica como podia ser muito perigoso trabalhar.
Este mundo é o do “passado” de Hartley, que está longe
mas também nos “fez”. Podemos não ter a memória do
que era a serapilheira, não saber o que é o esperanto, muito menos falá-lo,
nunca ter respirado o ar junto da Rua do Ácido Sulfúrico, não saber porque é
que um esquadrão permanente a cavalo da GNR fazia parte das “forças de
segurança” do Barreiro, porque é que há tantos bons jogadores de xadrez na
cidade, ou como era descer ao fundo do rio Tejo num escafandro que nem sequer
era impermeável para salvar um batelão, desconhecer o que era uma “muleta” que
não era para quem coxeava, ter uma ideia do mundo fervilhante do rio, fragatas
e fragateiros, estivadores e pescadores, conhecer a tentativa dos “padres
operários” para assegurar uma melhor vida para os seus fiéis e “infiéis”, ou
saber quanto custava a uma família da outra margem tirar os vários bilhetes
para irem visitar um pai ou um irmão na Cadeia do Forte de Peniche. Tudo isto é
o Portugal real e está nos arquivos do Barreiro e em nenhum outro lado.
Reparem como tudo parece anacrónico, na verdade porque
é o “passado”. Conhecê-lo é sabermos mais sobre nós próprios, sobre a dureza do
trabalho fabril e portuário, sobre o risco de “falar de mais”, sobre as
tentativas de modernização de empresários, gestores, engenheiros, num mundo em
que não havia o glamour das start-ups, sobre o emprego e o
desemprego, sobre as mulheres a quem o salário mesmo parco dava independência e
força, sobre as bibliotecas das colectividades operárias, onde a Censura
explicava em despacho que certos livros, que se podiam ler em todo o lado, ali
não podiam entrar.
Se gostam de romances históricos, na
maioria muito pouco históricos, aqui têm o “país estrangeiro” da história sem ficção, que já foi o nosso,
mas já não é.
https://www.publico.pt/2023/03/11/opiniao/opiniao/passado-pais-estrangeiro-2041966
COMENTÁRIOS:
pintosa Experiente : Tive dois tios no Barreiro, onde houve tempo em que
parei muito. O mais novo foi toda a vida operário da CUF, tendo frequentado o
Curso Industrial de Química nos anos 40. O mais velho também, mas foi despedido
quando das greves de 1943. O que não foi mau para ele, pois empregou-se num dos
estaleiros de reparações do Seixal e acabou a viver bem, para a época, com
automóvel e férias anuais em Espanha, na década de 60. A primeira e única vez
que fui a um estádio de futebol foi ao do Barreirense, com esse meu tio mais
velho. Era comunista, como era barreirense. Pois é, embora possa não parecer,
tenho origens operárias... 11.03.2023 19:41 Herlander Braz Iniciante : Infelizmente a Memória ainda é muito pouco trabalhada
a nível da educação e social. Sem passado, ninguém tem futuro, compreender e
aceitar o passado seria um exercício que nos ajudaria a entender ao que isto
chegou. Mas o que ser é branquear. 11.03.2023
19:27 JPR_Kapa Moderador Excelente forma de nos convidar a (re)visitar a períodos da nossa história,
os seus registos e documentos, através de uma exposição. O texto ajuda-nos e
cria, desde logo, um percurso interpretativo. J I Toscano Iniciante: E houve um período em que o Esquadrão permanente da
GNR era substituído todos os meses. Bem haja pelo artigo e pela exposição. 11.03.2023
17:47 rafael.guerra Influente : Se o passado é um país
estrangeiro, o presente é um extraterrestre. 11.03.2023 16:36 Carlos Fonseca Experiente: Desempenhei funções de direcção
em empresa da CUF. Tratava-se de um grupo com uma cultura empresarial ímpar no
país e creio que mesmo no mundo. O passado é, de facto, um país estrangeiro.
Todavia, o presente poderia ser bem diferente, de indústria modernizada. Cavaco
e Catroga, este quadro superior do grupo, retalharam e venderam-na aos pedaços.
Só no Barreiro tinha cerca de 25.000 trabalhadores. Agora, Cavaco declara que o
País deve produzir bens transaccionáveis. Uma contradição grave de quem, como
1.º ministro, afirmava que Portugal deveria transformar-se num país de
serviços, como a Suíça. Foi o autor principal da destruição da CUF. Também já é
passado, mas mais recente e lamentável. 11.03.2023 12:23 Manuel Figueira.529114 Experiente : Não diga essas coisas de quem nunca se engana e jamais
tem dúvidas. 11.03.2023 16:21 Josué Iniciante : Um dos ideólogos do Cavaquismo foi precisamente
Pacheco Pereira , como as pessoas mudam. 11.03.2023 22:14 rafael.guerra Influente : Culpam Cavaco Silva de todos os males, mas quem
asfixiou e enfraqueceu esse imenso conglomerado que era a CUF, foi o governo
provisório de Vasco Gonçalves que em 1975 a nacionalizou. 12.03.2023 11:00 Teodoro.antonio.1195414 Iniciante: Texto notável. Só não concordo com o autor que este já
não é o nosso País. É sim. Pode não estar visível, mas está impregnado na nossa
existência coletiva. 11.03.2023 12:02
Luis_Morgado Experiente: Em Alferrarede-Abrantes, há um bairro também com uma
Rua do Amoníaco e adicionalmente com as Ruas do Azoto e do Hidrogénio. Claro
que a Avenida que dá acesso a esse bairro se chama Avenida da CUF e
evidentemente que o bairro é conhecido como o bairro da CUF, que tinha piscinas
e uma escola, onde o meu avô deu aulas, e uma interessante Arquitectura,
suavemente moderna. .03.2023 11:10 radical do centro Moderador: Este homem é grande. Uma
figura maior do nosso País. É impossível não ficar marcado por este texto. 11.03.2023 10:16 cfcatarino1977 Experiente As crónicas do JPP são o único motivo porque continuo a ser assinante do
Público. Manuel Figueira.529114 Experiente: O Pacheco Pereira é o colunista do Público, e de
outras publicações como a revista Sábado, com maior grau de cultura. Tem
conhecimento da realidade, meteu e mete, as mãos na massa do trabalho de
arquivo, não aprendeu o que sabe recitando livros de outros. Mas o Público tem
muito mais gente que vale a pena ler: podia desfilar uma boa meia-dúzia de
nomes, ou uma dúzia. se não lê mais ninguém não sabe o que perde. FPS Moderador: Lá vou ter de mudar rotinas, um dia destes, e ir a
Lisboa - à Gare Marítima de Alcântara. A publicidade aqui exposta, por
JPPereira. não é enganosa, que promove a exposição dos conhecidos arquivos com
tal força que não nos deixa indiferentes, pelo contrário. A forma como esse
passado industrial do nosso século XX, aqui tão brilhantemente descrito por
Pacheco Pereira, compele-nos a aceder ao estimulante desafio. Nota pessoal:
esta crónica li-a com todo o gosto e muito prazer, que está escrita por quem
domina a língua portuguesa e dela faz um uso que nem todos os poetas são
capazes de fazer. Muito bem, José Pacheco Pereira! Manuel Figueira.529114
Experiente : O JPP não tem um saber de plástico, mas de tungsténio, na Língua, na
História, na Cultura, em geral. 11.03.2023 13:08 VivaViriato Experiente: O “passado”. Conhecê-lo é sabermos mais sobre nós
próprios, É esse o problema não o sabemos, a acresce outro não valorizarmos o
que é nosso, naturalmente o que for bom, preferimos o país estrangeiro que
refere ou as modas como as "start-up" que cita, aliás um mau exemplo,
porque são empresas que estão sempre a arrancar e, por isso, 90% não vai a lado
nenhum. São como os que têm o nome Leitão que nunca chegam a porco
Navegante Experiente: Bem haja JPP por me recordar alguns episódios desse
país estrangeiro onde vivi a minha infância e juventude! A 25 de Abril de 1974
emigrei para outro país onde tenho vivido desde então, um país melhor que
aquele onde nasci, com mais liberdade, qualidade de vida e cultura! Tem
defeitos que não existiam no país antigo, mas não estou nada arrependido de ter
emigrado para o país onde agora vivo! Você trouxe-me de volta as memórias do
meu país natal! E fez muito bem! Você já mostrou, em artigos anteriores a este,
como se percebe muito melhor a História através das vidas dos cidadão anónimos
que da visão das estátuas dos figurões que enfeitam as nossas praças! O que
você faz é inestimável! Um abraço de gratidão, JPP! 11.03.2023 08:40 Terra de ninguem Iniciante : Europa? 11.03.2023 11:16
NOTAS DA INTERNET:
De apoio à
crónica de JOSÉ PACHECO PEREIRA
O quê produzia a CUF?
A CUF produzia e comercializava milhares de produtos – adubos, óleos
vegetais, azeites, sabões, velas, rações, têxteis, entre outros -, e do seu
grupo, em Portugal e nas antigas colónias, faziam parte as empresas Tabaqueira,
Lisnave e Setenave, o Banco Totta e a Companhia de Seguros Império.
O que o país não tem a CUF cria." "Nunca aos meus operários faltou pão e
trabalho." Estas frases são atribuídas a Alfredo da Silva e,
provavelmente, são duas imagens perfeitas do homem que terá sido o mais
influente industrial português do final do século XIX e da primeira metade do
século XX.30/06/2021
30 Junho 2021 — 07:00
Oque o país não tem a CUF
cria." "Nunca aos meus operários faltou pão e trabalho." Estas
frases são atribuídas a Alfredo da Silva e, provavelmente, são duas imagens
perfeitas do homem que terá sido o mais influente industrial português do final
do século XIX e da primeira metade do século XX. O empresário que nasceu há 150
anos (30 de junho de 1871) foi uma das figuras centrais do desenvolvimento de
um Portugal então marcado pela ruralidade e com uma indústria incipiente.
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