segunda-feira, 20 de março de 2023

Os bidonvilles da nossa subsistência


Dados fundamentais para o nosso esclarecimento. Já tínhamos esquecido o tempo das barracas, ainda bem que vieram à baila pela referência de José Manuel Fernandes, que me chegou por email. Tantas são as barracas de hoje que as outras se perderam nas brumas da memória. Um texto para reler (se não sair truncado).

OBSERVADOR, 20/3/23

Há 30 anos um programa de habitação pública lançado por um governo “de direita” resolveu o problema das barracas. 30 anos depois um governo “de esquerda” nem casas do Estado consegue construir.

Se dúvidas houvesse elas foram ontem de novo desfeitas: sempre que Cavaco Silva fala, o Governo treme. Desta vez falou sobre habitação e com o conforto de celebrar 30 anos de um programa que um seu governo lançou e foi um sucesso – o PER, que permitiu erradicar as barracas dos grandes centros urbanos, em colaboração com câmaras municipais de todos os partidos (as barracas estão a regressar de novo, mas essa é outra história que também nos diz muito sobre os dias que vivemos).

Cavaco falou, e falou bem, de “preconceitos ideológicos”, concretizando: “Os marxistas ignorantes das regras de economia de mercado dirão que se proceda à coletivização da propriedade privada. Deixemo-los em paz com a sua ignorância”. Mas não se ficou pela ideologia, foi concreto e pragmático, lamentando que o Governo “não tenha tido discernimento para perceber que a máquina burocrática do Estado não tem capacidade para executá-lo”.

É precisamente por aqui que quero começar hoje, até porque já dediquei uma destas newsletters ao tema da habitação. E não quero começar pela ideologia, quero começar pela ignorância, pela incompetência e pela arrogância, pecados que nesta maioria andam de braço dado ao ponto de não sabermos qual o mais grave.

Neste tema da habitação, por exemplo, chega a arrepiar olhar para a incapacidade destes socialistas fazerem seja o que for. Como a Margarida Bentes Penedo  recordou – ou revelou, porque até para mim foi uma revelação – na década de 1970 o Estado construiu em Lisboa 1.055 casas por ano; na década de 1980, a média foi de 982 casas por ano; na década de 1990, construiu 1.151 casas por ano e de 2000 a 2010 a média foi de 991 casas por ano. Depois, entre 2010 e 2020, na Lisboa governada primeiro por António Costa e depois por Fernando Medina, o Estado (administração central, administração local, empresas e institutos públicos) só construíram uma média de 17 casas por ano. Sendo que esta mesma dupla Costa-Medina parece não ter emenda, já que até aquilo que parecia fácil (transformar o antigo edifício do Ministério da Educação em apartamentos de renda acessível) se tornou um verdadeiro nó cego.

Isto não acontecia em Lisboa desde a década de 1930, pois só recuando aos anos da I República – que também tinha um discurso gongórico sobre o direito à habitação – encontramos paralelo para este falhanço na promoção pública de casas para os mais necessitados (recomendo a este propósito que leiam Sérgio Barreto Costa, pois ele recordou no Observador, num ensaio muito interessante, a história de 100 anos de políticas da habitaçãoEntregar casas ao povo, mas meter as mãos na massa e não na argamassa dos outros).

Por outras palavras: aquilo que o Estado Novo fez, aquilo que fizeram governos de esquerda e de direita no pós 25 de Abril, que foi terem uma política consistente de promoção de habitação pública, é algo que este governo (e a Câmara de Lisboa de Costa e de Medina), mesmo podendo parecer de acordo com os seus preconceitos ideológicos, não consegue concretizar.

É por isso que eu digo que nesta maioria, além da tal ignorância marxista, há também uma enorme incapacidade de realizar seja o que for a par com a arrogância típica de quem acha que tudo lhes é permitido.

A Transtejo compra barcos eléctricos sem baterias? Eu até admito que pudesse haver racionalidade económica em separar no tempo a ordem de construção dos barcos (que levam três anos a ser construídos) da compra das baterias (que todos os meses baixam de preço), mas isso não pode ser feito enganando o Tribunal de Contas.

Alexandra Reis coloca o seu lugar à disposição depois da nomeação de Christine Ourmières-Widener? Vamos supor que Pedro Nuno Santos até confiava na ex-administradora e queria que ela continuasse, mas como é que depois aceita o seu afastamento pela nova presidente da TAP e dá o seu acordo à indemnização de 500 mil euros? Não podendo alegar desconhecimento, será que alega distração? Ou esquecimento? Ou, o que é mais certo, admite que fez o que fez por achar que tudo lhe é permitido?

(E como tudo lhe será sempre permitido porque “é muito de esquerda”, Pedro Nuno não desiste, ao que parece, de liderar o PS e de um dia tentar ser primeiro-ministro, sendo significativo que Ascenso Simões tenha assumido, em entrevista ao Observador, que tudo o que é preciso é tempo para polir de novo a sua imagem em termos de opinião pública…)

A ministra da Agricultura não sabe o que dizer sobre a inflação? Inventa-se mais um observatório, desta vez para eventualmente colocar uma etiqueta de “custo justo” nas cinco mil referências que existem em cada supermercado e que podem estar a mudar de preço todos os dias, sendo que, como lembrou certeiramente Carlos Guimarães Pinto esta semana na Assembleia, até o mesmo produto (deu o exemplo das ervilhas) pode ter preços muito diferentes conforme a forma como é vendido.

Esta maioria acha que, com um sacudir de culpas, um conveniente bode expiatório e um hábil controle da agenda informativa, mandando o cão abanar a cauda é sempre possível salvar a pele a eternizar-se no poder. O que tendo acontecido até agora tem um custo cada vez mais elevado para nós todos, os que vivem neste desgraçado país (ou muito engraçado país, depende do nosso humor), e um bom exemplo disso é como uma medida populista assumida sem qualquer estudo sério das suas consequências (a reversão para as 35 horas) fez com que, no Serviço Nacional de Saúde, fosse necessário contratar milhares de profissionais (que já nem existem), fosse necessário contratar ainda mais horas extraordinárias, e se acabasse a gastar mais 1,5 mil milhões de euros para ter resultados mais medíocres (este estudo da Nova SBE mostra como o aumento do número de profissionais foi anulado pela incapacidade de organização e como de 74 milhões de horas trabalhadas no SNS em 2015 passámos a 73 milhões em 2019, o que significou que “as novas contratações realizadas neste período não se traduziram num aumento global do volume de trabalho, não contribuindo assim para o aumento da prestação de cuidados de saúde”).

Isto é o PS e o Estado às ordens do PS, um “Estado que nunca empregou tanta gente, cobrou tantos impostos, recebeu tantos subsídios estrangeiros, e gastou tanto dinheiro, mas onde nada parece suficiente para vigiar os mares e ensinar os jovens”, como notou o Rui Ramos.

Porque é que isto sucede, e sucede, e sucede, e nada acontece, nem mesmo um pequeno sobressalto? Essa é a questão a que estamos sempre a regressar, e a que eu naturalmente também regressarei.

Um sentido e imenso adeus

A newsletter desta semana é um pouco mais curta e menos variada do que o habitual porque nesta semana também me aconteceu despedir-me da minha mãe. Depois de hesitar um pouco sobre que fotografia partilhar convosco, acabei por escolher aquela que partilhei nas redes sociais – e com ela também o texto que na altura escrevi. Aqui fica essa imagem e esse testemunho, escrito na passada segunda-feira:

Partiste hoje serenamente, minha mãe.
Tiveste uma vida longa e preenchida, viste crescer cinco filhos, depois oito netos e uma bisneta. Estivemos hoje lá quase todos, a despedirmo-nos, sabendo como nos momentos de alegria e de tristeza – que também os houve – estavas lá, como também sempre estiveste ao lado do pai até ele nos ter deixado.
Parecias indestrutível, pois até tinhas resistido ao Covid quando ele te apanhou, tu que então já tinhas mais de 90 anos, mas julgo que nunca te esqueceste daquilo que muitas vezes nos repetiste quando éramos novos, atrevidos e com vontade de conquistar o mundo: “Lembra-te que és pó, e ao pó hás-de voltar”. A frase está no Livro do Génesis, aquele com que se inicia este tempo que vivemos, este tempo que escolheste para partir, o tempo da Quaresma. Este que é igualmente um tempo onde melhor entendemos a nossa condição humana e a sua finitude.
No dia em que celebrámos todos juntos os 50 anos do teu casamento com o nosso pai tive de ler um texto onde recordei aquela vez em que, sentado na beira da vossa cama, vocês trataram de me acalmar recordando-me que que a minha liberdade, a liberdade de qualquer um de nós, acaba onde começa a liberdade dos outros. Foi uma lição que nunca esqueci e hoje valorizo ainda mais – uma lição que recordei ao pegar num dos livros de que tanto gostavas (que não sei se ainda guardavas na mesinha de cabeceira), um livro de Simone Weil onde encontrei esta frase que não exagero se disser que foi uma das minhas máximas de vida, e muito o legado que tu e o pai nos deixaram: “Nada no mundo pode impedir o homem de se sentir nascido para a liberdade. Jamais, aconteça o que acontecer, ele pode aceitar a servidão – pois ele pensa.”
Juntas-te agora a ele, ao nosso pai, e também ao nosso irmão Luís.
Obrigado por tudo, querida mãe. Descansa em paz.

 

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