quarta-feira, 22 de março de 2023

Tão magnífica assim?


Magnífica, sim, a Ucrânia, pela sua coragem constante. A Europa, parece antes falsa, senhorilmente distanciada de uma participação mais fraterna, sempre loquaz e gentilmente acalorada para com uma Ucrânia vítima da atrocidade russa, a aguentar só - com o apoio, é certo, de armas enviadas fraternalmente, para que continue a defender-se e a defender a magnífica Europa democrática…

Opinião

“Europa trágica e magnífica”

Talvez seja mais favorável e mais realista para a Europa uma nova ordem multipolar, com um pólo que ainda pode garantir a sua preponderância.

TERESA DE SOUSA

PÚBLICO, 19 de Março de 2023, 7:00

1. Jacques Delors tinha uma expressão particularmente feliz para captar a “alma” europeia, que nos ajuda, tantas vezes, a entendê-la melhor: “Europa, trágica e magnífica.” A Europa de Delors era muito diferente da Europa de hoje, mas a sua “alma” ou os princípios fundadores com os quais quis contrariar a tragédia de sucessivas guerras mantêm-se os mesmos. São, em boa medida, a sua grande força. Desde a fundação da Comunidade Económica Europeia, em 1958, a Europa já atravessou inúmeras crises, que conseguiu superar, mantendo-se fiel a esses princípios fundadores. Hoje enfrenta, certamente, a sua maior crise de sempre: uma guerra de grandes dimensões em território europeu, que se trava na sua fronteira Leste e que foi provocada por uma grande potência nuclear.

2. Na sexta-feira passada, realizou-se em Lisboa um encontro, organizado pelo European Council on Foreign Relations (ECFR) e pela Fundação Gulbenkian, para debater, justamente, a resposta europeia à crise provocada pela guerra. O ministro dos Negócios Estrangeiros, João Gomes Cravinho, participou no painel de debate, com o director do ECFR, Mark Leonard, e com o chefe da sua delegação em Varsóvia, Piotr Buras. A discussão partiu de um inquérito realizado por este think tank em nove países da União Europeia, a que se juntou a China, Rússia, Índia, Turquia e Estados Unidos, sobre a forma como as respectivas opiniões públicas olham para a guerra e para as suas consequências à escala global: “Ocidente Unido, Dividido do Resto: a opinião pública global um ano depois de guerra da Rússia na Ucrânia.” As conclusões foram publicadas em Fevereiro deste ano e noticiadas pelo PÚBLICO.

No passado dia 13 de Março, o ECFR publicou um novo texto sobre as conclusões deste inquérito, assinado por Mark Leonard e Ivan Krastev, cujo título resume bem a situação actual da União Europeia perante a maior crise que enfrenta desde a sua fundação: “Unidade Frágil: porque é que os europeus se uniram sobre a Ucrânia (e o que pode levá-los a dividir-se)". É um bom resumo dos dilemas que se colocam hoje à Europa.

3. Sobre as razões pelas quais a União Europeia conseguiu unir-se, rápida e surpreendentemente, perante a agressão russa e agir em apoio da Ucrânia, já há um bom número de estudos que conduzem quase todos a conclusões semelhantes: o choque e a súbita compreensão de que a Rússia era uma ameaça directa e permanente à sua segurança; a capacidade extraordinária de resistência do povo ucraniano; a liderança americana. No debate, o ministro português dos Negócios Estrangeiros acrescentou uma quarta razão: a brutalidade revelada pela Rússia no campo de batalha. Ninguém lhe pode ficar indiferente. É certamente um dos factores que explicam o apoio crescente da opinião pública europeia à Ucrânia.

Em Maio de 2022, o ECFR tinha realizado um inquérito semelhante, que apenas incluía países europeus. O resultado revelava que uma maioria, ainda que pequena, queria acima de tudo que a guerra acabasse depressa, mesmo que à custa de cedências territoriais por parte da Ucrânia. O ECFR classificou este grupo como o “campo da paz”. Uma minoria, designada por “campo da justiça”, considerava que se deveria apoiar a Ucrânia até conseguir levar as tropas russas para fora do seu território. Hoje, o “campo da justiça” cresceu consideravelmente, com a consequente redução do “campo da paz” a todo o custo. A questão é saber até quando este apoio vai continuar e até quando a unidade europeia vai resistir.

No curto prazo, há três factores importantes para manter a unidade europeia, o primeiro dos quais é evitar que a Ucrânia sofra derrotas militares. Para isso, a Europa tem de aumentar rapidamente o envio de armamento, o que não é fácil, não tanto por falta de vontade, mas pelo rápido esgotamento dos stocks. O segundo factor é tentar controlar os efeitos do aumento do custo de vida na generalidade dos países europeus, fundamental para preservar o consenso que tem existido até agora entre centro-direita e centro-esquerda no apoio à guerra. Mais uma vez, as respostas políticas não são fáceis. Basta olhar para o que se passa hoje em muitos países europeus, com milhares e milhares de pessoas na rua.

Finalmente, citando Mark Leonard, “o maior perigo pode vir de Washington”, da mesma maneira que Washington foi fundamental para manter a coesão europeia.Qualquer mudança política nos Estados Unidos pode ser catastrófica.” Essa “mudança política” é aquela que provoca mais pesadelos aos decisores europeus. Não é, longe disso, uma inevitabilidade, mas é uma possibilidade.

A semana passada foi pródiga em declarações de dois dos mais fortes candidatos às “primárias” republicanas: Donald Trump e Ron DeSantis. Ambos consideram que a América não tem nada que ver com esta “guerra europeia”. O anterior Presidente diz que lhe poria fim em 24 horas. Sabe-se como, dada a sua pública amizade e admiração por Vladimir Putin. DeSantis disse que se trata de uma mera “disputa territorial”, que não afecta os interesses americanos. Ambos tentam convencer os eleitores de que a Europa “se aproveita” dos Estados Unidos, em vez de ser ela a garantir e a pagar a sua segurança. As eleições americanas realizam-se em Novembro do próximo ano. Antes delas, haverá eleições para o Parlamento Europeu, em Maio ou Junho de 2024, que vão ter a guerra como tema incontornável.

O Presidente russo, que despreza as democracias, porque as considera fracas, já tem poucas armas ao seu dispor na Ucrânia, para além de tentar prolongar o conflito até ao cansaço dos europeus ou até a uma mudança política em Washington.

4. O debate na Gulbenkian foi também sobre os desafios de médio/longo prazo a que a União tem de responder, para garantir que esta guerra levará a uma nova ordem de segurança europeia. Piotr Buras resumiu três grandes questões que a guerra colocou no topo da agenda europeia: as questões de segurança e defesa e, mais precisamente, como criar os mecanismos dissuasores de uma nova agressão da Rússia; o alargamento da União Europeia; a solidariedade energética, com a questão da segurança energética de regresso à “transição verde”. É na resposta a estes desafios que o investigador polaco vê as fragilidades da unidade europeia. Por exemplo, como reconciliar a necessidade do alargamento, incluindo os países que antes constituíam uma “zona cinzenta” entre a União e a Rússia, com as dificuldades institucionais que coloca à União Europeia. Ou como garantir que uma União alargada preserva o princípio fundamental do Estado de direito? Ou, ainda, como integrar na UE países, como a Ucrânia, que não têm a garantia de defesa da NATO?

A agressão russa, como lembraram todos os participantes no painel, pôs fim aos argumentos invocados na cimeira de Bucareste da Aliança Atlântica, em 2008, para adiar sine die o alargamento aos países da “zona cinzenta” entre a NATO e a Federação Russa, que se resumiam a não alimentar na Rússia o complexo de cerco. Não serviram de nada. A alternativa pode ser um “pacto de defesa” negociado com a Ucrânia pelos aliados europeus mais relevantes? Uma espécie de “modelo israelita”, em que os EUA garantem a segurança e a defesa de Israel? O debate já existe.

Estas questões, muito difíceis, dependem de uma pergunta prévia a todas as outras, que Piotr Buras resumiu assim: “Temos uma visão comum?” “Percebemos o alcance da resposta a estas três questões?” A União Europeia vai conseguir afirmar-se no mundo como um “actor geopolítico” credível?

“Unidade não significa homogeneidade”, disse o ministro português, sublinhando que “há diferenças que têm de ser superadas dentro da União Europeia” e que aparecem sistematicamente.

O inquérito levado a cabo pelo ECFR também aponta para outras duas conclusões. Uma maioria de europeus considera que a União Europeia e os Estados Unidos saíram “mais fortes” desta crise. Mas uma maioria equivalente vê a competição entre os EUA e a China como a tendência dominante e organizadora de uma futura ordem internacional. Qual o lugar para a União Europeia nesta nova ordem tendencialmente bipolar?

Talvez seja mais favorável e mais realista para a Europa uma nova ordem multipolar, com um pólo que ainda pode garantir a sua preponderância: um pólo ocidental? Mas também aqui, apesar da guerra, a Europa está dividida e a incerteza prevalece.

A frase de Delors para exprimir a essência da integração europeia continua válida.

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COMENTÁRIOS (de 58)

  António Seiça  Experiente : Sobre o ponto 3, vale a pena ler um artigo recente do Politico, intitulado "The Surprising Reason Europe Came Together Against Putin". Nele, a jornalista Claire Berlinski argumenta como o Google Translate combinado com o twitter mudou a forma como o mundo se comunica. Na Europa, os cidadãos que assistem às atrocidades perpetradas pelo governo russo em tempo real, traduzidas nos seus próprios idiomas, exigem que os seus governos apoiem a Ucrânia. Além disso, o super avançado tradutor googleano tem sido uma arma poderosa contra a propaganda nazi-stalinista do Kremlin e respectivos "países amigos", pois, muitas mensagens panfletárias e, muitas vezes, falsas, para consumo interno, podem ser lidas e desmascaradas em tempo real por quem não entende uma palavra de russo, como eu. Experimentem!...

  rafael.guerra Influente: Com Putin a Rússia regressa tanto ao passado que vai acabar por perder a guerra e retomar o seu nome medieval: Rus de Kyiv...

  Aleixo.1216157  Iniciante: Se os americanos não tivessem ajudado a Europa, hoje falávamos alemão e a nossa capital era Berlim

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