Neste caso, os Ucranianos. Nós, por cá,
vamos analisando, estudando – alguns, pelo menos – dando pareceres… Quem está a
sofrer mesmo são os Ucranianos, a dar o corpo ao manifesto. Agradecemos a
análise, é claro, mas choca a frieza da expressão “nem tudo corre mal”, num tal
contexto de espanto impotente perante a velhacaria de uns e a admiração sem
limites pelo heroísmo dos que lhes estão sujeitos. O contributo dos que
colaboram na ajuda, é claro que também merece gratidão…
Opinião
O Ocidente e os outros. Nem tudo corre mal
O quadro internacional não parece, portanto, tão
negativo quanto o pintamos, embora não dispense um esforço político e
diplomático muito maior por parte das democracias.
PÚBLICO, 26 de
Fevereiro de 2023
1. O dia em que passou um ano sobre a invasão russa da Ucrânia permitiu fazer um balanço sobre o estado do
mundo, perante uma guerra de agressão que viola o
direito internacional, consagrado na Carta das Nações Unidas. É verdade que as democracias ocidentais não
conseguiram trazer para o lado da Ucrânia boa parte do chamado Sul Global,
incluindo alguns países tão importantes como a Índia. É verdade que vão ter de
continuar a fazer um enorme esforço diplomático para desanuviar a desconfiança
com que esses países olham o Ocidente desenvolvido, para o que classificam como
os seus “double standards” e o seu menor empenho noutros conflitos que provocam
também muito sofrimento.
O que sentem, em primeiro lugar, são
as consequências da guerra nos preços da energia e dos alimentos. Alguns, sobretudo em África, têm velhas
relações com Moscovo, que datam do tempo da União Soviética e do seu apoio
militar e político aos seus movimentos de libertação. Alguns são governados por autocratas para os quais o direito internacional e os
direitos humanos são um pormenor. Na América Latina, ainda se sente,
sobretudo à esquerda, um sentimento
antiamericano fortemente enraizado nas elites intelectuais (o Brasil é um
exemplo), que vem do tempo da Guerra Fria e da estratégia americana de
contenção da Rússia na Europa e no mundo.
Mas ninguém pode dizer que a maioria desses países apoia a invasão
russa de um país soberano, nem sequer que lhe dá o benefício da dúvida. Na quinta-feira, 141 dos 193 países
membros da ONU votaram a
favor de uma resolução
que condena a agressão russa, que exige
a retirada das suas tropas do território ucraniano e que apoia o plano de paz
em 10 pontos apresentado por Kiev para uma solução diplomática. Foi
a terceira vez que a
Assembleia Geral da ONU votou no mesmo sentido com número de votos similar –
143, logo a seguir à invasão, para condená-la; quando Putin
anexou por decreto quatro províncias do Leste e do Sul da Ucrânia ao território
da Federação Russa; e, agora, quando passa um ano sobre a agressão russa.
Houve 32 abstenções, que incluem
países tão importantes como a China, a Índia ou a África do Sul. A China
proclamou, uma semana antes da invasão, a sua “amizade sem limites” com a
Rússia, mesmo que se continue a dizer “neutral”. Durante um ano, o seu discurso
oficial repetiu quase todas as razões de Putin para justificar a agressão,
incluindo a ameaça da NATO à sua segurança.
2. A
Índia é um caso diferente. Durante
a Guerra
Fria, encabeçou o
“movimento dos não-alinhados” e o seu arsenal militar foi construído, em boa
parte, com armamento soviético. É a “maior
democracia do mundo”, mas o primeiro-ministro Naranda Modi enveredou por uma política nacionalista, de
supremacia da maioria hindu, que está a pôr em causa alguns dos princípios
democráticos em que assentou a ordem política indiana. Além disso,
citando a investigadora alemã Claudia
Major, países como a Índia “sentem-se muito confortáveis sentados em
cima do muro”, sem ter de tomar uma posição clara sobre o conflito. Compram à
Rússia petróleo e gás mais barato. Ganham autonomia e relevância internacional.
A
Índia não abandonou o QUAD (Diálogo de Segurança Quadripartido), de que é
membro com os EUA, Japão e Austrália, desde 2007. Assinou recentemente um
acordo com os Estados Unidos sobre cooperação científica e tecnológica,
incluindo no campo da defesa. O seu maior rival na região chama-se China. Modi
já advertiu publicamente Moscovo contra o recurso a armas nucleares. A África do
Sul absteve-se. A Nigéria votou a favor.
3. Quem são os seis países que
votaram contra a resolução das Nações Unidas ao lado da Rússia? Coreia do Norte, Síria, Bielorrússia,
Nicarágua, Mali e Eritreia. Sabemos o
que são os três primeiros. Para quem não se lembre, a Nicarágua
vive sob o jugo de Daniel Ortega, que impõe ao seu
povo um regime ditatorial que tenciona perpetuar por via familiar. A Eritreia deve ser
hoje, com Pyongyang, o país mais
fechado do mundo, onde impera o terror. O Mali, um país
paupérrimo, é governado por uma junta
militar, sem qualquer contemplação com os direitos mais elementares dos
malianos, graças à ajuda do Grupo Wagner e à retirada das tropas francesas.
O quadro internacional não parece, portanto, tão negativo quanto o
pintamos, embora não dispense um esforço político e diplomático muito maior por
parte das democracias, para além daquele que o secretário-geral da ONU tem
desenvolvido e que tem sido notável.
4. E isto
conduz-nos até Pequim, ao seu plano de paz em 12 pontos e à
resposta de Volodymyr Zelensky, durante
o seu encontro, na sexta-feira, com os jornalistas estrangeiros que cobrem a
guerra. Justificou
a distância que tantos países de África ou da América Latina mantêm em relação
ao combate da Ucrânia pela soberania e a liberdade com alguns erros de
desatenção dos governos do seu país. Disse estar disponível para se encontrar
com os seus dirigentes, explicando que a Ucrânia tem um único
inimigo – Vladimir Putin.
Uma
das grandes questões do dia era o “plano de paz” que Pequim foi apresentar a Moscovo para um
cessar-fogo. Ao contrário dos responsáveis ocidentais, não desvalorizou
totalmente a iniciativa de Pequim. “Creio que o facto de a China começar
a falar da Ucrânia não é mau. A questão é saber o que virá a seguir às
palavras, que passos e em que direcção.” Disse não conhecer os detalhes, mas
manifestou a sua disponibilidade para um encontro com o seu homólogo chinês.
Zelensky
não terá provavelmente grandes dúvidas sobre o que faz mover
Pequim. Mas sabe que, aos olhos do mundo e no
próprio interesse da Ucrânia, não pode ignorar uma iniciativa de um país
poderoso que se tem declarado oficialmente “neutral”.
Devolveu às autoridades chinesas a obrigação de dar mais um passo, envolveu
directamente Xi Jinping, sem hostilizar abertamente a China, num momento
crucial do conflito em que um eventual apoio militar a Moscovo poderia
desequilibrar o campo de batalha.
Na
semana passada, durante a Conferência de Segurança de Munique, Wang Yi, o
conselheiro especial de Xi que falou pela primeira vez desta “iniciativa de
paz”, ficou furioso com Anthony Blinken, porque o secretário de Estado
americano comunicou aos aliados o que lhe dissera a ele em privado: que os
Estados Unidos desencorajavam vivamente qualquer intenção de fornecer armamento
à Rússia. Joe Biden já se encontrou duas vezes com o seu
homólogo chinês desde a invasão russa.
A
primeira, por videoconferência,
pouco depois do seu início, e a 14 de Novembro, pessoalmente, à margem de
uma cimeira do G20, em Bali. As duas
serviram para que os Estados Unidos clarificassem as “linhas vermelhas” do
apoio de Pequim a Putin: não violar as sanções e não fornecer
armamento letal. Os serviços secretos americanos têm confirmado o cumprimento
da primeira condição, mas alertaram para uma possível quebra da segunda.
Blinken agiu preventivamente. Os aliados europeus levaram o aviso a sério.
5. Tudo o que a China mais teme é uma
derrota da Rússia, que possa ter como consequência uma possível mudança de
regime. Perderia o seu principal aliado
na competição estratégica com os Estados Unidos, tal como a União Soviética
perdeu a China de Mao, na década de 1970, quando Kissinger forjou um
entendimento entre Pequim e Washington, assente na comum hostilidade a Moscovo.
O regime chinês vive, ainda hoje,
obcecado com a implosão do regime soviético. Teme que aconteça o
mesmo ao regime de Putin. A sua iniciativa visa, em primeiro lugar, impedir uma
derrota da Rússia, sem afectar demasiado as relações económicas com as
economias ricas e, sobretudo, sem beliscar a sua reputação no Sul Global. O seu
plano é também sobre a sua reputação nesses países.
6. Vivemos
uma semana plena de sinais sobre uma guerra de agressão bárbara a um país
europeu soberano, de cujo resultado dependerá o mundo em que vamos viver no
futuro. Alguns extraordinariamente positivos, como a visita de Biden a Kiev.
Outros que mostraram até que ponto os interesses estratégicos americanos na
Europa são mais fortes do que o medo de uma deriva isolacionista e populista,
em 2024.
Em
Munique, onde esteve presente a maior delegação de sempre de congressistas
americanos, Mitch McConnell, o líder da
minoria republicana no Senado, recomendou aos aliados europeus para não ligarem
muito ao que lêem no Twitter: “A América continua convosco.” Na sexta-feira, em
Helsínquia, emitiu uma declaração na qual apelou aos americanos e aos seus
aliados para “acordarem para o perigo que a Rússia representa", “renovarem
a sua determinação de ajudar a Ucrânia” e reforçarem a NATO.
COMENTÁRIOS:
José
Manuel Martins Moderador :
excelente mais uma vez. O pico: o ponto
5. O que remete ao ponto 4: Zelensky sabe que entre a 'ambiguidade chinesa' e a
pós-verdade russa, a diferença é escassa, e que o presente envenenado de paz
pequinês é um cavalito de tróia que leva água no bico e marines no bojo.
Cuidado com a maçã do éden, da branca de neve e do camarada xi. A pergunta
crucial a fazer é: a integridade territorial da Crimeia pertence à Rússia ou à Ucrânia?
Se pertence à segunda, basta o kremlin assinar. Esse duodécimo dispensa os
outros 11.
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