sexta-feira, 3 de março de 2023

Quem se lixa mesmo é o mexilhão


Neste caso, os Ucranianos. Nós, por cá, vamos analisando, estudando – alguns, pelo menos – dando pareceres… Quem está a sofrer mesmo são os Ucranianos, a dar o corpo ao manifesto. Agradecemos a análise, é claro, mas choca a frieza da expressão “nem tudo corre mal”, num tal contexto de espanto impotente perante a velhacaria de uns e a admiração sem limites pelo heroísmo dos que lhes estão sujeitos. O contributo dos que colaboram na ajuda, é claro que também merece gratidão…

Opinião

O Ocidente e os outros. Nem tudo corre mal

O quadro internacional não parece, portanto, tão negativo quanto o pintamos, embora não dispense um esforço político e diplomático muito maior por parte das democracias.

TERESA DE SOUSA

PÚBLICO, 26 de Fevereiro de 2023

1. O dia em que passou um ano sobre a invasão russa da Ucrânia permitiu fazer um balanço sobre o estado do mundo, perante uma guerra de agressão que viola o direito internacional, consagrado na Carta das Nações Unidas. É verdade que as democracias ocidentais não conseguiram trazer para o lado da Ucrânia boa parte do chamado Sul Global, incluindo alguns países tão importantes como a Índia. É verdade que vão ter de continuar a fazer um enorme esforço diplomático para desanuviar a desconfiança com que esses países olham o Ocidente desenvolvido, para o que classificam como os seus “double standards” e o seu menor empenho noutros conflitos que provocam também muito sofrimento.

O que sentem, em primeiro lugar, são as consequências da guerra nos preços da energia e dos alimentos. Alguns, sobretudo em África, têm velhas relações com Moscovo, que datam do tempo da União Soviética e do seu apoio militar e político aos seus movimentos de libertação. Alguns são governados por autocratas para os quais o direito internacional e os direitos humanos são um pormenor. Na América Latina, ainda se sente, sobretudo à esquerda, um sentimento antiamericano fortemente enraizado nas elites intelectuais (o Brasil é um exemplo), que vem do tempo da Guerra Fria e da estratégia americana de contenção da Rússia na Europa e no mundo.

Mas ninguém pode dizer que a maioria desses países apoia a invasão russa de um país soberano, nem sequer que lhe dá o benefício da dúvida. Na quinta-feira, 141 dos 193 países membros da ONU votaram a favor de uma resolução que condena a agressão russa, que exige a retirada das suas tropas do território ucraniano e que apoia o plano de paz em 10 pontos apresentado por Kiev para uma solução diplomática. Foi a terceira vez que a Assembleia Geral da ONU votou no mesmo sentido com número de votos similar – 143, logo a seguir à invasão, para condená-la; quando Putin anexou por decreto quatro províncias do Leste e do Sul da Ucrânia ao território da Federação Russa; e, agora, quando passa um ano sobre a agressão russa.

Houve 32 abstenções, que incluem países tão importantes como a China, a Índia ou a África do Sul. A China proclamou, uma semana antes da invasão, a sua “amizade sem limites” com a Rússia, mesmo que se continue a dizer “neutral”. Durante um ano, o seu discurso oficial repetiu quase todas as razões de Putin para justificar a agressão, incluindo a ameaça da NATO à sua segurança.

2. A Índia é um caso diferente. Durante a Guerra Fria, encabeçou o “movimento dos não-alinhados” e o seu arsenal militar foi construído, em boa parte, com armamento soviético. É a “maior democracia do mundo”, mas o primeiro-ministro Naranda Modi enveredou por uma política nacionalista, de supremacia da maioria hindu, que está a pôr em causa alguns dos princípios democráticos em que assentou a ordem política indiana. Além disso, citando a investigadora alemã Claudia Major, países como a Índia “sentem-se muito confortáveis sentados em cima do muro”, sem ter de tomar uma posição clara sobre o conflito. Compram à Rússia petróleo e gás mais barato. Ganham autonomia e relevância internacional.

A Índia não abandonou o QUAD (Diálogo de Segurança Quadripartido), de que é membro com os EUA, Japão e Austrália, desde 2007. Assinou recentemente um acordo com os Estados Unidos sobre cooperação científica e tecnológica, incluindo no campo da defesa. O seu maior rival na região chama-se China. Modi já advertiu publicamente Moscovo contra o recurso a armas nucleares. A África do Sul absteve-se. A Nigéria votou a favor.

3. Quem são os seis países que votaram contra a resolução das Nações Unidas ao lado da Rússia? Coreia do Norte, Síria, Bielorrússia, Nicarágua, Mali e Eritreia. Sabemos o que são os três primeiros. Para quem não se lembre, a Nicarágua vive sob o jugo de Daniel Ortega, que impõe ao seu povo um regime ditatorial que tenciona perpetuar por via familiar. A Eritreia deve ser hoje, com Pyongyang, o país mais fechado do mundo, onde impera o terror. O Mali, um país paupérrimo, é governado por uma junta militar, sem qualquer contemplação com os direitos mais elementares dos malianos, graças à ajuda do Grupo Wagner e à retirada das tropas francesas.

O quadro internacional não parece, portanto, tão negativo quanto o pintamos, embora não dispense um esforço político e diplomático muito maior por parte das democracias, para além daquele que o secretário-geral da ONU tem desenvolvido e que tem sido notável.

4. E isto conduz-nos até Pequim, ao seu plano de paz em 12 pontos e à resposta de Volodymyr Zelensky, durante o seu encontro, na sexta-feira, com os jornalistas estrangeiros que cobrem a guerra. Justificou a distância que tantos países de África ou da América Latina mantêm em relação ao combate da Ucrânia pela soberania e a liberdade com alguns erros de desatenção dos governos do seu país. Disse estar disponível para se encontrar com os seus dirigentes, explicando que a Ucrânia tem um único inimigo – Vladimir Putin.

Uma das grandes questões do dia era o plano de paz que Pequim foi apresentar a Moscovo para um cessar-fogo. Ao contrário dos responsáveis ocidentais, não desvalorizou totalmente a iniciativa de Pequim. Creio que o facto de a China começar a falar da Ucrânia não é mau. A questão é saber o que virá a seguir às palavras, que passos e em que direcção.” Disse não conhecer os detalhes, mas manifestou a sua disponibilidade para um encontro com o seu homólogo chinês.

Zelensky não terá provavelmente grandes dúvidas sobre o que faz mover Pequim. Mas sabe que, aos olhos do mundo e no próprio interesse da Ucrânia, não pode ignorar uma iniciativa de um país poderoso que se tem declarado oficialmente “neutral”. Devolveu às autoridades chinesas a obrigação de dar mais um passo, envolveu directamente Xi Jinping, sem hostilizar abertamente a China, num momento crucial do conflito em que um eventual apoio militar a Moscovo poderia desequilibrar o campo de batalha.

Na semana passada, durante a Conferência de Segurança de Munique, Wang Yi, o conselheiro especial de Xi que falou pela primeira vez desta “iniciativa de paz”, ficou furioso com Anthony Blinken, porque o secretário de Estado americano comunicou aos aliados o que lhe dissera a ele em privado: que os Estados Unidos desencorajavam vivamente qualquer intenção de fornecer armamento à Rússia. Joe Biden já se encontrou duas vezes com o seu homólogo chinês desde a invasão russa.

A primeira, por videoconferência, pouco depois do seu início, e a 14 de Novembro, pessoalmente, à margem de uma cimeira do G20, em Bali. As duas serviram para que os Estados Unidos clarificassem as “linhas vermelhas” do apoio de Pequim a Putin: não violar as sanções e não fornecer armamento letal. Os serviços secretos americanos têm confirmado o cumprimento da primeira condição, mas alertaram para uma possível quebra da segunda. Blinken agiu preventivamente. Os aliados europeus levaram o aviso a sério.

5. Tudo o que a China mais teme é uma derrota da Rússia, que possa ter como consequência uma possível mudança de regime. Perderia o seu principal aliado na competição estratégica com os Estados Unidos, tal como a União Soviética perdeu a China de Mao, na década de 1970, quando Kissinger forjou um entendimento entre Pequim e Washington, assente na comum hostilidade a Moscovo.

O regime chinês vive, ainda hoje, obcecado com a implosão do regime soviético. Teme que aconteça o mesmo ao regime de Putin. A sua iniciativa visa, em primeiro lugar, impedir uma derrota da Rússia, sem afectar demasiado as relações económicas com as economias ricas e, sobretudo, sem beliscar a sua reputação no Sul Global. O seu plano é também sobre a sua reputação nesses países.

6. Vivemos uma semana plena de sinais sobre uma guerra de agressão bárbara a um país europeu soberano, de cujo resultado dependerá o mundo em que vamos viver no futuro. Alguns extraordinariamente positivos, como a visita de Biden a Kiev. Outros que mostraram até que ponto os interesses estratégicos americanos na Europa são mais fortes do que o medo de uma deriva isolacionista e populista, em 2024.

Em Munique, onde esteve presente a maior delegação de sempre de congressistas americanos, Mitch McConnell, o líder da minoria republicana no Senado, recomendou aos aliados europeus para não ligarem muito ao que lêem no Twitter: “A América continua convosco.” Na sexta-feira, em Helsínquia, emitiu uma declaração na qual apelou aos americanos e aos seus aliados para “acordarem para o perigo que a Rússia representa", “renovarem a sua determinação de ajudar a Ucrânia” e reforçarem a NATO.

tp.ocilbup@asuos.ed.aseret

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COMENTÁRIOS:

  José Manuel Martins Moderador : excelente mais uma vez. O pico: o ponto 5. O que remete ao ponto 4: Zelensky sabe que entre a 'ambiguidade chinesa' e a pós-verdade russa, a diferença é escassa, e que o presente envenenado de paz pequinês é um cavalito de tróia que leva água no bico e marines no bojo. Cuidado com a maçã do éden, da branca de neve e do camarada xi. A pergunta crucial a fazer é: a integridade territorial da Crimeia pertence à Rússia ou à Ucrânia? Se pertence à segunda, basta o kremlin assinar. Esse duodécimo dispensa os outros 11.

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