Parece-me antes, uma sociedade brincalhona. Paulo Tunhas avalia-a dentro dos seus parâmetros de filósofo, que lhe dão estatuto, com certeza, mas numa dimensão que não é a nossa. E muito menos quando olhamos para o que se passa longe, de gente invadida e a morrer em luta corajosa contra a infâmia astuciosa de quem se arroga de um poder que seria risível se não fosse tão absurdo de pesporrência. Não, nem vale a pena acusar quem governa ou finge governar, de ser causa, todos são cúmplices numa anarquia sem tom nem som, que cria o sentimento de desprezo que por aí vai, a que a ausência de valores éticos e culturais dá consistência.
Uma sociedade infeliz
É uma sociedade que dê guarida a essa
pluralidade de concepções que podemos pensar como antídoto aos presentes tempos
em que uma facção tomou conta de tudo, reduzindo a cidadania a um estado de
torpor
PAULO TUNHAS, COLUNISTA DO OBSERVADOR OBSERVADOR. 02 mar. 2023, 00:192
Custa olhar para Portugal. É uma sociedade infeliz, disfuncional e
desigual, em que pouco de comum liga as pessoas.
A tendência, portanto, é a de desviar o olhar, para evitar estados de
alma deprimentes. Mas deve-se, sem dúvida, olhar de vez em quando. Há uma
espécie de obrigação. Não aquela que vem naturalmente, como com a
invasão russa da Ucrânia. Essa mobiliza logo o estrato mais profundo das poucas
convicções, no sentido verdadeiro, que podem existir em nós. Mas uma obrigação, de um modo ou de outro. Apesar
de tudo, é o nosso país. Percebemo-lo melhor do que aos outros, mesmo que nos
outros países tenhamos vivido por algum tempo. As pessoas falam a nossa
língua. Temos modos comuns de comportamento. Partilhamos qualidades e defeitos.
Há coisas que sabemos de nós que os outros não conseguem saber. Temos esses
quase segredos em comum. Perceber isto é ser, de uma certa maneira,
patriota. É um patriotismo involuntário, mas, para o bem e para o mal, efectivo.
E porque é que custa olhar para
Portugal? Porque é palpável a situação cada vez mais difícil em que vive um
grande número de pessoas. Basta andar na rua para se perceber isso. A única
coisa que um pouco o disfarça é o tudo trazer em si a memória de uma pobreza que
já vem de antes e o hábito dessa pobreza passada acomoda-nos melhor, com a
perversidade natural destas coisas, à pobreza presente. Custa também a falta de pudor – e o pudor é uma
virtude política – dos que se encontram, mesmo que personagens menores, no poder
ou na sua órbita. Custam os “casos e casinhos” de que fala António Costa. Não
só em si mesmos, na sua aleatoriedade, ou por razões que podemos chamar
simbólicas. Custam porque revelam directamente o que é a sociedade, o que
extravasa largamente o particular e o simbólico, e indica, sem margem para
dúvida, um real que desfaz todas as ilusões: uns podem, outros
não. Os poderosos podem, os outros não.
Custa a ideologia que não ousa dizer o seu nome e que infelizmente o tem: o
socialismo, reduzido a uma apropriação da sociedade pelos detentores do poder
no Estado. No caso, sem margem para
dúvidas, pelo PS. No ensino, na saúde, na habitação, nos transportes e na TAP,
por exemplo. Costa bem
pode cultivar um perfil de “pragmático”, o que quer que isso queira dizer. Mas é,
provavelmente por falta de imaginação, um socialista puro e duro, se
entendermos o socialismo como uma receita genérica para os males da sociedade
fundada no controle de tudo pelo Estado. Sem
que a sombra de uma outra ideia que não essa algum papel jogue nas decisões do
governo. E sem que um só projecto para o país o habite, fora de umas coisas
vagas que comunica num jargão burocrático ininteligível e estéril. Ideias: grau zero. Apenas
a ambição do domínio de uma facção: o PS. Mesmo que
com o eclipse do futuro inteiro do país, que se tornou literalmente impensável. Estas coisas todas, e muitas outras mais,
põem-nos a sonhar com uma sociedade diferente. O pior põe-nos a pensar no
melhor. Não o melhor concebido como uma teoria muito perfeita e acabada da
sociedade, como aquelas que muitos crêem possuir. Não há nenhuma teoria
perfeita e acabada da sociedade, pela boa e simples razão que a sociedade, o
modo de ser da existência social – a sua ontologia, se se quiser –, não se
deixa capturar por nenhuma teoria em particular, ao contrário do que acontece,
e também por razões ontológicas, por exemplo, em física. Há, sem dúvida,
factos maciços que o mínimo de atenção à realidade revela como evidentes: que a
economia de mercado funciona mais eficazmente que as alternativas que lhe foram
imaginadas e que o controle pelo Estado das empresas tem geralmente
muito más consequências. Mas, para
perceber isso, não é necessário munirmo-nos de qualquer teoria.
O
que há, na verdade, é um vasto conjunto de teorias, cada uma exprimindo, com
maior ou menor felicidade, certos aspectos da vida social e certas concepções
particulares da justiça. É uma sociedade que dê guarida a essa pluralidade de
concepções que podemos pensar como antídoto aos presentes tempos em que uma facção
tomou conta de tudo, paralisando a vida política e reduzindo a
cidadania a um estado de torpor de que ela tem dificuldade em acordar.
Não
há talvez autor como Aristóteles, na Ética a Nicómaco e na Política, que nos
possa ajudar mais nessa reflexão. Pelo
menos um Aristóteles lido a partir das suas concepções mais gerais do que faz
uma sociedade humana justa e da possibilidade de viver uma vida boa, aspirando
à felicidade, que é o desejo que move os seres humanos em geral. Não há páginas melhores sobre esse desejo do que
aquelas que a Ética a
Nicómaco, um dos
mais belos livros de filosofia jamais escritos, a ele dedicou. A
felicidade, pode-se ler aí, é o fim de todas as nossas acções e a boa sociedade
deve ser o lugar onde os homens, em conjunto, deliberam sobre os meios para
atingir a sua realização. Uma tal
sociedade só pode existir se nela encontrarmos o que ele chama amizade política. Vem na Política que a amizade é a escolha reflectida de
viver em conjunto e essa
vida, feita de belas acções, é uma vida bela. É a amizade política que funciona
como o elo que liga os vários cidadãos – o contrário, portanto, de um espírito
de facção que visa o domínio de um grupo de cidadãos sobre outros.
Não
que Aristóteles ambicione uma espécie de concórdia que interdite a pluralidade
e o conflito. Muito pelo
contrário. A tonalidade anti-platónica do que ele escreve é muito
clara. A unidade que deve presidir à
sociedade, a concórdia desejável, é uma unidade fraca, não uma unidade forte
que, precisamente, anularia a pluralidade e o conflito necessários para a vida
em sociedade. A boa concórdia não reside numa simples conformidade de
opinião e diz respeito a fins praticamente importantes e susceptíveis de
interessar a muitos, que estão simultaneamente de acordo consigo mesmos (pensam
por si próprios) e de acordo uns com os outros (pensam colocando-se no lugar do
outro). A sociedade onde a
felicidade deve ser buscada é aquela em que os indivíduos não são todos
semelhantes uns aos outros, podendo prosseguir a sua vida individual em
liberdade.
É nas democracias que esse tipo de amizade política melhor se
encontra. Enquanto que nas tiranias a amizade
e a justiça não desempenham senão um fraco papel, nas democracias, pelo
contrário, a sua importância é extrema, pois há muitas coisas comuns aí onde os
cidadãos são iguais. O cidadão, tal como Aristóteles o
concebe, existe sobretudo nas democracias.
É nelas que a multiplicidade melhor convive com a unidade e por isso elas são o
mais estável dos regimes. A amizade política dá-se, portanto, aí onde há muito
em comum entre seres diferentes entre si que convivem em igualdade, podendo
cada um desenvolver as suas excelências, ou virtudes, individuais.
Não
há, nisto que disse, qualquer determinação particular de um modelo concreto de
sociedade que se deva seguir em detrimento de outros. Há apenas um quadro geral
no qual a pluralidade dos modelos concretos se pode inscrever. E é esse
quadro geral que devemos buscar como antídoto à infelicidade que vemos à nossa
volta, ditada pela falta de amizade política que uma facção que se vê como
proprietária do regime promove. Com efeito, a amizade
política e o espaço daquilo que temos em comum vão minguando a olhos vistos, ao
mesmo tempo que o PS alarga o seu poder sobre tudo, como se a pluralidade fosse
esmagada por uma unidade de facção que tudo invade. O resultado é uma sociedade
infeliz da qual apetece desviar o olhar. Até porque quem nela detém o poder não
olha para nós, enquanto finge olhar por nós.
CIDADANIA
SOCIEDADE PS POLÍTICA DIVERSIDADE
COMENTÁRIOS:
Rui Lima: O drama dos dramas é que vejo que PS
, BE e PCP serão farinha do mesmo saco e só não o é totalmente porque há Europa,
o PSD é do saco ao lado que miséria de oposição. Temo e será assim nos votos
para quem queira protestar só tem um partido o Chega , triste país .
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