E que JNP tão bem esclarece, em
histórico relato, que nos traz ecos de um saber furtivo, o que perdurará para
sempre na nossa memória traumatizada, é a “penetração” das ”Torres” nova iorquinas,
em 11/9/ 2001, por avião com passageiros, e a morte por enforcamento de Saddam
Hussein, em 30/12/2006 –século 21, pois.
Iraque: Vinte anos depois
Vinte anos depois da invasão norte-americana, preparada
pela desinformação neoconservadora, o Iraque talvez esteja mais livre, mas está
também mais longe da estabilidade e da paz.
JAIME NOGUEIRA PINTO Colunista
do Observador
OBSERVADOR, 25 mar. 2023, 00:188
Em 20 de Março cumpriram-se 20 anos sobre a invasão do Iraque pela
coligação liderada pelos Estados Unidos. A
operação Iraq Freedom foi uma operação militar bem-sucedida – a campanha
vitoriosa durou menos de um mês –, mas o resultado político e geopolítico da
guerra relâmpago foi desastroso para o Iraque, para a região e para os próprios
interesses norte-americanos.
A causa alegada para a invasão foi a
acusação de que Saddam Hussein, o ditador de Bagdad, apoiava os terroristas da
Al Qaeda, tinha armas de destruição maciça, químicas e biológicas, e estava
prestes a conseguir uma arma nuclear. Tudo isto no quadro do grande medo no
Ocidente a seguir ao ataque terrorista aos Estados Unidos do 11 de Setembro.
Saddam
não era flor que se cheirasse e a sua
descendência masculina (os manos Uday e Qusay) era ainda pior, com histórias que lembravam aqueles
abusos e brutalidades dos tiranos antigos. Mas fora um amigo e aliado de
conveniência dos EUA na guerra contra o Irão de 1980-1988, com
Washington a financiá-lo e a armá-lo generosamente.
Após oito anos de guerra e centenas de
milhares de vítimas, a situação fronteiriça ficaria praticamente igual; mas a guerra, apoiada pelo Ocidente,
perturbara e exaltara Saddam, levando-o à invasão do Kuwait em 1990 – invasão que os EUA, então governados por George
F. Bush, muito sabiamente pararam com a
operação Tempestade
no Deserto, aprovada pela ONU e pela generalidade da comunidade
internacional. Bush-pai
e o seu National Security Advisor,
Brent Scowcroft, eram patriotas americanos realistas que sabiam
que a contenção era uma coisa e o esmagamento do inimigo, deixando o vazio, era
outra… E que o messianismo ideológico era perigoso. Por isso,
vencidos os iraquianos no terreno e retirados do Kuwait, não se mudou o regime
em Bagdad.
A partir da primeira guerra do Golfo, Saddam ficou submetido a
sanções e controles das Nações Unidas. Dez anos depois, para a Administração George W. Bush, muito
influenciado pelos chamados neoconservadores, movidos por uma ideologia de
globalismo democrático e eufóricos com a ideia do “fim da História”, depois da
vitória na Guerra Fria, as sanções não eram já suficientes. Para convencer o Congresso e o povo
americano de perigosidade de Saddam, aproveitando a indignação e a cólera pós
11 de Setembro, a estratégia dos neoconservadores orientou-se para apresentar o
regime iraquiano como inspirador ou pelo menos cúmplice da Al Qaeda e estando
pronto a desencadear uma guerra ofensiva com armas de destruição maciça.
Uma campanha de desinformação
Os Estados Unidos, como reacção ao 11 de Setembro, tinham muito
justamente promovido a queda dos talibãs no Afeganistão, que albergava as bases
da Al Qaeda. Laico
e republicano, Saddam não gostava de fanáticos religiosos e não tinha nada que
ver com eles, sendo o
Iraque, por isso, um país com uma minoria cristã de mais de um milhão e meio de
pessoas. Mas a sorte do regime de Bagdad
estava traçada pela campanha de propaganda a nível da opinião pública.
A afirmação de que Saddam estava por
trás do 11 de Setembro não tinha qualquer substância, e na comunidade de
inteligência houve inicialmente grande resistência a apoiar a tese da Casa
Branca, ao ponto de o vice-presidente Dick Cheney ter de exercer sobre elas
pressão directa e intimidatória. Essa
pressão levou a que as agências de informação se abstivessem de contradizer o
governo. Porém, alguns dos seus quadros não se inibiram de confessar off the record o seu cepticismo e
preocupação perante a campanha de desinformação em curso.
Depois da invasão do Iraque e da
vitória ao fim de quatro semanas de combates, as investigações das autoridades
de ocupação americanas viriam a confirmar a não existência de armas de
destruição maciça. O absurdo da implicação iraquiana no 11 de Setembro ficaria
também claro.
Segundo apuraria depois o Center for
Public Integrity, ao longo da
campanha, nos dois anos que se seguiram ao 11 de Setembro, as principais
figuras da Administração Bush tinham feito centenas de declarações falsas.
Em Agosto de 2002, o vice-presidente Cheney, falando
na Convenção Nacional dos Veteranos de Guerra no Estrangeiro, afirmara:
“Não há dúvida que Saddam
Hussein tem agora armas de destruição maciça. Não há dúvida de que está a
juntá-las para as usar contra os nossos amigos, contra os nossos aliados e
contra nós.”
Na altura, na intelligence community havia muito
quem se perguntasse de onde lhe teria vindo semelhante informação, já que
persistiam grandes dúvidas sobre a posse de armas de destruição maciça dos
iraquianos e a sua capacidade ofensiva. Fosse como fosse, estavam ali para
fundamentar a vontade dos políticos e tinham de preparar a ida para a guerra. Assim, em finais de Setembro de 2002, com
o Congresso prestes a votar o uso da força militar no Iraque, o presidente Bush
comunicava:
“O regime iraquiano possui armas químicas e biológicas, está a construir
instalações para fazer mais e, de acordo com o governo britânico, tem
capacidade para lançar um ataque químico ou biológico em 45 minutos, depois da
ordem dada. O Iraque pode ter uma bomba nuclear dentro de um ano.”
Como depois também se apurou,
os ingleses, com o primeiro-ministro Tony
Blair, foram cúmplices zelosos na intoxicação.
Há
hoje inúmeros testemunhos sobre toda esta montagem, que chegou mesmo a criar,
no Pentágono, uma unidade especial chamada Office for Special Plans, com o
objectivo de estabelecer uma ligação entre Saddam e a Al Qaeda. Para
concretizar essa ligação inexistente, inventaram-se reuniões, sobretudo uma,
entre Mohammed Atta, o líder do 11 de Setembro, e pessoal superior da
inteligência iraquiana, em Praga. Entretanto, no New York Times de 21 de
Outubro de 2002, James Risen escrevia que o presidente da Checoslováquia Vaclav Havel telefonara a George
Bush, dizendo-lhe que não havia qualquer prova de semelhante encontro.
Em Julho de 2004, uma Comissão de
Inteligência do Senado, presidida pelo republicano Pat Roberts, do Kansas, e
tendo como Vice-Presidente o democrata Jay Rockefeller, da Virginia Ocidental,
concluiu que as informações sobre a existência de armas biológicas e químicas
eram falsas. Reconhecia o senador democrata:
“Nós,
no Congresso, se soubéssemos o que sabemos hoje, nunca teríamos contribuído com
o nosso voto para autorizar esta guerra.”
Efeitos perversos
Hoje
ninguém pode duvidar dos efeitos perversos para os Estados Unidos, para o
Ocidente e para os seus valores da invasão de há 20 anos. Uma
invasão fruto da política de globalização democrática, que depois de um inicial
caos, acabou por reforçar, no Médio
Oriente, o poder das autocracias, abrindo portas à influência diplomática da
China, um poder recém-chegado à região.
Escrevendo
no New York Times, em 20 de Março de 2023, Robert Draper, em “Iraq, 20 Years
Later: a Changed Washington and a Terrible Toll on America”, lembrava
que o Iraque custara aos Estados Unidos, em 20 anos, dois triliões de
Dólares, 8500 mortos, entre pessoal militar e das companhias militares
privadas, e muitas dezenas de milhares de combatentes com síndromes pós
traumáticos. Quanto aos iraquianos, entre
a guerra e os oito anos seguintes de ocupação e guerra civil entre sunitas,
xiitas, curdos, cristãos e azeris, devem ter morrido meio milhão. Depois da
perseguição pelos fundamentalistas islâmicos, do milhão e meio de cristãos só
ficaram no Iraque 150 mil.
Nos
Estados Unidos, os políticos críticos da intervenção no Iraque, como a
democrata Nancy Pelosi e o republicano Donald Trump (que em 2015 classificou a
invasão do Iraque como “a tremendous disservice to humanity”), tornaram-se mais
populares. Para Draper, a crónica das mentiras e da
manipulação da opinião pública em relação ao Iraque gerou, acima de tudo, “uma
crescente aversão à intervenção externa, não apenas entre os Democratas, mas
também entre os Republicanos”.
Este
sentimento é reforçado pelos comentários de alguns dos poucos intervenientes
que, então, ousaram opor-se à febre bélica dos neoconservadores e da sua
máquina de propaganda: um deles, o general Gregory Newbold, então director de
Operações da Junta de Chefes do Estado-Maior General, tinha argumentado, sem
eco, que o Iraque estava enfraquecido pelas sanções e não constituía qualquer
ameaça para os Estados Unidos.
Newbold, que está agora na Reserva,
lembra que os gastos com a
guerra e a ocupação do Iraque deixaram o Pentágono “com menos dinheiro para
investir em novas tecnologias”, bastando comparar “a capacidade dos chineses
nos mísseis hipersónicos e a dimensão das suas forças” com o declínio
norte-americano “em navios, em esquadrões da Força Aérea e em brigadas do
Exército”.
Hoje, no Médio Oriente, os sauditas, os grandes amigos dos Estados
Unidos, afastam-se para uma ambígua “terceira via” no conflito russo-ucraniano,
recusando-se a aumentar a produção de petróleo na OPEP; o Irão reconcilia-se
com os sauditas por mediação chinesa; e Al-Assad da Síria, sobrevivente graças
aos russos, é recebido nos Emirados.
E no Iraque? Vinte anos depois, o Iraque talvez esteja
mais livre, mas não está mais feliz. Cartazes do major-general Qassim
Suleimani, antigo chefe dos Guardas Revolucionários Islâmicos de Teerão,
enfeitam o centro de Bagdad. O iraniano Suleimani foi morto por
um drone americano em 2020, mas o seu retrato está por todo o lado na
capital do Iraque, simbolizando a influência e o poder que o Irão ali tem hoje,
graças à maioria xiita da população. Entretanto, sob uma democracia formal
e retórica, prosseguem as lutas entre sunitas e xiitas, os atentados, a
violência.
Em Maio passado, num “senior
moment”, George W. Bush, durante um discurso sobre Putin, criticou a
“totalmente injustificada e brutal invasão do Iraque”. Bush desculpou-se com a
idade e a plateia riu-se, mas o “lapso freudiano” tornou-se viral nas redes
sociais.
Quem não tem razões para rir, ou
sequer para sorrir, são os iraquianos. E os norte-americanos – que prezam os
valores da pátria e da liberdade – também não.
ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA AMÉRICA MUNDO IRAQUE
COMENTÁRIOS:
João Ramos: Como sempre
grande crónica, não há nada como ser honesto e lúcido nas suas análises, bem
hajas, JNP!!! Francisco Almeida: Acredito em versão algo diferente. Concordo que foram
os "neocons" e o globalismo que ditou a invasão. Para o globalismo
era essencial a estabilidade financeira, o dólar como moeda e o SWIFT como
sistema de pagamentos. Mais importante ainda o petrodólar como única divisa na
negociação do petróleo. Essencial também para uma política de preços baixos que
penalizasse a Rússia e favorecesse os EUA que só em 2017 ou 2018 deixaram de
ser importadores de petróleo. Saddam, quando começou a negociar petróleo
noutras divisas, incluindo a libra esterlina, ditou a sua sorte. Havia
então que criar um pretexto já que a verdade dificilmente seria percepcionada
como motivo para uma invasão. Apareceram então as armas e as ligações à
al-Qaeda. Não sei se os próprios pretextos (adeptos de teorias de
conspiração dizem que sim) mas certamente a sua má execução, deve-se a uma
divisão interna (incluindo nos falcões militares) em que alguns entendiam que a
invasão do Iraque iria enfraquecer a intervenção no Afeganistão que
consideravam prioritária. Três notas finais: 1 - As consequências da invasão
devem-se muito mais à péssima política depois da vitória militar do que à
invasão propriamente dita. 2 - JNP menciona correctamente o envolvimento inglês
mas não o explica. Eu creio que Tony Blair, aparentemente beneficiada a City
pelo aumento de transacções em libras, foi mais sensível à estabilidade
financeira e ao controlo dos preços do "crude". 3 - A Europa
foi a grande beneficiária dessa política de preços baixos, sem a qual nunca
teria disponibilidades financeiras para as suas políticas sociais. Inclusive
passou meses a comprar "crude" mais barato à al-Qaeda (por
intermediação turca e israelita). Por isso repugna-me a hipocrisia de tantos políticos
que rasgam as vestes com a invasão do Iraque e as violências da al-Qaeda. Seknevasse:
Obrigado por juntar algumas pontas que me
eram desconhecidas... esse lapso do Bush então... Grande crónica! bento guerra:
Agora, estas guerras são mais simples e
praticamente "on line". O frasquinho do Powell era uma aldrabice, mas
o Saddam estava a pedi-las e o Bush quis ver o que dava mexer no "vespeiro
islâmico", depois da afronta do 9/11 Ricardo Pinheiro
Alves: O
próprio Saddam achava que tinha armas de destruição maciça e isso era
confirmado pelos seus subordinados. O afastamento da Arábia Saudita é
responsabilidade de Biden, agora e no tempo de Obama. Américo
Silva: Não me recordo
de qualquer intervenção relevante do TPI. Antonio
Romão: Só não me
parece que seja verdade o seguinte: um país invadir outro, ganhar a guerra de
invasão e sair a perder dinheiro! As guerras, sobretudo as de invasão, desde o
tempo das guerras com mocas, fazem-se para obter benefícios materiais. Fernando CE:
Terá sido um crime contra a Humanidade. O
então egípcio director da agência da ONU (Mohamed el Baradei) para a energia
atómica denunciou a grande mentira da existência das armas de destruição maciça
no Iraque.
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