E o seu efeito lá pelas Rússias. Na escrita
clara de Teresa de Sousa. A revolta, só poderia partir
do povo russo. Como outrora, de resto, noutras guerras mais próximas de nós.
Mas o povo está magnetizado, o que não saiu, por não poder ou não saber ou
desejar acompanhar… O que se estranha… Mas a TS assim nos vai alertando,
humana e simples…
O Mundo de Hoje
No próximo ano, em Moscovo
Os temas da
actualidade global, pelo olhar de Teresa de Sousa.
PÚBLICO, 07 de março de 2023
Caro
leitor, cara leitora:
Na noite do dia 23 de Fevereiro de
2022, Volodymir Zelensky dirigiu um apelo dramático aos cidadãos da Federação
Russa para que resistissem à invasão em larga escala que Vladimir Putin se
preparava para lançar contra o seu país. Falou-lhes em russo. "Quem pode
parar esta guerra? O povo. Jornalistas,
figuras públicas, comediantes, actores, médicos, professores, bloggers..."
É assim que começa um podcast da revista britânica The Economist cujo título é
"No Próximo Ano, em Moscovo".
São
34 minutos através dos quais conseguimos sentir na pele o que sentiram aqueles
cidadãos russos que sabiam que a invasão seria uma tragédia pessoal e nacional.
É a história daqueles que se opuseram à guerra no exacto segundo em que
começou. Na sua maioria, abandonaram o seu país, a sua cidade, o seu trabalho,
a sua casa, a sua família. Sabiam que não valia a pena ficar.
Porque seriam presos. Porque pressentiam que a esmagadora maioria dos russos
nunca iria para a rua protestar. Porque antecipavam um endurecimento brutal do
regime, que silenciaria a verdade sobre a invasão, com o seu cortejo de
horrores, e reprimiria qualquer resistência. Um ano depois, não se voltaram a
encontrar em Moscovo.
Um ano depois, a guerra continua. Um
ano depois, quase não há resistência contra a guerra. Um ano depois, o regime
de Putin resiste aparentemente incólume. Ao fim de um ano de sanções
ocidentais, as mais amplas de que há memória, pioraram as condições de vida dos
russos, mas não ao ponto de virem para a rua protestar. Cerca de um
milhão de cidadãos abandonaram o país, em geral os mais jovens, os mais
instruídos, aqueles que fariam mais falta a uma Rússia desenvolvida e moderna.
É o maior abandono das classes mais educadas desde a revolução bolchevique de
1917.
O Kremlin não se incomoda: vê esta
diáspora como uma válvula de escape do regime. A segunda mobilização,
decretada em Setembro, levou uma nova vaga de gente a
abandonar o país, mas o recrutamento centrou-se nas regiões mais
longínquas da Rússia e não nas grandes cidades da sua metade europeia. Nas ruas
de Moscovo ou São Petersburgo, a vida prossegue com relativa tranquilidade.
O número de baixas em combate
atinge as duas centenas de milhares, entre mortos e feridos – quatro vezes mais
do que nos dez anos da invasão do Afeganistão, em 1979, que foi o início do fim
do regime soviético. Ainda não parecem ser suficientes para causar
perturbações, que a máquina repressiva e o domínio quase total da informação se
encarregam de sufocar. Não vai ser
sempre assim. Ainda continua a ser assim. Pode deixar de ser assim, no dia em que
os cidadãos russos percebam que todos os sacrifícios que estão a sofrer para
defender a mãe-pátria se traduzam em sucessivas derrotas no campo de batalha;
quando essas derrotas deixarem de poder ser escamoteadas ou transformadas em
vitórias pelo discurso oficial do Kremlin e pelos órgãos de comunicação social
controlados pelo Estado.
Nessa madrugada "Nessa madrugada, todas as minhas
esperanças foram esmagadas", diz Andrei, um jornalista russo, a Arkady
Ostrovsky, que é o editor para a Rússia e a Ucrânia da Economist, também ele
nascido na Rússia, cuja família emigrou para o Reino Unido logo a seguir à
queda da União Soviética. "Esta vergonha viverá comigo até ao fim dos meus
dias". Os russos como ele tinham três saídas possíveis: "Não fazer
nada, resistir ou fugir."
"Na Praça Pushkin, no centro da
cidade, Andrei e Arkady discutem sobre a dimensão da concentração convocada
para protestar contra a guerra. São três da tarde do dia 25 de Fevereiro, em
Moscovo. O jornalista russo vê apenas algumas centenas de manifestantes e
"mais de mil polícias." Tudo lhe parece negro – as fardas dos
polícias são negras e, no Inverno, a noite cai muito cedo em Moscovo. O enviado
da revista britânica vê alguns milhares. Os dois concordam que não são muitos.
Nesse dia, a polícia de choque prenderá 1700 pessoas, metade das quais em
Moscovo. Andrei será uma delas. Já tinha a sua saída preparada. "Para quem
vive numa ditadura, não é algo que se possa decidir de um dia para o
outro." E há uma regra. "Nunca se põem os dois pais em risco".
Se tivesse decidido ficar, teria apenas duas alternativas: "Protestar e
ser preso, ou ficar em casa a beber vodka".
As manifestações continuaram. As
prisões também. Por algum tempo. Hoje, já são raras. Os media independentes foram todos
encerrados – um cálculo aponta para mais de 250. Quem chamar guerra à
"operação militar especial" pode incorrer numa pena até 15 anos de
prisão.
Marina Davidova é dramaturga e crítica de teatro. Lançou uma petição
contra a guerra através da Internet no próprio dia 24 de Fevereiro. Alguns dias
depois, quando deixava entrar uma equipa de uma televisão austríaca que a
queria entrevistar, tinha um enorme Z escrito na porta. Percebeu que tinha de
partir.
Fala-se russo em Istambul Arkady
vai ao encontro de muitos daqueles que saíram da Rússia, na
cidade para onde era mais fácil fugir: Istambul. Não era
preciso visto. Os voos continuaram. Passou um ano. Passaram milhares
de vidas ucranianas dizimadas, cidades destruídas, crimes contra a Humanidade
que não podem nunca ser esquecidos. Em Bucha ou Irpin. Mariupol. Agora, Bakhmut.
Os ucranianos resistem. Na cidade turca junto ao Bósforo ouve-se falar russo em
quase toda a parte. "Parece que meia Moscovo está em Istambul". Na montra
da pequena livraria de Sonya só há livros em língua russa. "A minha filha tinha dez anos e eu era
obrigada a explicar-lhe tudo aquilo que ela não podia dizer na escola. Todas as
manhãs. Não era vida para ela." Partiu. Pensou que podia fazer a
diferença, "abrindo um espaço onde fosse possível começar um diálogo entre
russos e ucranianos." Na véspera de Ano Novo, ainda na sua loja, não
conseguiu virar a página do calendário. "Chorei durante muito tempo."
Valeu a pena?
Com
a mobilização de Setembro, calcula-se que tenham abandonado a Rússia mais cerca
de 700 mil pessoas. Putin manteve a fronteira com a Arménia aberta. Os melhores
e os mais jovens continuam a sair. As sanções vão ser mais duras de
suportar no segundo ano da guerra. O número de baixas em combate vai
continuar a subir. Os russos, como toda a gente, não gostam de sofrer. A
propaganda oficial não vai poder abafar todas as notícias.
Putin resiste Alguns especialistas dizem
que o regime russo revelou uma capacidade de resistência notável no primeiro
ano de guerra. Às elites
económicas, que deixaram de poder manter os seus iates nas costas europeias ou
circular livremente no mundo rico, só lhes resta a Rússia. Não vão rebelar-se
contra Putin. Os serviços de segurança, que são vários, competem uns com os
outros e vigiam-se uns aos outros. O poderoso FSB (herdeiro do KGB, de cujas
fileiras Putin emergiu) vigia de perto os militares. Não vão atentar contra o
Kremlin. "O regime de Putin foi capaz de adaptar-se", diz Marlene
Laruelle, investigadora da Universidade George Washington, num debate
organizado pelo Center for New American Security. O regime tornou-se,
entretanto, "muito mais repressivo e brutal". Aos poucos, "a sua
margem de manobra vai continuar a diminuir".
Outro dos participantes desta
conferência virtual, no dia 2 de Março, Timothy Frye, da Universidade de
Columbia, disse que não vale a pena minimizar os efeitos das sanções – porque
elas são "um sinal da unidade ocidental" enviado ao Kremlin; e porque
"degradam a capacidade militar da Rússia", principalmente com a falta
do material tecnológico indispensável.
Hoje, vários peritos militares
ocidentais confirmam que a Rússia está com falta de munições e de mísseis. Não
consegue substituir os tanques destruídos em combate. Tem de recorrer a modelos
mais antigos, sem capacidade para enfrentar os Challenger britânicos e os Leopard alemães. A sua "grande ofensiva"
traduziu-se até agora na reconquista de escassas centenas de quilómetros. Desde
o Outono que tenta conquistar Bakhmut. O chefe dos mercenários do Grupo Wagner
acaba de acusar os militares de "traição ou incompetência" porque não
lhe enviam munições para a frente de batalha.
A velocidade com que a Europa conseguiu
libertar-se da dependência da energia importada da Rússia, mesmo que as exportações
cresçam para outros destinos, terá um impacte assinalável na economia.
Daniel Treisman, da Universidade da Califórnia em Los Angeles, desmontou os
resultados das sondagens levadas a cabo pelo Instituto Levada de Moscovo (um
dos raros com alguma credibilidade). Quando se pergunta a alguém se apoia
"o seu lado da guerra", é natural que responda que sim. Mas apenas
cerca de 40% dizem que a guerra deve continuar. "No médio prazo, haverá
menos produtos nas lojas, mais despedimentos, algumas bolsas de
descontentamento".
Mesmo assim, os académicos que
participarem nesta conferência virtual admitem que grandes levantamentos contra
a guerra e contra o regime são "improváveis". O que lhes parece mais provável é que venha a chegar o
momento em que o regime de Putin se confronte com a impossibilidade real de
lidar com o cruzamento de uma multiplicidade de crises – na economia, no campo
de batalha, na pressão externa. "A imagem do regime sofrerá uma crescente
erosão."
Muita coisa vai depender da unidade da
frente ocidental no seu apoio à Ucrânia e da sua capacidade para fornecer o
equipamento militar de que os ucranianos precisam para lançar, em breve, uma
nova contra-ofensiva. Tenha uma boa semana
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