quarta-feira, 8 de março de 2023

Tropelias putinescas


E o seu efeito lá pelas Rússias. Na escrita clara de Teresa de Sousa. A revolta, só poderia partir do povo russo. Como outrora, de resto, noutras guerras mais próximas de nós. Mas o povo está magnetizado, o que não saiu, por não poder ou não saber ou desejar acompanhar… O que se estranha… Mas a TS assim nos vai alertando, humana e simples…

 

O Mundo de Hoje

No próximo ano, em Moscovo

Os temas da actualidade global, pelo olhar de Teresa de Sousa.

TERESA DE SOUSA

PÚBLICO, 07 de março de 2023

Caro leitor, cara leitora:

Na noite do dia 23 de Fevereiro de 2022, Volodymir Zelensky dirigiu um apelo dramático aos cidadãos da Federação Russa para que resistissem à invasão em larga escala que Vladimir Putin se preparava para lançar contra o seu país. Falou-lhes em russo. "Quem pode parar esta guerra? O povo. Jornalistas, figuras públicas, comediantes, actores, médicos, professores, bloggers..." É assim que começa um podcast da revista britânica The Economist cujo título é "No Próximo Ano, em Moscovo".

São 34 minutos através dos quais conseguimos sentir na pele o que sentiram aqueles cidadãos russos que sabiam que a invasão seria uma tragédia pessoal e nacional. É a história daqueles que se opuseram à guerra no exacto segundo em que começou. Na sua maioria, abandonaram o seu país, a sua cidade, o seu trabalho, a sua casa, a sua família. Sabiam que não valia a pena ficar. Porque seriam presos. Porque pressentiam que a esmagadora maioria dos russos nunca iria para a rua protestar. Porque antecipavam um endurecimento brutal do regime, que silenciaria a verdade sobre a invasão, com o seu cortejo de horrores, e reprimiria qualquer resistência. Um ano depois, não se voltaram a encontrar em Moscovo.

Um ano depois, a guerra continua. Um ano depois, quase não há resistência contra a guerra. Um ano depois, o regime de Putin resiste aparentemente incólume. Ao fim de um ano de sanções ocidentais, as mais amplas de que há memória, pioraram as condições de vida dos russos, mas não ao ponto de virem para a rua protestar. Cerca de um milhão de cidadãos abandonaram o país, em geral os mais jovens, os mais instruídos, aqueles que fariam mais falta a uma Rússia desenvolvida e moderna. É o maior abandono das classes mais educadas desde a revolução bolchevique de 1917.

O Kremlin não se incomoda: vê esta diáspora como uma válvula de escape do regime. A segunda mobilização, decretada em Setembro, levou uma nova vaga de gente a abandonar o país, mas o recrutamento centrou-se nas regiões mais longínquas da Rússia e não nas grandes cidades da sua metade europeia. Nas ruas de Moscovo ou São Petersburgo, a vida prossegue com relativa tranquilidade.

O número de baixas em combate atinge as duas centenas de milhares, entre mortos e feridos – quatro vezes mais do que nos dez anos da invasão do Afeganistão, em 1979, que foi o início do fim do regime soviético. Ainda não parecem ser suficientes para causar perturbações, que a máquina repressiva e o domínio quase total da informação se encarregam de sufocar. Não vai ser sempre assim. Ainda continua a ser assim. Pode deixar de ser assim, no dia em que os cidadãos russos percebam que todos os sacrifícios que estão a sofrer para defender a mãe-pátria se traduzam em sucessivas derrotas no campo de batalha; quando essas derrotas deixarem de poder ser escamoteadas ou transformadas em vitórias pelo discurso oficial do Kremlin e pelos órgãos de comunicação social controlados pelo Estado.

Nessa madrugada "Nessa madrugada, todas as minhas esperanças foram esmagadas", diz Andrei, um jornalista russo, a Arkady Ostrovsky, que é o editor para a Rússia e a Ucrânia da Economist, também ele nascido na Rússia, cuja família emigrou para o Reino Unido logo a seguir à queda da União Soviética. "Esta vergonha viverá comigo até ao fim dos meus dias". Os russos como ele tinham três saídas possíveis: "Não fazer nada, resistir ou fugir."

"Na Praça Pushkin, no centro da cidade, Andrei e Arkady discutem sobre a dimensão da concentração convocada para protestar contra a guerra. São três da tarde do dia 25 de Fevereiro, em Moscovo. O jornalista russo vê apenas algumas centenas de manifestantes e "mais de mil polícias." Tudo lhe parece negro – as fardas dos polícias são negras e, no Inverno, a noite cai muito cedo em Moscovo. O enviado da revista britânica vê alguns milhares. Os dois concordam que não são muitos. Nesse dia, a polícia de choque prenderá 1700 pessoas, metade das quais em Moscovo. Andrei será uma delas. Já tinha a sua saída preparada. "Para quem vive numa ditadura, não é algo que se possa decidir de um dia para o outro." E há uma regra. "Nunca se põem os dois pais em risco". Se tivesse decidido ficar, teria apenas duas alternativas: "Protestar e ser preso, ou ficar em casa a beber vodka".

As manifestações continuaram. As prisões também. Por algum tempo. Hoje, já são raras. Os media independentes foram todos encerrados – um cálculo aponta para mais de 250. Quem chamar guerra à "operação militar especial" pode incorrer numa pena até 15 anos de prisão.

Marina Davidova é dramaturga e crítica de teatro. Lançou uma petição contra a guerra através da Internet no próprio dia 24 de Fevereiro. Alguns dias depois, quando deixava entrar uma equipa de uma televisão austríaca que a queria entrevistar, tinha um enorme Z escrito na porta. Percebeu que tinha de partir.

Fala-se russo em Istambul Arkady vai ao encontro de muitos daqueles que saíram da Rússia, na cidade para onde era mais fácil fugir: Istambul. Não era preciso visto. Os voos continuaram. Passou um ano. Passaram milhares de vidas ucranianas dizimadas, cidades destruídas, crimes contra a Humanidade que não podem nunca ser esquecidos. Em Bucha ou Irpin. Mariupol. Agora, Bakhmut. Os ucranianos resistem. Na cidade turca junto ao Bósforo ouve-se falar russo em quase toda a parte. "Parece que meia Moscovo está em Istambul". Na montra da pequena livraria de Sonya só há livros em língua russa. "A minha filha tinha dez anos e eu era obrigada a explicar-lhe tudo aquilo que ela não podia dizer na escola. Todas as manhãs. Não era vida para ela." Partiu. Pensou que podia fazer a diferença, "abrindo um espaço onde fosse possível começar um diálogo entre russos e ucranianos." Na véspera de Ano Novo, ainda na sua loja, não conseguiu virar a página do calendário. "Chorei durante muito tempo." Valeu a pena?

Com a mobilização de Setembro, calcula-se que tenham abandonado a Rússia mais cerca de 700 mil pessoas. Putin manteve a fronteira com a Arménia aberta. Os melhores e os mais jovens continuam a sair. As sanções vão ser mais duras de suportar no segundo ano da guerra. O número de baixas em combate vai continuar a subir. Os russos, como toda a gente, não gostam de sofrer. A propaganda oficial não vai poder abafar todas as notícias.

Putin resiste Alguns especialistas dizem que o regime russo revelou uma capacidade de resistência notável no primeiro ano de guerra. Às elites económicas, que deixaram de poder manter os seus iates nas costas europeias ou circular livremente no mundo rico, só lhes resta a Rússia. Não vão rebelar-se contra Putin. Os serviços de segurança, que são vários, competem uns com os outros e vigiam-se uns aos outros. O poderoso FSB (herdeiro do KGB, de cujas fileiras Putin emergiu) vigia de perto os militares. Não vão atentar contra o Kremlin. "O regime de Putin foi capaz de adaptar-se", diz Marlene Laruelle, investigadora da Universidade George Washington, num debate organizado pelo Center for New American Security. O regime tornou-se, entretanto, "muito mais repressivo e brutal". Aos poucos, "a sua margem de manobra vai continuar a diminuir". 

Outro dos participantes desta conferência virtual, no dia 2 de Março, Timothy Frye, da Universidade de Columbia, disse que não vale a pena minimizar os efeitos das sanções – porque elas são "um sinal da unidade ocidental" enviado ao Kremlin; e porque "degradam a capacidade militar da Rússia", principalmente com a falta do material tecnológico indispensável.

Hoje, vários peritos militares ocidentais confirmam que a Rússia está com falta de munições e de mísseis. Não consegue substituir os tanques destruídos em combate. Tem de recorrer a modelos mais antigos, sem capacidade para enfrentar os Challenger britânicos e os Leopard alemães. A sua "grande ofensiva" traduziu-se até agora na reconquista de escassas centenas de quilómetros. Desde o Outono que tenta conquistar Bakhmut. O chefe dos mercenários do Grupo Wagner acaba de acusar os militares de "traição ou incompetência" porque não lhe enviam munições para a frente de batalha. 

A velocidade com que a Europa conseguiu libertar-se da dependência da energia importada da Rússia, mesmo que as exportações cresçam para outros destinos, terá um impacte assinalável na economia. Daniel Treisman, da Universidade da Califórnia em Los Angeles, desmontou os resultados das sondagens levadas a cabo pelo Instituto Levada de Moscovo (um dos raros com alguma credibilidade). Quando se pergunta a alguém se apoia "o seu lado da guerra", é natural que responda que sim. Mas apenas cerca de 40% dizem que a guerra deve continuar. "No médio prazo, haverá menos produtos nas lojas, mais despedimentos, algumas bolsas de descontentamento".

Mesmo assim, os académicos que participarem nesta conferência virtual admitem que grandes levantamentos contra a guerra e contra o regime são "improváveis". O que lhes parece mais provável é que venha a chegar o momento em que o regime de Putin se confronte com a impossibilidade real de lidar com o cruzamento de uma multiplicidade de crises – na economia, no campo de batalha, na pressão externa. "A imagem do regime sofrerá uma crescente erosão."

Muita coisa vai depender da unidade da frente ocidental no seu apoio à Ucrânia e da sua capacidade para fornecer o equipamento militar de que os ucranianos precisam para lançar, em breve, uma nova contra-ofensiva. Tenha uma boa semana

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