quinta-feira, 9 de março de 2023

Curiosidades póstumas

 

De justificação anti-colonialista.

A guerra colonial como “operação policial”

Segundo Salazar, se os portugueses conseguissem limitar o esforço militar ao mínimo necessário, para poupar recursos, poderiam encarar a guerra colonial como uma espécie de operação policial, e fazê-la durar até os independentistas perceberem que nada tinham a ganhar pelo recurso à violência. Tudo dependia da capacidade do governo para habituar os portugueses à guerra. Por isso mesmo, ela teria de ser barata. Satisfeita esta condição, o tempo estaria a favor dos portugueses. Em Novembro de 1967, Salazar podia permitir-se um pouco de confiança: “penso que deve ser-se optimista quando se está seguro de fazer durar indefinidamente a resistência”.

De facto, cada vez menos salazaristas acreditaram neste cálculo. Em primeiro lugar, porque o sentimento independentista no ultramar português não era uma simples invenção comunista. Não era por acaso que a maior parte dos chefes independentistas eram mestiços ou negros que haviam adoptado um modo de vida europeu. Quanto mais europeizados, mais os não-brancos descobriam que a cor da sua pele não lhes permitia integrar verdadeiramente a classe dominante do Estado português. Como notava Amílcar Cabral, “quem mais sofre com os tugas são essa gente da cidade”, os africanos que já eram “pequeno burgueses”, sempre confrontados com a superioridade branca, enquanto “o homem que vive no mato […], por vezes morre sem ter visto um branco”.

Por mais que a igualdade entre raças fosse política oficial, a verdade é que a administração portuguesa determinava uma predominância dos brancos europeus e dos seus descendentes nas sociedades do ultramar. O projecto português de “desenvolvimento associado”, como gostava de se lhe referir o ministro Adriano Moreira, era contraditório: quanto maior o seu sucesso na promoção dos nativos, maior a percentagem destes que haveria de achar insuportável o desnível de poder entre a metrópole e o ultramar. Ora, a associação estava fundada nesse desnível de poder.

O tempo também estava a diminuir o apelo da causa ultramarina. Ao contrário do que esperava Salazar, o Ocidente, em vez de despertar para o confronto final com o mundo comunista, optava por uma política de apaziguamento. Em 1968, o governo dos EUA começou a vacilar na determinação em defender o Vietname do Sul contra a invasão comunista, e a sua política de intervenção militar na Indochina passou a ser ruidosamente contestada por estudantes universitários convertidos à esquerda revolucionária.

Em Portugal, o mesmo tipo de estudantes impôs o anticolonialismo como pedra de toque da oposição anti-salazarista. Havia algo de ainda mais grave: a extrema-direita fizera do ultramarinismo a sua bandeira, convencida de que o ultramar permitiria ao país constituir-se como um mundo à parte da Europa ocidental. A causa da defesa do ultramar tendeu assim a identificar-se com a recusa da “normalização” ocidentalista de Portugal. Ora, tanto a emigração como as exportações para Europa ocidental pareciam indicar, na década de 1960, que a chave da prosperidade de Portugal estava na Europa, e não na África.

Finalmente, os limites impostos à guerra, para que pudesse durar, e os condicionamentos da contra-subversão começavam a exasperar os militares. Para evitar a internacionalização do conflito, os portugueses tiveram de deixar intocadas, nos países vizinhos, as bases de uma guerrilha que os Estados comunistas continuavam a abastecer e a incitar. A técnica seguida pelo exército português de ocupação em “quadrícula” de áreas muito grandes fixava as unidades militares, habituava-as à rotina e absorvia-as em tarefas civis. Impedia também a constituição de reservas, para acorrer a súbitas concentrações de inimigos. As tropas portuguesas tendiam assim a perder a iniciativa. Embora pequenas em relação ao corpo expedicionário e à duração do conflito, as baixas portuguesas eram grandes quando comparadas com a população portuguesa: três vezes superiores, deste ponto de vista, às dos EUA no Vietname. O número de candidatos aos cursos para oficial do quadro permanente na Academia Militar começou a diminuir a partir de 1966.

Na última edição do programa E o Resto é História, conversei com o João Miguel Tavares sobre a Baía de Guantánamo e a forma como Cuba alugou “perpetuamente” aquela zona aos EUA. Veja aqui o podcast em vídeo.

Rui Ramos é historiador, professor universitário, co-autor do podcast E o Resto é História

 

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