… Com a evolução dos tempos, quer em
termos de selvajaria despótica, embora de mãos impolutas, outros meios de
maquinação, a coberto do foro estatal possibilitando uma total perversão e ausência
de escrúpulos morais, além de um acréscimo de ambição e vaidade pessoais, que
se traduzem em requinte habitacional, por vezes de formato flutuante,
possibilitando esconderijo ou fuga previdentes, convenientes a uma visibilidade
nem sempre desejada, apesar da aparência de confiança e abertura social, de
necessária unção, angariadora de corte respeitadora. Sim, hoje está perfeitamente
às escâncaras, essa imagem flácida do tirano absoluto e cobarde, escondido na sombra
ilimitada de um poder que o progresso torna mais escandalosamente arrasador.
Mas foi ponto de partida para mais uma lição brilhante de Jaime Nogueira Pinto, na
exposição de um tema clássico que escritores de vária índole exploraram.
Todavia, com a reabilitação apresentada do “tirano”, que nos traz Jaime Nogueira Pinto, ficamos em
dúvida se pretende ilibar o tirano dos nossos tempos de tanto artifício e
maquiavelismo. Não me parece que tenham reabilitação os Ricardos III de hoje.
Ricardo III: a imagem do tirano
Para os humanistas a monarquia – o governo de um só –
era o melhor regime para servir o bem comum. Por isso, para a distinguir da
tirania, era fundamental dissecar a figura do tirano.
11 mar. 2023,
00:2222
No
século XIX, em França,
era o romance
histórico, de Dumas
ou de Ponson du Terrail, publicado
em folhetins e criando, todos os dias, o suspense do dia seguinte, que
popularizava a História; e no século XX era Hollywood que contava à América e ao mundo
a História de Roma, a conquista do Oeste, a Guerra do Pacífico e todo o século
XX até ao fim da Guerra Fria, elencando sempre uns “bons” e uns “maus”, na
tradição do maniqueísmo protestante.
Hoje, um dos modos mais comuns de percepção
e divulgação da História são as séries televisivas.
The White Queen é uma série dramática em dez episódios sobre a Guerra
das Rosas, o conflito pelo trono de Inglaterra que, durante mais de trinta
anos, opôs os Lancaster (rosa vermelha) aos York (rosa branca). A série não tem a envergadura de Game of Thrones –
cujo argumento, entretanto, terá também partido da Guerra das Rosas – mas é bem
estruturada, tem bons actores e um guião sem as absurdas cedências a políticas
de género ou outras desgarradas fantasias inclusivas com que agora nos
surpreendem algumas produções.
Na
Guerra das Rosas de The White Queen também não deixamos de ter,
ainda que mais moderadamente, “bons” e “maus”, até pelo legado do teatro de
Shakespeare – a divulgação histórica da passagem do século XVI para o século
XVII que, pela sua genialidade e capacidade de capturar, ou até de inventar, a
natureza humana, acabaria por perdurar.
Entre as fontes de Shakespeare para Ricardo III estava Thomas More –
o autor da Utopia e chanceler de Henrique VIII que, ao pôr a lealdade ao papa
de Roma e as suas convicções de católico à frente da sua obediência ao rei
Tudor, acabou decapitado.
O livro de Thomas More, The History of King Richard the Third,
escrito entre 1513 e 1518, é curto e ficou incompleto. Começa com uma nota biográfica do rei Eduardo
IV – o rei York que, em The
White Queen, é protagonizado por Max Irons. Na nota, More descreve Eduardo,
o rei amado pelo povo, como sendo de rosto belo e de corpo poderoso e forte,
ainda que nos últimos anos, devido a uma “over liberal diet”, se apresentasse
corpulento e pesado. Ficamos também a saber que o facto de o príncipe
exemplar e sábio ter sido, na juventude, dado à “libertinagem carnal” não
afectou o amor que o povo lhe tinha; bem pelo contrário: “There was never
any prince of this land attaining the crown by battle so heartly beloved by the
substance of the people”. Todo este introito de virtudes morais e
físicas vai contrastar com o perfil do irmão, Ricardo, duque de Gloucester, que
reinou entre 1483 e 1485 como Ricardo
III.
Ricardo III, segundo Thomas More
Thomas More ou Morus, São Tomás Moro (1477-1535), entrou no
calendário católico em 1935, quando foi canonizado por Pio XI. Nascera numa família de mercadores de boa burguesia
de Londres, a burguesia ilustrada onde a Coroa recrutava os seus servidores.
Era o tempo do Humanismo e dos humanistas, da formação dos Estados nacionais e
da grande ruptura religiosa luterana. A Utopia de More é de 1516, as 95 teses de Lutero, que marcam o princípio da
Reforma, são de 1517, e O Príncipe de Maquiavel foi escrito
em 1513.
O
Príncipe de Maquiavel e a Utopia de More –
o realismo cínico de um e o idealismo platónico do
outro – fundam duas correntes
contraditórias do pensamento ocidental. Porém,
Maquiavel nem sempre foi maquiavélico – desenvolvendo noutras obras uma teoria
política de base republicana que exaltava a liberdade e a virtú na defesa da
comunidade – e More, no seu tempo de Chanceler, não terá deixado de recorrer às
maquiavélicas artes do poder.
O Ricardo III de More está
envolto em polémica e o perfil traçado pode não corresponder à verdade, mas o
facto é que inspira Shakespeare e contamina a posteridade. Assim, a imagem de Ricardo III que, através
de Shakespeare, nos fica e que persiste nos séculos seguintes, é a de um tirano
paranóico e infanticida, física e moralmente coxo e corcunda, um anti-herói que
se confessa directamente ao público com uma cumplicidade inquietante.
More
servira como pajem o Arcebispo da
Cantuária, John Morton, e depois estudara em Oxford os clássicos e as línguas
clássicas. Tornara-se
também amigo e correspondente do humanista por antonomásia – Erasmo de Roterdão
–, que traduzira o Novo Testamento numa versão alternativa à Vulgata na
tentativa de aproximar o Cristianismo e o Humanismo, mesmo incorrendo nalguns
desvios da ortodoxia papal.
More
casou em 1505 com Joanna Colt e tiveram quatro filhos. Joanna morreu em 1511 e
Thomas casou pela segunda vez com uma viúva, Alice Harpur. Em
1509, Henrique VIII subiu ao trono e, um ano depois, More foi eleito para o
Parlamento e entrou na vida política e no serviço da Coroa. Foi nos anos seguintes
que escreveu a inacabada The History of
King Richard The Third. Para
Peter Ackroyd, um dos seus biógrafos, a sua História de Ricardo III é
influenciada por historiadores romanos como Salústio e Tácito e pelos “exempla”
de que se serviam para caracterizar a figura do tirano. More
recorre também a fontes orais e transcreve discursos de personalidades da época,
uma espécie de debates ou disputationes, em que se medem os méritos retóricos e
jurídicos dos intervenientes e das suas razões.
Na
sua História, More descreve Ricardo, não como um bom príncipe mas
como o protótipo do “tirano maquiavélico” (se
então a fama do autor de O Príncipe já tivesse sido elevada a adjectivo). Secreto,
profundamente dissimulado, arrogante, malévolo, ambicioso, indiferente perante
amigos e inimigos, Ricardo, no curso da narrativa de More, tudo faz para
declarar bastardos os filhos do seu irmão Eduardo. Depois, quando o
duque de Buckingham faz o seu panegírico, o tirano, perante o vazio deixado
pela bastardia dos sobrinhos, aceita com dissimulada relutância o trono. Quanto
ao destino dos filhos de Eduardo, More dá conta dos rumores que garantiam terem
alguns cortesãos (entre eles o Constable of the Tower, Sir James Tyrell)
recebido ordens do Rei para matar as crianças.
O livro ficou inacabado. No final,
Morton, bispo da Cantuária e patrono de More, exorta Ricardo a governar com
sabedoria.
Muitos
consideraram a obra um favor à propaganda anti-York dos Tudor; mas a vida de More, o seu lugar na história do
pensamento político e o seu percurso de risco e renúncia em defesa das suas
convicções, põem em causa semelhante dedução. More fora secretário privado e
conselheiro do rei Tudor e chegara a Grand Chancellor de Inglaterra. Em 1530,
recusara-se a assinar a carta dirigida ao Papa Clemente VII pedindo a anulação
do casamento de Henrique VIII com Catarina de Aragão; em 1531 recusara-se
reconhecer o Rei como chefe da Igreja de Inglaterra; em 1532 demitira-se de
Chanceler e recusara-se a assistir à coroação de Ana Bolena; em 1534 fora preso
sob a acusação de alta traição e encarcerado na Torre de Londres. E em 1535
seria julgado e condenado à morte por decapitação. Não era o perfil de um
propagandista.
Um tirano shakespeariano
Shakespeare apresenta Ricardo
como um tirano modelo, no corpo e na alma. O rei York começa logo por nascer corcunda e já com dentes
para que os espectadores/leitores se vão preparando para uma crescente intimidade com “o Mal encarnado”.
Depois, na sua marcha para o poder, o
tirano vai confidenciando ao público as suas manobras perversas, deixando-o
perscrutar os abismos da sua alma negra.
Shakespeare
não deixa dúvidas quanto à perversidade e à maldade extremas de Ricardo. Depois
das três peças de Henrique VI, esta é a última das suas King Plays sobre a
Guerra das Rosas.
Protegido
de Isabel I, Tudor, e depois de Jaime I, Stuart, Shakespeare sabia que, a
partir de 22 de Agosto de 1485, da morte de Ricardo em combate na batalha de
Bosworth Field, mandava o maniqueísmo dos vencedores que se separassem os bons
ingleses dos maus ingleses. Conhecia bem os usos do tempo e a dureza da censura
isabelina, mas talvez o seu excesso de zelo na apreciação do último rei York,
mais de um século passado sobre a vitória dos Lancaster, ficasse sobretudo a
dever-se à oportunidade de poder encarnar o Mal numa personagem real, retratar
um tirano, mostrar a natureza humana no seu mais pérfido esplendor.
Os pensadores do Renascimento estavam
então a pensar “as categorias do político” à luz dos textos clássicos e da sua
experiência histórica. Depois da
fragmentação feudal da poliarquia da península italiana e do nascimento das
monarquias centralizadas europeias, procurava-se a forma de governo que melhor
garantisse a justiça, a paz, a liberdade privada e a segurança da comunidade. Para a maioria essa forma de governo era a monarquia
– o governo de um só.
A figura do tirano tornava-se,
por isso, fundamental: era
crucial recordar e repensar a distinção entre a monarquia, o governo de um só
para o bem comum, e a tirania, o governo de um só a favor de si mesmo, da sua
família e dos seus cúmplices. Aristóteles
desenvolvera o tema na Política, mas já falara nele na Ética a Nicómaco,
estabelecendo critérios de distinção: o
Rei mandava tendo em conta o bem-estar dos súbditos e zelando pelo bem comum; o
tirano não: o tirano mandava arbitrariamente sem consideração pela justiça e
pelo bem comum.
O tema do tirano e da tirania era já um
tema bíblico, do Livro de Samuel, a propósito da instituição dos Reis, e fora
tratado pelos filósofos gregos, pelos historiadores romanos e por Santo
Agostinho e S. Tomás de Aquino. Em França,
em 1579, em pleno tempo de guerras civis religiosas, dois huguenotes, Duplessis
Mornay e Hubert Languet, tinham
publicado, em Latim, a Vindiciae
contra tyrannos, com edição
em francês em 1581. Na Vindiciae, discutia-se longamente a resistência ao
tirano e o modo de a comunidade se livrar dele, lembrando e justificando os
“bons” tiranicidas.
No seu Ricardo III, Shakespeare vai tratar, a seu modo, o mesmo
tema, pegando na História próxima inglesa e colaborando na glorificação dos
Tudor reinantes, através da demonização do inimigo vencido. Ricardo entra em cena com o famoso solilóquio sobre “o
Inverno do nosso descontentamento”; e,
falando para toda a Humanidade, faz dela cúmplice da sua condição, de uma mesma
condição, a condição humana que Maquiavel olhara como predominantemente má ou
tendencialmente pecaminosa.
Escrita nos princípios da década de
1590, Ricardo III foi uma das primeiras peças de
Shakespeare. O seu
contemporâneo Christopher Marlowe já apresentara em Tamburlaine, the Great e em
The Jew of Malta criaturas malévolas com sucesso e poder, mas que eram
rapidamente vencidas e castigadas. Marlowe lera Maquiavel, ao tempo considerado um mero conselheiro
de tiranos, e
Shakespeare conhecia as peças de Marlowe. Assim, o jovem
Shakespeare juntou as histórias da vileza de Ricardo e deu-lhes uma lógica
maléfica, de ambição sem limites.
E seguindo a tradição bíblica e da Patrística – a Bíblia era a grande leitura
no século XVI – deu ao seu tirano o fim terrível dos tiranos antigos,
mostrando-o aterrado por pesadelos na véspera da batalha e querendo fugir ao
seu destino, perdida a batalha.
O tirano e a sua circunstância
Recentes
achados arqueológicos do cadáver de Ricardo III põem em causa a corcunda e as
demais mazelas físicas com que, quer Thomas More, quer William Shakespeare, deformaram
o Rei. Seria também tão mau de alma e espírito como os dois o pintavam?
Há
uma forte corrente no Reino Unido para reabilitar o vilão, e a ficção não deixa
de a acompanhar: em The White Queen, o Ricardo III interpretado por Aneurin
Barnard já não é corcunda, nem coxo, nem intrinsecamente mau. Pode ter um olhar sugestivo de um obscuro mundo
interior de inseguranças e pesadelos, mas já não é o tirano maquiavélico de
More ou Shakespeare: é uma vítima das circunstâncias que, incapaz de
enveredar pelo bem, é empurrado para a intriga e para o mal.
Aparentemente,
o presente vem dar razão a Francesco Guicciardini contra Maquiavel, More e
Shakespeare. Para Maquiavel, os legisladores e os governantes deviam partir
do princípio de que todos os homens eram maus, suspeitos, culpados, porque eram
naturalmente perversos; já Guicciardini contrariando-o e ao pessimismo
antropológico radical de que partia, afirmava que os homens, por natureza,
tendiam mais para o bem do que para o mal – ainda que as circunstâncias pudessem
levá-los à perversidade.
HISTÓRIA CULTURA SÉRIES MONARQUIA SOCIEDADE
COMENTÁRIOS :
Susana Costa Obrigada
pela riquíssima aula de história e por nos lembrar que, mesmo na história, não
há verdades absolutas. Carlos
Fernandes Um dos paradoxos mais curiosos
(e infelizes) da sociedade actual, é termos homens e mulheres que investem
milhares de horas no estudo dos temas históricos, investigando e analisando
diferentes fontes, balanceando os diferentes pontos de vista da época, enquadrando
os acontecimentos na perspectiva social, política e humana do período, que
procuram abrir-nos a visão para nos permitir perceber os factos que aconteceram
e o respectivo contexto, e depois temos alguém que "eu sempre achei a
História uma seca" e que vê uma série da Netflix e, de repente, torna-se
um especialista. Uma temporada de uma série ou um filme de hora e meia, e já
sentem que têm um doutoramento em HIstória, capazes de contestar o que Jaime
Nogueira Pinto ou João Pedro Marques demoraram anos a aprender e perceber. Maria
Madeira Obrigada por mais este
"banho de cultura". Graça Ribeiro Excelente, como sempre. Obrigada,JNP,
Professor. JCBP : Excelente. Venham mais, J.N.P.. João
Floriano: Uma crónica excelente, mas
muito complexa por várias razões. Aborda um momento muito complicado da
História da Europa em geral e da História da Inglaterra em particular. Há
paralelismos entre o momento que se viveu a partir do Renascimento e da Reforma
e o que vivemos hoje em dia. O tema do tirano é de grande actualidade. A guerra
da Ucrânia é usualmente referida como o combate entre regimes autocráticos (tirania
como o caso da Rússia e Irão) e regimes democráticos (Europa ocidental e
Estados Unidos). Mesmo na política nacional temos figuras com tiques
autocráticos e narcisistas próprios de tiranos. Há também a abordagem do que é
a verdade da História. O período abordado é particularmente vulnerável nesse
aspecto devido aos numerosos protagonistas: quanto mais numerosos, mais difícil
se torna encontrar a verdade, tendo cada um deles a sua própria versão. Maria Paula Silva > João
Floriano Gostei da crónica mas acho que ainda gosto mais do seu
comentário. De facto, numa época tão
conturbada e de tirania, como saber quais os documentos verdadeiros e os
falsos? sei que um bom historiador é capaz de analisar a diferença, mas mesmo
assim deve haver muita adulteração. E como
serão detectadas daqui a 500 anos as fake
news de agora?! Fiquei curiosa quanto à série The
White Queen. Francisco
Almeida > João Floriano:
Paralelismos nem
sempre são fáceis de encontrar. No mais alto nível das nossas preocupações não
há paralelismo possível entre um Zelensky, comediante que surpreendeu, e
Marcelo, intriguista que refinou. Vitor Batista Mais uma grande lição de
história. Impagável. Antonio
Sameiro BELO "NACO" de PROSA.É
RARO ENCONTRAR QUEM ESCREVA ASSIM. Meio Vazio: Obrigado.
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