E da sensibilidade.
João Salgueiro: no coração da transição
A crise entre
os católicos e o Estado Novo ficou também a dever-se à desilusão de uma ala de
católicos corporativistas com o corporativismo português.
JAIME NOGUEIRA
PINTO,
OBSERVADOR, 04 mar. 2023, 00:207
João Salgueiro está no coração da fracassada tentativa de transição
do autoritarismo do Estado Novo para um regime homologável com as democracias
da Europa Ocidental. Participou nela com lucidez, consciência e coerência,
avaliou as suas debilidades e não se deve ter surpreendido muito com o seu
fracasso.
Fez
parte daquilo a que os franceses chamam grands commis d’État, a classe de altos funcionários públicos, de
tecnocratas competentes, que, aqui, Salazar privilegiou, sobretudo na fase
final do Estado Novo, apesar das críticas e da mágoa dos elementos mais
ideológicos do Regime. O
Secretariado Técnico do Plano da Presidência do Conselho de Ministros, o “ministério
do Plano”, para onde Salgueiro foi nomeado em 1965
ainda em plena vigência do salazarismo
com Salazar, era um lugar-chave.
Ao contrário da visão maniqueísta do “monolitismo da Ditadura”,
servida pela extrema-esquerda e até por alguns historiadores da direita da
esquerda, o antigo regime tinha e sempre teve correntes, facções,
sensibilidades, grupos de pressão. Tal como
o franquismo espanhol. Só que, aqui, as correntes e os grupos eram menos
ideológicos, menos doutrinários, menos políticos e mais pessoais.
Enquanto
no tardo-franquismo dos anos 60 se perfilavam e competiam falangistas
justicialistas, estatistas, aberturistas liberalizantes, monárquicos carlistas
e afonsistas, católicos do Opus Dei e até franquistas stricto sensu,em Portugal era diferente. Aqui, as sensibilidades eram menos ideológicas e agrupavam-se mais à
volta de pessoas, de figuras influentes, geralmente de ministros ou
ex-ministros. Assim, havia
os marcelistas republicanos e
uma linha mais monárquica à volta de Fernando dos Santos Costa; os
próximos de Luís Supico Pinto e os ligados ao seu rival José Soares da Fonseca,
figuras de proa do Regime, um Presidente da Câmara Corporativa, outro da
Assembleia Nacional. E
debatiam-se linhas de interesses e havia guerras, como a que opunha os defensores
da agricultura, a “miseranda agricultura” como lhe chamavam, aos partidários da
industrialização.
Os católicos: convergências e
divergências
E,
claro, havia os católicos. Católicos
que tinham alguma influência no Regime, até pelo mau bocado passado na
Primeira República. Foi dos católicos que vieram, depois, várias
dissidências, umas por razões espirituais e ideológicas, como a crítica a uma
certa indiferença social perante a pobreza e marginalidade das camadas
trabalhadoras, a incerteza do trabalho no Alentejo e as desigualdades sociais
reinantes. Havia também
as repercussões do Concílio Vaticano II, depois da
transição de Pio XII, grande admirador de Salazar, para João XXIII e Paulo VI,
que já não liam pelo mesmo catecismo.
Havia
também casos pessoais, como o do bispo do Porto, D. António Ferreira
Gomes, que escrevera uma carta a Salazar criticando alguns
aspectos do Estado Novo, embora num tom de respeito e até de admiração pelo
então Presidente do Conselho. A carta,
porém, desencadeou reacções e respostas atrabiliárias por parte de
fundamentalistas do salazarismo que levaram a uma escalada e à ruptura de D.
António.
Os
católicos dissidentes, então chamados “progressistas”, representavam uma linha
crítica do Regime, com o peso que, durante e depois do Concílio Vaticano II,
tinha o Aggiornamento. Além disso, muitos vinham, socialmente, da média e
alta burguesia de Lisboa e do Porto, de famílias próximas do Regime; famílias
abastadas, ou “conhecidas”, isto é, santuários onde a repressão policial não
chegava. Com isto não pretendo insinuar que não fossem pessoas de convicções e
que não estivessem dispostas a correr riscos por elas, quero apenas dizer que, nas
condições do tempo, os riscos eram e foram, de facto, mínimos.
João
Salgueiro, embora
próximo por afinidades intelectuais e geracionais de alguns destes
protagonistas – tinha sido Presidente da JUC e frequentava essas tertúlias –,
teve um perfil mais técnico, mais de estudioso da história e da economia
portuguesa, mais centrado nas razões do atraso económico e social português e
nas formas de o ultrapassar. Assim,
identificava-se mais com o grupo dos chamados “tecno-católicos” ou
“sociais-desenvolvimentistas” do que com os activistas de O Tempo e o Modo.
Para
julgar a transição fracassada é tentadora a comparação com a solução espanhola,
onde a transição aconteceu por determinação de Franco que, estando à frente de
um país que passara por uma guerra civil sangrenta e violenta de parte a parte
e por um regime que a vencera, deixara tudo “atado e bem atado” através da
Monarquia Constitucional que levaria à democracia. Democracia que ele sabia
inevitável depois do desaparecimento de Carrero Blanco. À
partida, parecia mais fácil fazer a transição em Portugal do que em Espanha.
Mas não foi.
Em
Portugal, a solução monárquica –
que Salazar já afastara num discurso de 1932 – acabou por não se impor.
Marcelo
Caetano, no famoso
“discurso de Coimbra” que lhe valeria a hostilidade dos monárquicos, lembrara
que “Salazar não era imortal”, mas que o “presidencialismo bicéfalo” da
Constituição de 1933, permitia e garantia soluções: Salazar podia passar a
Presidente da República e, na chefia do Estado, guiar a transição;
presumindo-se que ele, Marcelo Caetano, ficasse como chefe do Governo.
Mas Salazar, não só afastara a solução monárquica, como também nunca
contemplara a restauração democrática. A
experiência da Primeira República, com a violência, a instabilidade e a
perseguição à Igreja, aos monárquicos e até aos republicanos conservadores, não
o predispunham para um regresso a um regime, que, naquelas circunstâncias
históricas, considerava prejudicial para o interesse nacional.
Mesmo assim, no sentido da transição,
apareceram, no final dos anos 50, os “liberais”, vindos da direita sociológica.
Juntaram-se em algumas editoras, no cineclubismo, em O Tempo e o Modo ou
no Encontro, jornal da JUC. Simbolicamente, nas eleições de 58, assinaram
manifestos pró-oposição e procuraram quebrar a ligação católica ao Estado Novo.
Constituíram assim uma nova e terceira via na oposição, onde já estavam, bem
poderosos e articulados, os comunistas; e, em decadência mas ainda com peso, os
democratas da Primeira República.
Os chamados “católicos
progressistas” fizeram
parte dessa terceira via.
João Salgueiro estava então mais na colaboração técnica ou
tecnocrática, na alta Administração Pública. Nesse
tempo, no recrutamento de quadros, já não se exigia qualquer lealdade política,
e muito menos ideológica. Por isso, não faltou quem, não sendo propriamente
salazarista ou sequer “de direita”, participasse na gestão da Administração do
Estado.
A
crise entre os católicos e o Estado Novo ficou também a dever-se à desilusão de
uma ala de católicos corporativistas (Pires Cardoso, Adérito Sedas Nunes
e o próprio D. António Ferreira Gomes)
com o corporativismo português, que tinham visto como uma possível terceira via
entre o capitalismo e o socialismo. Luís
Salgado de Matos, num interessante artigo na Análise Social – “O
25 de Abril foi possível porque o Estado Novo perdeu o apoio do catolicismo” –
historiou essa crise.
Todos
acharam, com razão, que a terceira via falhara e que os ideais justicialistas
do corporativismo cristão – no modelo nacional autoritário do salazarismo – tinham
ficado no tinteiro. E que, como escrevera o bispo do Porto na famosa carta a
Salazar o “corporativismo português” não passara, afinal, “um meio de espoliar
os operários do direito natural de associação”.
A Guerra e o fim das terceiras vias
De
qualquer modo, depois de 1945, com a associação, em termos de opinião pública,
das “terceiras vias” corporativas ou
nacionais-sindicalistas com o fascismo italiano e do fascismo italiano com o
hitlerismo, estas alternativas estavam feridas de morte. A confrontação era agora entre o capitalismo democrático ocidental e o modelo comunista. Sem terceiras vias possíveis, embora pudessem figurar
na Constituição e nas leis.
Entretanto,
a Guerra Fria, perante o inimigo principal soviético, permitiu a sobrevivência
dos autoritarismos peninsulares; daí veio, dentro do Regime, o reforço das
linhas desenvolvimentistas e tecnocráticas. Mesmo a nível ministerial,
personalidades como Rafael Duque, Ferreira Dias ou Daniel Barbosa tinham esse perfil.
Embora
Salazar, por razões políticas, defendesse um certo ruralismo cultural
(lembre-se a exaltação do campo no Livro da Terceira Classe), a verdade é
que compreendia as necessidades da sociedade e se adaptava. Tanto que
acabara por aceitar o Plano Marshall, com consequências estruturais na orgânica do
poder, nomeadamente com os Planos de Fomento de 1953. A partir daqui, é na tecnoburocracia
das estruturas económico-financeiras ligadas ao Plano e na participação em
organizações europeias, como a EFTA, que os chamados “tecnocatólicos” vão
encontrar influência. Marcelo
Caetano, ministro da Presidência, no poder ou na sombra do poder, vai ser, nesses
anos, a figura de referência na integração e protecção dos jovens tecnocratas –
que, entretanto, têm opções político-ideológicas diversas.
João Salgueiro acompanha
todo este movimento e já no marcelismo, em 1969, é nomeado Secretário de Estado
do Planeamento Económico; em 1970, está entre os fundadores da SEDES, o que o
leva, por incompatibilidade e por escolha, a abandonar
o Governo.
O dilema africano
Porém,
a transição institucional tinha uma condicionante que não era ultrapassável, que pendia desde os anos
50 sobre o destino do país e que determinaria o seu futuro. Depois de 45, os
europeus tinham iniciado a liquidação dos impérios ultramarinos. Salazar, que
não era um “colonial”, como os homens da Primeira República, achava,
entretanto, que, sem Império, sem o Ultramar, o país perderia a independência.
E pensava que não tínhamos capacidade para soluções de neocolonialismo, ao modo
dos franceses e dos ingleses, ou seja, achava que, perdida a soberania
política, perdia-se tudo.
O início da guerra de África veio prolongar a vida do Estado Novo,
já que, em 1961, parte da oposição republicana, na tradição patriótica da resistência
ao Ultimato e da intervenção na Grande Guerra, apoiaria Salazar.
Os liberais e parte dos católicos
progressistas escolhiam, aqui, o outro lado da barricada. Pela mesma razão que
alguns de nós, pela questão ultramarina, viemos para a Direita, outros, mais
conservadores, foram atirados para a Esquerda.
João Salgueiro esteve sempre no coração destes debates, mas de um
modo discreto, procurando equilibrar valores, princípios e razões entre um
sentido de responsabilidade e de interesse nacional que exigia prudência, e as
exigências do seu europeísmo e liberalismo de convicção. Ficou numa espécie de
terra de ninguém, que também não era cómoda.
Conheci-o e demo-nos bem, muito
depois de todos estes problemas e dramas acabados, quando esteve Presidente do
Banco de Fomento, da Caixa Geral de Depósitos e da Associação Portuguesa de
Bancos. Além de
falarmos de alguns projectos ligados ao espaço lusófono – onde Salazar achava
que não teríamos influência alguma, perdida a soberania dos tambores e das
bandeiras – conversávamos também como sobreviventes de tribos inimigas,
a quem o tempo tinha trazido a filosofia conciliadora das ocasiões perdidas.
João Salgueiro era lúcido, tinha sentido de humor e tinha a
consciência de que, pela força das coisas, talvez não houvesse alternativa ao
que acontecera. Na sua racionalidade
tecno-desenvolvimentista, na sua análise objectiva do atraso português, no modo
sarcástico como olhava algumas figuras de Abril e as suas acrobacias e
paranoias, mantinha um sentido ético de bem comum e preocupava-se com o destino
de Portugal e com o risco, a longo prazo e por más escolhas, de virmos a perder
a independência: “Se
acomodarmos tudo e se nos subordinarmos a tudo o que vem de fora, ponham a
independência nacional de fora” – disse numa
entrevista, em Maio de 2016, comentando a crise bancária, os resgates
dos Bancos à custa dos contribuintes e a perda de recursos financeiros e
económicos dos portugueses.
Era
particularmente crítico do modo como os governos de Lisboa tinham embarcado no
projecto europeu para o sistema financeiro: “a União Bancária é um
aborto. É um escândalo. É um desastre.”,
dizia. Para quem estava habituado ao seu modo reservado de se pronunciar,
estas palavras dariam a medida do que pensava sobre o assunto.
Morreu no fim de semana de 18-19 de Fevereiro e foi a enterrar na
Quarta-feira de Cinzas.
Aconteceu-me com ele o que já me aconteceu com outros amigos e conhecidos e até
com inimigos: depois de desencontros e divergências, a vida, o estado
a que tudo chegou, outras afinidades e o respeito por quem viveu com coerência
e verdade as suas convicções fizeram com que nos encontrássemos, neste tempo de
pequenas e médias batalhas por pouca coisa, em terra de ninguém.
A SEXTA
COLUNA ESTADO NOVO POLÍTICA OBITUÁRIO SOCIEDADE HISTÓRIA CULTURA
COMENTÁRIOS
Pedro de Freitas Leal: Lindíssimo
artigo de homenagem a João Salgueiro, cheio de pormenores sobre um tempo ainda
tão vivo na memória dos mais velhos. Obrigado! Meio Vazio:
É excelente ler este homem: minucioso
conhecimento histórico, objectividade nunca ferida pelo ressentimento,
elegância de estilo, Português impecável. miguel benis:
Como quase sempre, um exemplo de
sensibilidade e de um olhar honesto! Muito bom!! Primeiro Cabo:
Um artigo de rara lucidez de Historia
contemporânea, escrito com a tinta da emoção da partida de um amigo. Quem
deitou um olhar pela guerra de Espanha e simultaneamente pela primeira dúzia de
anos do Estado Novo, sabe que Salazar foi um menino de coro comparado com
Franco. Juanito fuzilou tudo o que era
vermelho, voluntários progressistas, católicos, mesmo os fervorosos bascos,
tudo. Salazar não era militar, tinha
de viver com eles, manipulá-los, e, isso soube fazer bem. Na falta de herdeiros, D. Manuel e D. Augusta não
tiveram filhos, Salazar enterrou a monarquia com honra e com respeito pela
História. Mandou os integralistas àquela parte e os filhos naturais
associados, também. Espanha ficou
a lamber as feridas até hoje, Portugal entrou, mais tarde, na dança das
terceiras vias, os europeístas e o absurdo Caetano fizeram o pior possível, de
tal forma que o 25 de Abril foi a queda de uma pera madura, de seguida
apodrecida pela má consciência dos meninos de berços de ouro, cujo
arrependimento e sentimento de culpa gerou o regime que temos hoje. Uma
desgraça. Obrigado JNP
pela lição de História.
Maria Clotilde Osório: Mais
uma excelente análise do Tempo e dos Homens. Carlos Oliveira Não é frequente encontrar nos escritos de JNP sinal da
sua história pessoal e da intimidade, riqueza e lucidez do seu pensamento. Um
abraço Joaquim
Lopes > Carlos Oliveira Tem alguma pouca, se não erro, na obra: "Portugal os anos do fim".
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