Nacionais. Temporais. Intemporais. Bem
contados por Rui Ramos. Via email.
RUI RAMOS
OBSERVADOR, 16/3/23
Terminar o conflito pela via mais difícil: a da
força |
Já não foi Salazar, substituído por Marcello Caetano
em 1968, quem teve de se ajustar à ideia de que, afinal, o tempo corria
contra os portugueses. Caetano convenceu-se de que o integracionismo
salazarista já não funcionava, e procurou novos argumentos, mais complicados,
assentes numa solidariedade humanitária, para justificar as operações
militares. Convenceu-se também de que a estratégia da guerra limitada e de
longa duração não podia continuar. É que havia um problema: Caetano estava,
mal ou bem, identificado com uma posição de reformismo ultramarino, que os
seus críticos de direita não hesitavam em definir como “separatista”. As suas
ideias sobre o ultramar eram, por vezes, resumidas no propósito de criar “uma
espécie de Commonwealth”. |
Encontrava-se assim em má posição para exigir, como
Salazar, um esforço indefinido. Como pedir aos militares que mantivessem o
esforço de guerra, quando estes suspeitavam de que o chefe do governo se
preparava para liquidar toda a empresa? Marcello Caetano, por tudo isto,
precisava de acabar a guerra. Mas não queria entregar o ultramar aos partidos
armados – porque sabia que essa entrega significava a expulsão dos brancos e
a revolução marxista no ultramar. Para terminar a guerra sem ceder aos
partidos armados, precisava de os submeter ou reduzir antes. Para os
submeter, precisava de maior esforço militar. |
Só pela guerra se poderia pôr fim à guerra. Caetano
proporcionou assim aos chefes militares os meios para romperem com a modesta
rotina salazarista, e tentarem esmagar a guerrilha. O ano de 1970 foi marcado
por iniciativas dramáticas: a invasão da Guiné-Conacry (Operação Mar Verde),
o grande assalto ao planalto dos Macondes em Moçambique (Operação Nó Górdio),
e um novo plano de operações no Leste em Angola. |
Os resultados iniciais não foram maus. Na Guiné, o
PAIGC acabou por abandonar todos os acampamentos permanentes no interior do
território. Em Moçambique, a FRELIMO teve de renunciar à ideia de formar um
exército convencional para enfrentar directamente os portugueses. Em Angola,
a área onde havia actividade dos partidos armados acabou por ficar reduzida a
1%, depois de haver atingido 42% em 1968. Pelo meio, iniciaram-se contactos
com alguns líderes independentistas, com vista à sua adesão a um projecto de
autonomia gradual do ultramar português e de promoção social dos negros. |
Houve então chefes militares que não se coibiram de
anunciar bombasticamente que a guerra estava perto do fim, com vitória
portuguesa à vista. Mas a guerra não acabou. Os comandos portugueses, depois
do caso de Conacry, evitaram levar a guerra até às últimas consequências, com
operações contra os santuários nos Estados vizinhos, e uma maior articulação
com os governos brancos da Rodésia e da República da África do Sul. Os
contactos estabelecidos com a guerrilha serviram sobretudo para perceber que
os partidos armados seriam maus parceiros para uma paz que não consistisse no
seu triunfo puro e simples. Em grande medida, estavam sob o patrocínio de
potências que não os deixariam parar a guerra. |
À medida que o tempo passou, as guerrilhas
recompuseram-se e até surgiram com novos meios, sobretudo armas anti-aéreas
que deixaram a aviação portuguesa menos à vontade. De resto, não era preciso
muito para a guerra continuar. Bastavam dois ou três homens para colocar uma
mina e disparar depois sobre a coluna militar atingida. |
Entretanto, ao nível das relações públicas, os
portugueses sofriam reveses. Os mais importantes dissabores deveram-se à
decisão da Igreja Católica em distanciar-se da causa portuguesa, para
garantir o seu próprio futuro no ultramar depois de uma previsível
independência. Assim, em 1970, o Papa resolveu receber em audiência os
líderes marxistas dos partidos armados, destruindo o argumento português de
que eram monstros impróprios para qualquer convívio humano. Em 1972, algum
clero empenhou-se na denúncia dos assassinatos de civis cometidos por tropas
portuguesas em Moçambique. |
Não foi tanto o arrastamento indefinido da guerra,
como a criação da expectativa de que ela poderia acabar através de um golpe
ousado – de natureza militar ou política – que desestabilizou fatalmente as
forças armadas portuguesas. Os generais que tinham anunciado o fim da guerra
sentiram-se comprometidos. Alguns deles, como Spínola na Guiné ou Kaúlza de
Arriaga em Moçambique, tinham ambições políticas e haviam encarado as suas
comissões no ultramar como trampolins para mais altas funções. |
Quando, em 1972, Marcello Caetano os desprezou como
candidatos à Presidência da República, não hesitaram em endossar-lhe a
responsabilidade pela persistência da subversão. Não tinham feito a paz, ou
não tinham ganho a guerra, porque o governo não lhes dera os recursos
materiais ou as autorizações políticas necessárias. A partir daí,
converteram-se em polos de conspiração no meio militar, tanto mais que
Marcello Caetano adoptou para com eles uma política de equívocos. |
Rui Ramos é historiador, professor universitário,
co-autor do podcast E o Resto é História [ver o perfil completo]. |
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