segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Recordar é reviver



E poder relacionar, ao reconstituir… Desta vez, pela pena conscienciosa de Paulo Rangel. Convém conhecer, enquanto esperamos que o céu nos caia em cima. Ou não caia, apesar dos ameaços.
OPINIÃO
Boris Johnson e a premente questão inglesa
A ameaça da democracia directa e do seu inevitável deslize para o populismo e para a demagogia é o maior desafio político e constitucional destes anos. Um desafio clássico, que a Grécia e Roma conheciam bem.
PAULO RANGEL
PÚBLICO, 2 de Setembro de 2019
1 – A suspensão do Parlamento britânico, promovida pelo primeiro-ministro Boris Johnson, é o símbolo perfeito das gravíssimas tensões que hoje atravessam as democracias ocidentais. Seria difícil encontrar um símbolo tão acabado, tão completo, tão perfeito da crise político-institucional que dilacera as nossas democracias.
Não porque a dita suspensão seja, em si mesma, inconstitucional ou abusiva (pode ser ou não), mas porque ela expõe, em todo o seu esplendor, a grande fractura que assola as democracias liberais: a contraposição entre a “democracia directa” e a “democracia representativa”. A circunstância de essa fractura emergir, ostensiva e ferozmente, no Reino Unido é deveras surpreendente. Por um lado, porque a Grã-Bretanha exibe o epíteto de “mais velha democracia do mundo”. Em rigor (e por isso mesmo este desenvolvimento político surpreende tanto), é apenas o mais antigo “regime liberal, moderado e plural” do mundo – não a mais velha democracia. Por outro lado, porque o seu Parlamento goza da justa fama de ser soberano e quase todo-poderoso – de ser “o soberano” –, a ponto de se dizer que é a “mãe de todos os Parlamentos”. Numa democracia liberal em que o Parlamento beneficia de um tal prestígio e estatuto é quase inexplicável que a ideia de “representação política” seja vilipendiada, posta em causa e tenha agora de competir com o apelo à “vontade popular”, à vontade “directa e imediata do povo”, uma vontade imanente e sem intermediação.
2. Para melhor compreender a questão política inglesa – que vem a ser, afinal, a questão política ocidental –, convém repescar, ainda que de forma esquemática e esquelética, alguns trilhos históricos que lhe moldaram a feição. Na Baixa Idade Média, nos séculos XIII e XIV, o Parlamento britânico – tal como os seus congéneres da Europa ocidental e central – impôs a sua força política aos monarcas que então ganhavam auctoritas. Em especial, nas matérias que diziam respeito à propriedade (fiscais), à vida e à liberdade (criminais) e às leis da sucessão (constitucionais). O exemplo paradigmático vem a ser a Magna Carta de 1215. Nessa altura, porém, o Parlamento era convocado e dissolvido pelo Rei e, por isso, tal como as nossas Cortes, funcionava com grande descontinuidade. De resto, é essa a origem do princípio da descontinuidade parlamentar, que explica ainda hoje períodos de férias e de pausas mais ou menos longas (recesso parlamentar) e explica ainda a razão de ser da “prerrogativa de suspensão” (prorogation).
Com a chegada da Idade Moderna e em linha com a Europa, os monarcas ingleses foram concentrando poder e procurando diminuir o papel do Parlamento. Se isso era adivinhável na dinastia Tudor (designadamente, com Henrique VIII e Isabel I), tornou-se indisfarçável na dinastia Stuart. Tiago I e o seu filho Carlos I, na primeira metade do séc. XVII, queriam transformar a Grã-Bretanha num Estado absoluto, à semelhança da França de Luís XIII (com Richelieu e Mazarino). Isso levou ao confronto aberto e total entre Rei e Parlamento, que culminou em guerra civil, na execução do Rei e na proclamação da República (com Oliver Cromwell) em 1649. Depois da restauração (1660), a instabilidade política e os riscos de absolutismo e de reversão da reforma protestante não desapareceram. Só com a chamada Glorious Revolution, que depôs Tiago II, o Parlamento pode cantar vitória.
Esta revolução é paradoxalmente uma revolução “reaccionária”, já que a “ordem medieval” é conservada e a “modernidade” do absolutismo é recusada. A partir de então, e ao longo de todo o século XVIII, o Reino Unido vai sedimentar-se como uma monarquia parlamentar e liberal, mas não como uma democracia. Não pode haver-se como “democracia” um regime em que o monarca preservava alguns poderes executivos e em que uma das câmaras parlamentares com plenos poderes era uma câmara aristocrática. Tratava-se de um regime moderado e plural, com pleno respeito pela rule of Law e pelos direitos individuais. O equilíbrio de poderes entre o Rei, a Câmara dos Lordes e a Câmara dos Comuns garantia essa moderação e a limitação do poder na melhor tradição aristotélica da constituição mista. Numa coisa, todavia, se distinguia da antiguidade: no princípio da representação política! Sem mais delongas, o século XVII inglês é tão importante para compreender a política actual como a Revolução Francesa.
3. A questão política inglesa é mesmo esta: num regime em que o Parlamento era havido como soberano, a introdução do referendo colide com a lógica representativa e parlamentar. E se, a título excepcional, isso pode ser aceite como um enxerto ou uma correcção ao pilar representativo e parlamentarista, a retórica dos Brexiteers, de Farage e agora de Johnson tem um potencial perverso e subversivo. Neste momento, Johnson confronta os britânicos com uma escolha simplista: de um lado, estão os que querem cumprir a vontade do povo e, do outro, estão os seus pretensos e falsos representantes, que a querem deturpar. Boris, arvora-se no demiurgo e porta-voz dessa vontade orgânica e imanente contra a elite parlamentar. Onde dantes estava o Rei contra o Parlamento, agora está o Povo e o seu porta-voz contra o Parlamento. A suspensão do Parlamento, feita nestas circunstâncias e com esta duração, evoca o fantasma dos anos terríveis do séc. XVII. Dantes era o absolutismo contra a ordem moderada medieval; agora é a democracia directa (e em directo) contra a democracia representativa e liberal.
Este transe e este conflito, todavia, não se confina à velha Albion nem é uma singularidade ou excepcionalidade britânica. Noutro tom e com outra gravidade, Salvini fala dos arranjos dos corredores do parlamento contra a vontade do povo. E o que vocifera Trump? E o que dispara Bolsonaro? A ameaça da democracia directa e do seu inevitável deslize para o populismo e para a demagogia é o maior desafio político e constitucional destes anos. Um desafio clássico, que a Grécia e Roma conheciam bem.
SIM. Tolentino de Mendonça. O Papa Francisco prossegue a renovação do colégio de cardeais. Esta escolha mostra que o critério não é só geográfico; é geracional e cultural baseado nos carismas pessoais.
NÃO. Sinistralidade rodoviária. A revisão em alta da mortalidade de 2018 mostra a falência das políticas do Governo na área segurança rodoviária. Como aqui não nos cansamos de denunciar.
COMENTÁRIOS
Gil Campelos: Ossada democrática
José Manuel Martins: excelente genealogia, sólida história, segurança didáctica, é como uma esfera armilar não fôssemos perder-nos no universo infinito. O rei, esse contrapeso e, por vezes, inimigo 'de cima' do Parlamento, sabemos, veio de muito antes da própria idade média, com que aqui começa esta fábula: mas - e o povo e seu referendo, contrapeso e ameaça 'de baixo' ao parlamento, vieram de onde? É Johnson que se torna populista? É a figura do referendo? Se calhar é o povo que é populista, não? Ou será que 'populista' é apenas o resultado do referendo, e nada mais do que o resultado do referendo, que precisamente é a vontade do povo que os representantes desse mesmo povo, pois... representam? De modo que não se percebe se, de todo, PR tem propriamente alguma coisa a dizer, ou... absolutamente nada.

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