E poder relacionar, ao reconstituir…
Desta vez, pela pena conscienciosa de Paulo
Rangel. Convém conhecer, enquanto esperamos que o céu nos
caia em cima. Ou não caia, apesar dos ameaços.
OPINIÃO
Boris
Johnson e a premente questão inglesa
A ameaça da democracia directa
e do seu inevitável deslize para o populismo e para a demagogia é o maior
desafio político e constitucional destes anos. Um desafio clássico, que a
Grécia e Roma conheciam bem.
PAULO RANGEL
PÚBLICO, 2 de Setembro de 2019
1 – A suspensão do Parlamento
britânico, promovida pelo primeiro-ministro Boris Johnson, é
o símbolo perfeito das gravíssimas tensões
que hoje atravessam as democracias ocidentais. Seria
difícil encontrar um símbolo tão acabado, tão completo, tão perfeito da crise
político-institucional que dilacera as nossas democracias.
Não porque a dita suspensão seja, em si mesma, inconstitucional ou
abusiva (pode ser ou não), mas porque ela expõe, em todo o seu esplendor, a
grande fractura que assola as democracias liberais: a contraposição entre a
“democracia directa” e a “democracia representativa”. A circunstância de essa
fractura emergir, ostensiva e ferozmente, no Reino Unido é deveras
surpreendente. Por um lado, porque a Grã-Bretanha exibe o epíteto de “mais
velha democracia do mundo”. Em rigor (e por isso mesmo este desenvolvimento
político surpreende tanto), é apenas o mais antigo “regime liberal, moderado e
plural” do mundo – não a mais velha democracia. Por outro lado, porque o
seu Parlamento goza da justa fama de ser soberano e quase todo-poderoso – de
ser “o soberano” –, a ponto de se dizer que é a “mãe de todos os Parlamentos”.
Numa democracia liberal em que o Parlamento beneficia de um tal prestígio e estatuto
é quase inexplicável que a ideia de “representação política” seja vilipendiada,
posta em causa e tenha agora de competir com o apelo à “vontade popular”, à
vontade “directa e imediata do povo”, uma vontade imanente e sem intermediação.
2. Para melhor compreender a
questão política inglesa – que vem a ser, afinal, a questão política ocidental
–, convém repescar, ainda que de forma esquemática e esquelética, alguns
trilhos históricos que lhe moldaram a feição. Na Baixa Idade Média, nos
séculos XIII e XIV, o Parlamento britânico – tal como os seus congéneres da
Europa ocidental e central – impôs a sua força política aos monarcas que então
ganhavam auctoritas. Em
especial, nas matérias que diziam respeito à propriedade (fiscais), à vida e à
liberdade (criminais) e às leis da sucessão (constitucionais). O exemplo
paradigmático vem a ser a Magna Carta de 1215. Nessa altura,
porém, o Parlamento era convocado e dissolvido pelo Rei e, por isso, tal como
as nossas Cortes, funcionava com grande descontinuidade. De resto, é essa a
origem do princípio da descontinuidade parlamentar, que explica ainda hoje
períodos de férias e de pausas mais ou menos longas (recesso parlamentar) e
explica ainda a razão de ser da “prerrogativa de suspensão” (prorogation).
Com a chegada da Idade Moderna e em linha com a Europa, os monarcas
ingleses foram concentrando poder e procurando diminuir o papel do Parlamento. Se
isso era adivinhável na dinastia Tudor (designadamente, com Henrique
VIII e Isabel I), tornou-se indisfarçável na dinastia Stuart. Tiago
I e o seu filho Carlos I, na primeira metade do séc. XVII, queriam transformar
a Grã-Bretanha num Estado absoluto, à semelhança da França de Luís XIII (com
Richelieu e Mazarino). Isso levou ao confronto aberto e total entre Rei
e Parlamento, que culminou em guerra civil, na execução do Rei e
na proclamação da República (com Oliver Cromwell) em 1649. Depois da
restauração (1660), a instabilidade política e os riscos de absolutismo e de
reversão da reforma protestante não desapareceram. Só com a chamada Glorious
Revolution,
que depôs Tiago II, o Parlamento pode cantar vitória.
Esta revolução é paradoxalmente uma revolução “reaccionária”, já que a
“ordem medieval” é conservada e a “modernidade” do absolutismo é recusada.
A partir de então, e ao longo de todo o século XVIII, o Reino Unido vai
sedimentar-se como uma monarquia parlamentar e liberal, mas não como uma
democracia. Não pode haver-se como “democracia” um regime em que o
monarca preservava alguns poderes executivos e em que uma das câmaras
parlamentares com plenos poderes era uma câmara aristocrática. Tratava-se
de um regime moderado e plural, com pleno respeito pela rule of Law e pelos direitos individuais. O
equilíbrio de poderes entre o Rei, a Câmara dos Lordes e a Câmara dos Comuns
garantia essa moderação e a limitação do poder na melhor tradição aristotélica
da constituição mista. Numa coisa, todavia, se distinguia da antiguidade: no
princípio da representação política! Sem mais delongas, o século XVII inglês
é tão importante para compreender a política actual como a Revolução Francesa.
3. A questão política inglesa é mesmo esta: num regime em que o
Parlamento era havido como soberano, a introdução do referendo colide com a
lógica representativa e parlamentar. E se, a título excepcional, isso pode
ser aceite como um enxerto ou uma correcção ao pilar representativo e parlamentarista,
a retórica dos Brexiteers,
de Farage e agora de Johnson tem um potencial perverso e subversivo.
Neste momento, Johnson confronta os britânicos com uma escolha simplista: de
um lado, estão os que querem cumprir a vontade do povo e, do outro, estão os
seus pretensos e falsos representantes, que a querem deturpar. Boris,
arvora-se no demiurgo e porta-voz dessa vontade orgânica e imanente contra a
elite parlamentar. Onde dantes estava o Rei contra o Parlamento, agora está o
Povo e o seu porta-voz contra o Parlamento. A suspensão do Parlamento,
feita nestas circunstâncias e com esta duração, evoca o fantasma dos anos
terríveis do séc. XVII. Dantes era o absolutismo contra a ordem moderada
medieval; agora é a democracia directa (e em directo) contra a democracia
representativa e liberal.
Este transe e este conflito, todavia, não se confina à velha Albion nem
é uma singularidade ou excepcionalidade britânica. Noutro tom e com outra
gravidade, Salvini fala dos arranjos
dos corredores do parlamento contra a vontade do povo. E o que vocifera Trump? E
o que dispara Bolsonaro?
A ameaça da democracia directa e do seu inevitável deslize
para o populismo e para a demagogia é o maior
desafio político e constitucional destes anos. Um desafio clássico, que a
Grécia e Roma conheciam bem.
SIM. Tolentino de
Mendonça. O Papa Francisco prossegue a renovação do colégio de
cardeais. Esta escolha mostra que o critério não é só geográfico; é geracional
e cultural baseado nos carismas pessoais.
NÃO. Sinistralidade rodoviária. A revisão em
alta da mortalidade de 2018 mostra a falência das políticas do
Governo na área segurança rodoviária. Como aqui não nos cansamos de denunciar.
COMENTÁRIOS
José Manuel Martins: excelente genealogia, sólida história, segurança
didáctica, é como uma esfera armilar não fôssemos perder-nos no universo
infinito. O rei, esse contrapeso e, por vezes, inimigo 'de cima' do Parlamento,
sabemos, veio de muito antes da própria idade média, com que aqui começa esta
fábula: mas - e o povo e seu referendo, contrapeso e ameaça 'de baixo' ao
parlamento, vieram de onde? É Johnson que se torna populista? É a figura do
referendo? Se calhar é o povo que é populista, não? Ou será que 'populista' é
apenas o resultado do referendo, e nada mais do que o resultado do referendo,
que precisamente é a vontade do povo que os representantes desse mesmo povo,
pois... representam? De modo que não se percebe se, de todo, PR tem propriamente
alguma coisa a dizer, ou... absolutamente nada.
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