Um “Ensaio” brilhante sobre um tema que dá pano
para mangas, que mereceu epopeias e lirismos de extraordinário impacto, e em que
Álvaro Domingues, se arma de
conhecimentos que vão dos clássicos britânicos e franceses – portugueses também,
naturalmente - a, modernamente, toda uma cultura trazida pela “navegação” em
rede universal de apoio electrónico imediato, esta Internet, que embrenha o
homem num desejo de aventura, dispendioso, é certo, mas acessível a muitas
bolsas num desejo de conhecimento e gozo impregnados de consequente lixo
poluidor, em que o Homem está a transformar o seu viver de movimentação e
selfies de exibicionismo a todos acessível hoje, como o primeiro texto de apoio, bem
exemplifica. Na sua Ode Marítima,
Álvaro de Campos, motivado pela movimentação ruidosa e bravia dos
paquetes ao longe, efectuada pelo dinamismo ruidoso de marinheiros robustos
proporcionador de desejos sádicos e voluptuosos no poeta que os observa na
distância do seu “cais deserto”,
sente-se o contraste entre as ânsias brutais provocadas por tal dinamismo dos
marinheiros ingleses e a apatia a que se resume o viver do poeta, confinado ao
seu mundo de burocracia e de criatividade literária num seu “cais” que, simbolicamente,
impregna de duplo sentido abstracto. Mas este Ensaio de Álvaro Domingues é uma análise
saborosa de um mundo actual em que tudo se confina a desejos desregrados e logo
satisfeitos, a que se mistura o lixo criado por tal satisfação de apetites
poluidores da Terra e conducentes – quem sabe? – a um rápido declínio. Um Ensaio de alerta, brilhante de humor.
ENSAIO
Navegar é preciso
Antes que os pensamentos azedem para os
aborrecimentos do costume, não esquecer que o cruzeiro é o sonho de milhões;
que hoje tudo é negócio; que não distinguimos a realidade da ficção porque
essas palavras foram a pique num naufrágio de sentido.
ÁLVARO DOMINGUES
PÚBLICO, 8 de Setembro de 2019
«Quando
nos aproximámos da terra, os nativos da ilha tinham cercado o navio. (…) As
canoas estavam repletas de mulheres que, pela beleza da face e do corpo, não
ficavam nada atrás da maioria das Europeias. Essas ninfas estavam quase todas
nuas (…) fazendo sinais de sedução que, apesar da sua inocência, demonstravam
alguma vergonha; ou porque em toda a parte a natureza adornou o sexo com uma
timidez ingénua; ou porque, mesmo nos lugares onde ainda reina a idade de ouro,
as mulheres parecem não querer aquilo que mais desejam. (…) No meio daquele
espectáculo, perguntava-me como seria possível manter nos seus postos quatrocentos
franceses, jovens, marinheiros que desde há seis meses não tinham visto sinal
de mulheres? »(1)
Com um relato
destes, pode-se imaginar o burburinho que haveria nos salões da
Europa do séc. XVIII acerca das grandes viagens marítimas e dos paraísos nos
mares do sul. Bougainville, responsável desta expedição de volta ao mundo ao
serviço do rei Louis XV e dos interesses coloniais de França, na demanda por um
vasto continente austral que se pensava existir no sul do Pacífico, desembarca
numa das ilhas do Tahiti e dá conta destes prodígios, qual Camões na Ilha dos
Amores em decassílabos.
Bougainville chamou-lhe a Nova Cítara, a ilha grega onde Afrodite, a
deusa do amor, emergiu do mar. Sem insectos e animais venenosos, estas ilhas
afortunadas exprimiam na perfeição o estado idílico do bom selvagem de
Rousseau, onde os humanos nasciam livres, onde não existia a desigualdade, o
trabalho, ou a propriedade, a moral era coisa vaga e a natureza, generosa.
Na
Inglaterra, as descrições dos cronistas que viajaram com James Cook
ao Hawaii (a primeira vez em 1778), acrescentariam o surf, as danças e o
acolhimento extraordinário que os nativos ofereceram aos estrangeiros; por
coincidência, decorriam então os festejos dedicados ao regresso dos mares da
divindade Lono. Depois, a
coisa correu tão mal que o próprio Cook foi aí violentamente assassinado
em 1779. Eram os trópicos e o seu imaginário apaixonante e excessivo. Contudo o
apelido Cook não saiu da história das viagens; pai e filho, Thomas e John M.
Cook foram pioneiros com os cruzeiros no Nilo e no Canal de Suez (1869), mas
também na Índia, no Japão, ou nos Estados Unidos. A Cook & Son inventou
o slogan do “negócio da
paz” para qualificar
o turismo em tempos de ocupação militar do Egipto pelos ingleses. Tinha
começado o turismo moderno. (2)
Ia-se
tornando irresistível o apelo das grandes viagens marítimas, a doçura e o
mistério dos exotismos tropicais, ruínas, cidades perdidas, os piratas e os
tesouros, as ilhas encantadas, extraordinários acontecimentos, tempestades
terríveis, mansas enseadas, corais, águas cálidas, aventuras… Depois veio o
Titanic e tudo naufragou, mas as grandes tragédias também alimentam grandes
mitologias e passadas as grandes guerras do séc. XX, o negócio dos cruzeiros
afina pela velocidade da luz e já deve ir nos 30 milhões de passageiros por ano
concentrados maioritariamente em três grandes grupos empresariais liderados
pela Carnival Corporation de Miami. Na verdade, durante a lei
seca (1919-33), os
cruzeiros americanos às Antilhas tinham já muito sucesso porque se podia
consumir álcool em águas internacionais.
Quem
pense que já sabe tudo sobre cruzeiros, que cruze mais informação. A última é a da importância do cruzeiro Instagram, Your Connectivity, Your Choice, como reza na propaganda da Royal Caribbean, e a
Internet no mar alto, um lugar como os outros, onde se podem tirar selfies com
famosos e depois desembarcar em destinos daqueles que dão fotos instagramáveis. Ou então não escolher destino nenhum porque o
destino é o próprio navio. Navegar é preciso. A imensidão azul está a chamar por si? Uma verdadeira
aventura no alto mar? Voyages en Cargo é para si: uma maneira única
de viajar e uma experiência única na vida a bordo de um navio de contentores. (3)
O
assunto não tem fim. Em terra, os sacos do lixo devidamente arrumados e
coloridos, e a clareza da sinalética para aflitos (alguém disse que era um acrónimo de WelCome; vai dar
ao mesmo, é simpático e alivia), pontuam o areal desértico dos dias comuns. O sonho
está para lá do muro grafitado onde começa o grande mar oceano, o porto seguro,
o navio cruzeiro e os tais contentores. Falar de turismo dá para falar de
qualquer assunto.
Antes
que os pensamentos azedem para os aborrecimentos do costume, não esquecer que o
cruzeiro é o sonho de milhões; que hoje tudo é negócio;
que não
distinguimos a realidade da ficção
porque essas palavras foram a pique num naufrágio de sentido; porque a qualquer
momento todos precisamos de uma qualquer ilusão de bem-estar e de
extraterritorialidade; porque no cruzeiro se arranjam amigos, likes e amantes;
porque já não é só o elitismo dos happy few; porque a
felicidade é uma coisa séria e porque há infinitas maneiras de a avaliar ou
experienciar, e há soluções para todos: o cruzeiro sustentável, o turismo
responsável, o de voluntariado, o cultural, os peregrinos e uma experiência de
cozinha indiana e música Bollywood num cruzeiro no lago de Lucerna e um sem fim
de outras coisas, da orgia à solidão.
1. Louis Antoine de
Bougainville (1771), Voyage autor
du monde par le frégate du roi La Boudeuse et la flûte L’Étoile,
p.68
2. Lynne Withey (1979), Grand Tours and Cook’s Tours: a history of leisure travel, 1750-1915, London:
William Morrow & Co
4. Jean-Didier Urbain (2017), Le voyage était presque parfait – essai sur
les voyages ratés, Paris: Payot & Rivages
COMENTÁRIOS
cisteina, 09.09.2019: Não só brilhante, também esclarecedor e pedagógico, sem
demagogia, populismos, reverências ou irreverências partidárias. Como habitual,
também não deixo de ler, há sempre algo a aprender.
João Casquilho, 08.09.2019: Brilhante, como habitual
TEXTOS DE APOIO (< INTERNET)
1
- "Navegar é preciso, viver não é preciso" [?]
No
século I a.c., o general romano Pompeu, encorajava marinheiros receosos, inaugurando a frase Navigare
necesse, vivere non est necesse.
Corria
o século XIV e o poeta italiano Petrarca transformava a expressão para “Navegar
é preciso, viver não é preciso.”
“Quero
para mim o espírito dessa frase”, escreveu
depois Fernando Pessoa,
confinando o seu sentido de vida à criação.
E
cantando a coragem navegante, em jeito de fado brasileiro, Caetano
Veloso escreveu Os Argonautas. “Navegar é preciso, viver …” Com um fim inacabado, a
música lança as interrogações.
Navegar é preciso? Sim!
Navegar é uma viagem exacta. Fazia-se com bússolas e astrolábios. Hoje, faz-se
com satélites, GPS’ e www’s.
Viver não é preciso? Não! É uma viagem feita de opções, medos, forças,
inseguranças, persistências, constâncias e transições …
Mais
de 2000 mil anos depois, interrogamo-nos: Viver
não é preciso?
Não, quando navegar é sonhar, ousar, planear, arriscar, empreender,
realizar…
Porque aí, navegar é viver!
Porque aí, navegar é viver!
Bem-vindo navegador! A Universidade de
Coimbra será sua companheira de navegação. Neste momento de embarque
apresentamos-lhe uma página que o vai guiar numa viagem segura e aliciante.
Parta à descoberta de uma experiência académica sem igual... Porque viver é
acima de tudo im[preciso].
2
- ODE MARÍTIMA (excerto)
Álvaro de Campos
ODE MARÍTIMA
Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão,
Olho pró lado da barra, olho pró Indefinido,
Olho e contenta-me ver,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira.
Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu
fumo.
Vem entrando, e a manhã entra com ele, e no rio,
Aqui, acolá, acorda a vida marítima,
Erguem-se velas, avançam rebocadores,
Surgem barcos pequenos detrás dos navios que estão no
porto.
Há uma vaga brisa.
Mas a minh'alma está com o que vejo menos.
Com o paquete que entra,
Porque ele está com a Distância, com a Manhã,
Com o sentido marítimo desta Hora,
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea,
Como um começar a enjoar, mas no espírito.
Olho de longe o paquete, com uma grande independência
de alma,
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente.
Os paquetes que entram de manhã na barra
Trazem aos meus olhos consigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte.
Trazem memórias de cais afastados e doutros momentos
Doutro modo da mesma humanidade noutros pontos.
Todo o atracar, todo o largar de navio,
É — sinto-o em mim como o meu sangue —
Inconscientemente simbólico, terrivelmente
Ameaçador de significações metafísicas
Que perturbam em mim quem eu fui...
Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga do cais
E se repara de repente que se abriu um espaço
Entre o cais e o navio,
Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,
Uma névoa de sentimentos de tristeza
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
Como a primeira janela onde a madrugada bate,
E me
envolve com uma recordação duma outra pessoa
Que fosse misteriosamente minha.
Ah, quem sabe, quem sabe,
Se não parti outrora, antes de mim,
Dum cais; se não deixei, navio ao sol
Oblíquo da madrugada,
Uma outra espécie de porto?
Quem sabe se não deixei, antes de a hora
Do mundo exterior como eu o vejo
Raiar-se para mim,
Um grande cais cheio de pouca gente,
Duma grande cidade meio-desperta,
Duma enorme cidade comercial, crescida, apopléctica,
Tanto quanto isso pode ser fora do Espaço e do Tempo?
Sim, dum cais, dum cais dalgum modo material,
Real, visível como cais, cais realmente,
O Cais Absoluto por cujo modelo inconscientemente
imitado,
Insensivelmente evocado,
Nós os homens construímos
Os nossos cais nos nossos portos,
Os nossos cais de pedra actual sobre água verdadeira,
Que depois de construídos se anunciam de repente
Coisas-Reais, Espíritos-Coisas, Entidades em
Pedra-Almas,
A certos momentos nossos de sentimento-raiz
Quando no mundo-exterior como que se abre uma porta
E, sem que nada se altere,
Tudo se revela diverso. ……….
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