segunda-feira, 23 de setembro de 2019

“Sozinho no cais deserto”


Um “Ensaio” brilhante sobre um tema que dá pano para mangas, que mereceu epopeias e lirismos de extraordinário impacto, e em que Álvaro Domingues, se arma de conhecimentos que vão dos clássicos britânicos e franceses – portugueses também, naturalmente - a, modernamente, toda uma cultura trazida pela “navegação” em rede universal de apoio electrónico imediato, esta Internet, que embrenha o homem num desejo de aventura, dispendioso, é certo, mas acessível a muitas bolsas num desejo de conhecimento e gozo impregnados de consequente lixo poluidor, em que o Homem está a transformar o seu viver de movimentação e selfies de exibicionismo a todos acessível hoje, como o primeiro texto de apoio, bem exemplifica. Na sua Ode Marítima, Álvaro de Campos, motivado pela movimentação ruidosa e bravia dos paquetes ao longe, efectuada pelo dinamismo ruidoso de marinheiros robustos proporcionador de desejos sádicos e voluptuosos no poeta que os observa na distância do seu “cais deserto”, sente-se o contraste entre as ânsias brutais provocadas por tal dinamismo dos marinheiros ingleses e a apatia a que se resume o viver do poeta, confinado ao seu mundo de burocracia e de criatividade literária num seu “cais” que, simbolicamente, impregna de duplo sentido abstracto. Mas este Ensaio de Álvaro Domingues é uma análise saborosa de um mundo actual em que tudo se confina a desejos desregrados e logo satisfeitos, a que se mistura o lixo criado por tal satisfação de apetites poluidores da Terra e conducentes – quem sabe? – a um rápido declínio. Um Ensaio de alerta, brilhante de humor.
ENSAIO
Navegar é preciso
Antes que os pensamentos azedem para os aborrecimentos do costume, não esquecer que o cruzeiro é o sonho de milhões; que hoje tudo é negócio; que não distinguimos a realidade da ficção porque essas palavras foram a pique num naufrágio de sentido.
ÁLVARO DOMINGUES
PÚBLICO, 8 de Setembro de 2019
«Quando nos aproximámos da terra, os nativos da ilha tinham cercado o navio. (…) As canoas estavam repletas de mulheres que, pela beleza da face e do corpo, não ficavam nada atrás da maioria das Europeias. Essas ninfas estavam quase todas nuas (…) fazendo sinais de sedução que, apesar da sua inocência, demonstravam alguma vergonha; ou porque em toda a parte a natureza adornou o sexo com uma timidez ingénua; ou porque, mesmo nos lugares onde ainda reina a idade de ouro, as mulheres parecem não querer aquilo que mais desejam. (…) No meio daquele espectáculo, perguntava-me como seria possível manter nos seus postos quatrocentos franceses, jovens, marinheiros que desde há seis meses não tinham visto sinal de mulheres? »(1)
Com um relato destes, pode-se imaginar o burburinho que haveria nos salões da Europa do séc. XVIII acerca das grandes viagens marítimas e dos paraísos nos mares do sul. Bougainville, responsável desta expedição de volta ao mundo ao serviço do rei Louis XV e dos interesses coloniais de França, na demanda por um vasto continente austral que se pensava existir no sul do Pacífico, desembarca numa das ilhas do Tahiti e dá conta destes prodígios, qual Camões na Ilha dos Amores em decassílabos. Bougainville chamou-lhe a Nova Cítara, a ilha grega onde Afrodite, a deusa do amor, emergiu do mar. Sem insectos e animais venenosos, estas ilhas afortunadas exprimiam na perfeição o estado idílico do bom selvagem de Rousseau, onde os humanos nasciam livres, onde não existia a desigualdade, o trabalho, ou a propriedade, a moral era coisa vaga e a natureza, generosa.
Na Inglaterra, as descrições dos cronistas que viajaram com James Cook ao Hawaii (a primeira vez em 1778), acrescentariam o surf, as danças e o acolhimento extraordinário que os nativos ofereceram aos estrangeiros; por coincidência, decorriam então os festejos dedicados ao regresso dos mares da divindade Lono. Depois, a coisa correu tão mal que o próprio Cook foi aí violentamente assassinado em 1779. Eram os trópicos e o seu imaginário apaixonante e excessivo. Contudo o apelido Cook não saiu da história das viagens; pai e filho, Thomas e John M. Cook foram pioneiros com os cruzeiros no Nilo e no Canal de Suez (1869), mas também na Índia, no Japão, ou nos Estados Unidos. A Cook & Son inventou o slogan do “negócio da paz” para qualificar o turismo em tempos de ocupação militar do Egipto pelos ingleses. Tinha começado o turismo moderno. (2)
Ia-se tornando irresistível o apelo das grandes viagens marítimas, a doçura e o mistério dos exotismos tropicais, ruínas, cidades perdidas, os piratas e os tesouros, as ilhas encantadas, extraordinários acontecimentos, tempestades terríveis, mansas enseadas, corais, águas cálidas, aventuras… Depois veio o Titanic e tudo naufragou, mas as grandes tragédias também alimentam grandes mitologias e passadas as grandes guerras do séc. XX, o negócio dos cruzeiros afina pela velocidade da luz e já deve ir nos 30 milhões de passageiros por ano concentrados maioritariamente em três grandes grupos empresariais liderados pela Carnival Corporation de Miami. Na verdade, durante a lei seca (1919-33), os cruzeiros americanos às Antilhas tinham já muito sucesso porque se podia consumir álcool em águas internacionais.
Quem pense que já sabe tudo sobre cruzeiros, que cruze mais informação. A última é a da importância do cruzeiro Instagram, Your Connectivity, Your Choice, como reza na propaganda da Royal Caribbean, e a Internet no mar alto, um lugar como os outros, onde se podem tirar selfies com famosos e depois desembarcar em destinos daqueles que dão fotos instagramáveis. Ou então não escolher destino nenhum porque o destino é o próprio navio. Navegar é preciso. A imensidão azul está a chamar por si? Uma verdadeira aventura no alto mar? Voyages en Cargo é para si: uma maneira única de viajar e uma experiência única na vida a bordo de um navio de contentores. (3)
O assunto não tem fim. Em terra, os sacos do lixo devidamente arrumados e coloridos, e a clareza da sinalética para aflitos (alguém disse que era um acrónimo de WelCome; vai dar ao mesmo, é simpático e alivia), pontuam o areal desértico dos dias comuns. O sonho está para lá do muro grafitado onde começa o grande mar oceano, o porto seguro, o navio cruzeiro e os tais contentores. Falar de turismo dá para falar de qualquer assunto.
Antes que os pensamentos azedem para os aborrecimentos do costume, não esquecer que o cruzeiro é o sonho de milhões; que hoje tudo é negócio; que não distinguimos a realidade da ficção porque essas palavras foram a pique num naufrágio de sentido; porque a qualquer momento todos precisamos de uma qualquer ilusão de bem-estar e de extraterritorialidade; porque no cruzeiro se arranjam amigos, likes e amantes; porque já não é só o elitismo dos happy few; porque a felicidade é uma coisa séria e porque há infinitas maneiras de a avaliar ou experienciar, e há soluções para todos: o cruzeiro sustentável, o turismo responsável, o de voluntariado, o cultural, os peregrinos e uma experiência de cozinha indiana e música Bollywood num cruzeiro no lago de Lucerna e um sem fim de outras coisas, da orgia à solidão.
2. Lynne Withey (1979), Grand Tours and Cook’s Tours: a history of leisure travel, 1750-1915, London: William Morrow & Co
4. Jean-Didier Urbain (2017), Le voyage était presque parfait – essai sur les voyages ratés, Paris: Payot & Rivages
COMENTÁRIOS
cisteina, 09.09.2019: Não só brilhante, também esclarecedor e pedagógico, sem demagogia, populismos, reverências ou irreverências partidárias. Como habitual, também não deixo de ler, há sempre algo a aprender.
João Casquilho, 08.09.2019: Brilhante, como habitual

TEXTOS DE APOIO (< INTERNET)

1 - "Navegar é preciso, viver não é preciso" [?]
No século I a.c., o general romano Pompeu, encorajava marinheiros receosos, inaugurando a frase Navigare necesse, vivere non est necesse.
Corria o século XIV e o poeta italiano Petrarca transformava a expressão paraNavegar é preciso, viver não é preciso.”
Quero para mim o espírito dessa frase”, escreveu depois Fernando Pessoa, confinando o seu sentido de vida à criação.
E cantando a coragem navegante, em jeito de fado brasileiro, Caetano Veloso escreveu Os Argonautas. “Navegar é preciso, viver …” Com um fim inacabado, a música lança as interrogações.
Navegar é preciso? Sim! Navegar é uma viagem exacta. Fazia-se com bússolas e astrolábios. Hoje, faz-se com satélites, GPS’ e www’s.
Viver não é preciso? Não! É uma viagem feita de opções, medos, forças, inseguranças, persistências, constâncias e transições …
Mais de 2000 mil anos depois, interrogamo-nos: Viver não é preciso?
Não, quando navegar é sonhar, ousar, planear, arriscar, empreender, realizar…
Porque aí, navegar é viver!
Bem-vindo navegador! A Universidade de Coimbra será sua companheira de navegação. Neste momento de embarque apresentamos-lhe uma página que o vai guiar numa viagem segura e aliciante. Parta à descoberta de uma experiência académica sem igual... Porque viver é acima de tudo im[preciso].

2 - ODE MARÍTIMA (excerto)
Álvaro de Campos
ODE MARÍTIMA
Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão,
Olho pró lado da barra, olho pró Indefinido,
Olho e contenta-me ver,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira.
Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo.
Vem entrando, e a manhã entra com ele, e no rio,
Aqui, acolá, acorda a vida marítima,
Erguem-se velas, avançam rebocadores,
Surgem barcos pequenos detrás dos navios que estão no porto.
Há uma vaga brisa.
Mas a minh'alma está com o que vejo menos.
Com o paquete que entra,
Porque ele está com a Distância, com a Manhã,
Com o sentido marítimo desta Hora,
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea,
Como um começar a enjoar, mas no espírito.
Olho de longe o paquete, com uma grande independência de alma,
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente.
Os paquetes que entram de manhã na barra
Trazem aos meus olhos consigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte.
Trazem memórias de cais afastados e doutros momentos
Doutro modo da mesma humanidade noutros pontos.
Todo o atracar, todo o largar de navio,
É — sinto-o em mim como o meu sangue —
Inconscientemente simbólico, terrivelmente
Ameaçador de significações metafísicas
Que perturbam em mim quem eu fui...
Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga do cais
E se repara de repente que se abriu um espaço
Entre o cais e o navio,
Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,
Uma névoa de sentimentos de tristeza
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
Como a primeira janela onde a madrugada bate,
E me envolve com uma recordação duma outra pessoa
Que fosse misteriosamente minha.
Ah, quem sabe, quem sabe,
Se não parti outrora, antes de mim,
Dum cais; se não deixei, navio ao sol
Oblíquo da madrugada,
Uma outra espécie de porto?
Quem sabe se não deixei, antes de a hora
Do mundo exterior como eu o vejo
Raiar-se para mim,
Um grande cais cheio de pouca gente,
Duma grande cidade meio-desperta,
Duma enorme cidade comercial, crescida, apopléctica,
Tanto quanto isso pode ser fora do Espaço e do Tempo?
Sim, dum cais, dum cais dalgum modo material,
Real, visível como cais, cais realmente,
O Cais Absoluto por cujo modelo inconscientemente imitado,
Insensivelmente evocado,
Nós os homens construímos
Os nossos cais nos nossos portos,
Os nossos cais de pedra actual sobre água verdadeira,
Que depois de construídos se anunciam de repente
Coisas-Reais, Espíritos-Coisas, Entidades em Pedra-Almas,
A certos momentos nossos de sentimento-raiz
Quando no mundo-exterior como que se abre uma porta
E, sem que nada se altere,
Tudo se revela diverso. ……….


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