domingo, 8 de setembro de 2019

Já no tempo da Morgadinha…



A campanha – a nível local – fazia-se na taberna do Canada, e a votação, na igreja, onde qualquer Tapadas fiel, com votos virgens no bolso, podia repentinamente fazer desviar o pendor da votação, que a morte de um “velho ervanário”, leal a um Conselheiro ambicioso, vem a tempo de fazer passar do “Brasileiro” para o “Conselheiro”, pai de Morgadinha, por arrependimento do indeciso morgado das Perdizes e o seu grupo dos Pinchões… Águas passadas e bastante romanescas. Hoje fia mais fino, os grupos dos Pinchões transformados em partidos, que também pincham, cada um à sua maneira, mas, afinal, tudo muito igual… José Pacheco Pereira é que sabe descrever. E “moralizar”, sem romance, mas com perfídia, frisando uma abstenção de pouco desportivismo e nada cívica…
OPINIÃO: As campanhas eleitorais são um contributo para a abstenção
Deviam todos parar para pensar, mas nos dias de hoje parar para pensar é tão contraditório com o estilo de vida centrado nos devices, nos telemóveis e nas redes sociais, que é um acto quase de per si revolucionário.
     PÚBLICO, 7 de Setembro de 2019
Toda a gente diz há muito tempo que o actual modelo de campanha eleitoral está ultrapassado. Não vale a pena sequer lembrá-lo, porque ninguém está disposto a mudar a rotina desgastada das campanhas e, ano após ano, fazem sempre o mesmo. Umas vezes são mais caras, outras menos caras. Mas não só não há qualquer rasgo de inovação, como há uma geral indiferença face àquilo que todos sabem: a inutilidade e o carácter contraproducente das campanhas, que contribuem para a abstenção. Os políticos não querem e não sabem ser diferentes, mas também não têm muita margem de manobra para o serem, ou porque não sabem nem querem — o populismo é o que está a dar — ou porque os militantes dos partidos estão viciados na rotina e ficam em abstinência se não lhes derem o festival de camisola. E a comunicação social penaliza a mudança.
Vejamos alguns destes factores. Os militantes partidários das estruturas fazem parte da pressão para se fazer sempre o mesmo. Querem o líder para passear na sua terra, levá-lo a cumprimentar o senhor Francisco, comerciante, que é muito “amigo” do partido, ou seja, ajuda a financiar as campanhas locais. E trazer o líder a encontrar os seus conhecidos locais é um factor de influência e importância, mesmo que tudo se passe numa redoma que nunca muda há dezenas de anos, a não ser quando o senhor Francisco morrer ou se zangar com o partido.
E há nos partidos quem goste muito de campanhas eleitorais. As campanhas hoje são essencialmente feitas em outdoors, em páginas do Facebook mais ou menos profissionalizadas e em pseudo-eventos de rua, e há muito dinheiro a ganhar aí. Militantes das “jotas” são pagos para acompanhar o líder em caravanas de terra em terra. Empresas e pseudo-empresas “amigas” ligadas aos partidos, ou, melhor, aos funcionários e militantes do partido, oferecem serviços de marketing, de importação de “brindes”, de organização de eventos, numa rede que se ilumina nas campanhas eleitorais.
A comunicação social, cuja cobertura é tão estereotipada como as campanhas, precisa dos eventos artificiais como as “arruadas” e os pseudocomícios para ter alimento de imagens, sons e incidentes anedóticos para encher os telejornais e os jornais e, se não lhos derem, desata a protestar pela “pobreza” da campanha, ou pelos “erros de comunicação”, ou a referir as ausências que devem ser punidas. Tudo isto se passa num ambiente de desertificação de ideias e propostas, e tudo o que é mais sério ou não é coberto ou é tido como sem interesse mediático.
E por aí adiante. Deviam todos parar para pensar, mas nos dias de hoje parar para pensar é tão contraditório com o estilo de vida centrado nos devices, nos telemóveis e nas redes sociais, que é um acto quase de per si revolucionário. E nós não temos uma abundância de revolucionários. E pensar exige tempo lento, silêncio, solidão e espaço e é tão hostil à ecologia da pressa, do barulho, das 24 horas em directo.
Uma das coisas que se podiam ir fazendo era restringir os temas de campanha e, sobre os temas, que sobrassem do pandemónio de querer falar de tudo, fazer propostas a sério, com princípio, meio e fim, com ideologia e política, e saber. Não são propostas tecnocráticas, são propostas políticas. E centrar tudo aí.
Eu admiraria um candidato que dissesse: “Eu vou gerir nos próximos quatro anos tudo o que tiver que gerir, sem rasgos especiais, nem inovações, nem experiências, nem “reformas”, o melhor possível, mas há duas ou três coisas em que vou mudar, e muito. Por exemplo, vou concentrar os recursos e meios do Estado para melhorar as condições de habitação dos portugueses, e julguem-me por isso. Vou mudar toda a rede ferroviária, modernizá-la, e colocá-la ao serviço dos utentes dos transportes e das empresas. E julguem-me por isso. Vou baixar o nível da pobreza de forma significativa e reconstruir o elevador social. E julguem-me por isso. Direi com clareza como o conto fazer e com quem o conto fazer, e as decisões que devem ser tomadas, quem fica a ganhar e quem fica a perder. Defrontarei os interesses e os privilégios que impedem a mudança. E é isso que vou discutir na campanha eleitoral. Não esperem de mim qualquer omnisciência de ter que responder a tudo, até porque há matérias que não domino, mas sei escolher quem as conhece e sei ouvir o que me dizem.
Não vou fazer 50 coisas, vou fazer três, mas três estruturantes. Em todos estes casos vou concentrar recursos, meios e conhecimento especializado. No fim do mandato, as mudanças têm que ser significativas e inequívocas, serão de natureza quantitativa e qualitativa e, se for um problema que possa ser resolvido por umas décadas, ficará resolvido. Julguem-me por isso. E irei candidatar-me de novo a um outro mandato da mesma forma, com mais três programas estruturantes, seja o interior, seja a modernização da administração pública, seja o combate à corrupção, seja a reforma das Forças Armadas.”
A campanha seria, assim, séria e sóbria, mas colocaria a comunicação social a subir pelas paredes acima, com o aborrecimento da campanha. A prazo, provavelmente teria uma fase de “estranha-se”, antes de ter uma fase de “entranha-se”. Por isso, precisa de tempo, e provavelmente não será “ganhadora”, a curto prazo, mas com perseverança, seria pedagógica e refrescante. Em vez da “novidade” superficial e do ruído, das modernices da moda, dos truques e das frases assassinas preparadas pelas agências de comunicação, faria um esforço para ser útil. Admito que me digam que tal é hoje completamente impossível na ecologia mediática dos nossos dias. Talvez. Mas eu não acho que essa ecologia seja um progresso da democracia, bem pelo contrário.
Colunista
COMENTÁRIOS
Luísa Alice Santos Pereira Um artigo incómodo. Mas as pedradas no charco têm muito valor!
José Manuel Martins: e neste paraíso administrativo pragmatista, que é feito da política? Será de esquerda cuidar 'do paz, o pão, saúde educação'?, e de direita reestruturar as forças armadas ou fazer política do carril? JPP, génio da realidade por items, como quem tira cartas num truque de baralho, atinge aqui o zénite da inutilidade comentarial total.
Jonas Almeida: Concordo que é altura de parar para pensar como sugere, mas talvez pensar também no que significa o "estilo de vida centrado nos devices, nos telemóveis e nas redes sociais". É uma nova praça pública onde também se pensa. O facto de ser um pensamento mais participado identifica talvez um pensamento mais democrático, menos elitista. Valerá talvez a pena parar para pensar nos méritos, não apenas nos deméritos do novo modelo. Até porque está aqui para ficar, não parece ser "uma fase".
Nuno Silva: A "Inovação", são os financiamentos ilegais da extrema-direita, nas redes sociais (atenção aos facholas do Chega, Iniciativa Liberal, PNR, entre outros). Apesar dos financiamentos ilegais em geral de partidos não serem propriamente uma inovação...
Helena Duarte: Seria realmente bom e diferente. E se calhar ia-se votar com vontade de mudar alguma coisa.
Jonas Almeida: Eu desconfio que as pessoas se portam tão impensadamente no social online porque (ainda) não têm forma de votar nesse mesmo sítio. É uma hipótese, talvez meritória de alguma ponderação.
Victor Nogueira: JPP alinhava umas linhas com ar de novidade, parte da plateia aplaude, mas tudo espremido, que resta? Quais as verdadeiras causas para que as coisas sejam assim? São as campanhas a causa maior do aumento da abstenção? Há outras causas mais profundas? E como combater ou contrariar a abstenção? Acabar com as campanhas? Como mudá-las? Fomentar a participação cívica alargada a todos os dias para que a participação na gestão da “respublica” ou da “polis” seja quotidiana, abrangendo o bairro, o condomínio, o local de trabalho, a sociedade recreativa, o sindicato, o partido político ….? Mas isso interessa verdadeiramente à generalidade dos articulistas e fazedores de opinião? E se não interessa, quais as razões que justificam o “desinteresse”? Que fazer? «Tantas histórias. Quantas perguntas»
Maria Carlos Oliveira: Subscrevo na íntegra. Pensar é hoje um exercício em "extinção" e parece haver muita gente interessada ou incapaz de o fazer.
Anjo Caído: Há muito tempo que não lia algo tão interessante e certeiro sobre política.
P Galvao: Uma vez mais fica provado que a clarividência, e a honestidade intelectual não necessitam de parangonas inflamadas, nem de prosa maldizente para fazerem o seu caminho até aos leitores. Também não é menos verdade que quem faz uso dessas muletas - e são muitos neste jornal - ostentam pouca clarividência e são tudo menos observadores imparciais dos fenómenos societários.
J I T: Título certeiro e magnífico, artigo excelente! Um pequeno erro gramatical - algum corrector tipográfico, humano ou digital: Uma das coisas que se podia ir fazendo, não é podiam, porque as coisas não se fazem a si mesmas
DNG, 07.09.2019 : Absolutamente de acordo. Absolutamente.


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