quarta-feira, 11 de setembro de 2019

O saber não ocupa lugar


Para acompanharmos tant bien que mal a evolução dos futuros “desafios” políticos da União Europeia. Ainda bem que existe uma Teresa de Sousa responsável pela nossa ilustração, favorecendo-nos com os seus esclarecimentos, neste caso a respeito da nova etapa dos pelouros em que se movem os próximos construtores dessa União. Um nome, pelo menos, fixaremos: o de Elisa Ferreira, responsável «pelos fundos de coesão, reformas estruturais e pela implementação do futuro instrumento orçamental para a zona euro», à qual, para já, se tecem loas e se deseja êxito.



Continuidade ou mudança?
Portugal é um claro vencedor da nova distribuição dos pelouros, colhendo os frutos da credibilidade que o Governo conquistou em Bruxelas e da qualidade inquestionável da sua comissária.
PÚBLICO, 11 de Setembro de 2019
1. A Comissão Von der Leyen não é, longe disso, o decalque da Comissão Juncker, que chega ao fim do seu mandato a 31 de Outubro. Há uma nova distribuição de pelouros e uma escolha diferente das grandes áreas que devem ser a força motriz da acção do novo colégio de comissários. Há pelouros que deixam de ser autónomos, diluindo-se por diferentes comissários — é o caso da Inovação e Ciência, da responsabilidade de Carlos Moedas, sem que se perceba bem porquê. E há, naturalmente, a preocupação de não ferir susceptibilidades nacionais e de levar em conta os tradicionais equilíbrios entre Norte e Sul, Leste e Oeste, “grandes” e “pequenos” e as diferentes famílias políticas. Com 26 países (menos o Reino Unido) para contentar na distribuição dos pelouros, o puzzle construído pela antiga ministra da Defesa de Angela Merkel nem sempre é de compreensão imediata. A prática demonstrará se esta nova Comissão, que agora vai ter de passar o teste do Parlamento Europeu, terá condições para criar algum dinamismo numa Europa ainda a curar as feridas profundas da crise. Apenas uma coisa é certa: muito dependerá da forma como o seu presidente — pela primeira vez, a sua presidente — vier a exercer o cargo, numa altura em que o poder de liderança politica da União está cada vez mais concentrado no Conselho Europeu, nem sempre pelas melhores razões.
2. Para além do alto-representante para a Politica Externa e de Segurança da União, o espanhol Josep Borrel, duas das vice-presidências, justamente as mais importantes, estavam já pré-determinadas pelo entendimento que levou à escolha de Von der Leyen, num Conselho Europeu particularmente agitado em finais do mês de Junho. O holandês Frans Timmermans e a dinamarquesa Margrethe Vestager, um socialista e uma liberal, ficariam sempre com as duas principais vice-presidências. Haverá, portanto, no topo da Comissão uma espécie de “grande coligação” dos três principais grupos políticos — uma medida avisada para facilitar consensos num Parlamento Europeu bem mais fragmentado do que o anterior. A grande novidade, que quebra as regras não escritas de Bruxelas, está em que Vestager, a prestigiadíssima comissária da Concorrência da Comissão Juncker, mantém a mesma pasta. “A atormentadora-chefe de Silicon Valley está de regresso”, escrevia ontem o site Politico.eu, lembrando uma das facetas mais importantes do exercício das suas funções: as multas pesadas que aplicou às gigantes tecnológicas americanas por desvirtuarem as regras de concorrência ou abusarem da sua posição monopolista nos mercados. A sua escolha pode também “atormentar” algumas capitais europeias, em especial Paris e Berlim, que tiveram de engolir o seu veto à fusão da Alstom e da Siemens para criar um “gigante europeu” da construção de comboios. As duas capitais argumentaram que a Europa precisa dos seus próprios “campeões” para enfrentar os gigantes americanos e chineses. A comissária não se mostrou sensível, lembrando que a inovação e a competitividade vêm mais depressa das pequenas e médias empresas inovadoras do que dos “campeões europeus”. Será, sem sombra de dúvida, uma das estrelas da próxima Comissão.
3. Duas perplexidades. A primeira: para que servem as restantes cinco vice-presidências que Von der Leyen distribuíu aos países da Europa de Leste mas cujos pelouros não são particularmente relevantes. A única resposta possível é que constituem um incentivo adicional ao bom comportamento de alguns destes países, depois de um período de relações conflituosas com Bruxelas por manifesto incumprimento das regras do Estado de direito, que a nova Comissão não pode pura e simplesmente ignorar. A mesma razão pode justificar a decisão de entregar à comissária checa, Vera Jourová, precisamente o novo pelouro da Democracia. A segunda perplexidade: para quê um pelouro com o nome no mínimo controverso de European Way of Life? Foi entregue à Grécia. Inclui a política de imigração, um dos dossiers mais difíceis que a Europa tem em mãos e aquele que mais tem servido de bandeira aos populismos e nacionalismos um pouco por toda a parte. Seria um erro deixar que prevalecesse qualquer ideia excludente de “superioridade” do modo de vida europeu.
4. Há outras escolhas que revelam uma aposta política forte da nova presidente. O comissário irlandês ficará com outra das pastas que são da competência exclusiva da União: o Comércio Internacional. A ironia está em que será ele a negociar um futuro acordo de comércio livre com o Reino Unido, se e quando vier a sair da União Europeia. Talvez tenha sido uma forma de dizer a Londres que os seus 27 parceiros não deixarão cair a Irlanda a troco de um acordo de saída que não respeite a questão fundamental da fronteira irlandesa. Com o antigo primeiro-ministro italiano Paolo Gentiloni responsável pela pasta da Economia, incluindo o “policiamento” do Pacto de Estabilidade e Crescimento, fica também a ideia de que chegou o tempo de fazer uso de uma maior flexibilidade na interpretação das suas regras para contrariar uma eventual recessão.
5. Finalmente, Portugal é outro dos claros ganhadores da nova distribuição dos pelouros, colhendo os frutos da credibilidade que o Governo conquistou em Bruxelas e da qualidade inquestionável da sua comissária. Elisa Ferreira fica com muito mais do que os fundos estruturais. Von der Leyen acrescentou ao seu pelouro a responsabilidade pela gestão do novo orçamento próprio da zona euro, que foi uma das principais apostas do Governo português para a reforma da união monetária, e ainda a gestão de um novo instrumento financeiro, o chamado Fundo Justo de Transição, cujo objectivo é ajudar as regiões mais desguarnecidas à transição verde e digital.
Portugal já teve um comissário que figurou entre os dois ou três mais competentes e mais influentes da Comissão — António Vitorino. Um português liderou a Comissão durante dois mandatos, com demasiadas críticas ao seu desempenho para ter beneficiado a imagem do país. Desta vez, o objectivo de António Costa era juntar prestígio europeu e interesse nacional. A pasta cumpre o seu objectivo. Com uma vantagem: a influência dos comissários mede-se bastante mais pelo seu valor pessoal do que pelo pelouro atribuído. Elisa Ferreira tem quase tudo a seu favor.


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