Não, não é uma mulher que escreve,
embora o livro se apresente como uma autobiografia, cuja narradora
protagonista, Aaliya Saleh, assume profundamente o seu universo
feminino de memórias, lutas, orgulhos, desprezos, revoltas, timidez, sentido de
humor, e um extraordinário memorial de leituras, às quais se dedicou a vida
inteira, e que utiliza tantas vezes como ponto de partida para as suas próprias
reflexões, no acaso das suas evocações, como leit-motiv constante do seu
percurso numa Tripoli de alternância de paz e lutas, ora intestinas - as
religiosas entre sunitas e xiitas - ora entre libaneses e israelitas, dos
últimos dos quais decididamente repudia as arrogâncias - tudo isso a que fomos
– os ocidentais - assistindo de longe, na estranheza apática ou levemente
crítica das distâncias e do desenquadramento etnográfico. E as datas da
autobiografia, exactas, vão sendo apontadas escrupulosamente pela heroína
apagada, fechada no cubículo do seu envelhecimento desprovido de conforto, da
casa para onde se mudara aquando do seu casamento, aos dezasseis anos, quando
ainda estudava, casamento imposto pela família e que do coração desprezou. É
nessa pequena casa, transformada em sóbrios aposentos de leitura e de traduções
dos autores que lê apaixonadamente, dedicando-se ao gosto pessoal de os
traduzir e escrever manualmente com tinta, guardando-os em caixotes arrumados
numa casa de banho de empregada, que um dia fora conspurcada pela defecação de
um soldado invasor, israelita, já ela estava separada do marido que a
desprezara por lhe não ter dado filhos, culpando-a disso, provando-se essa
impostura quando não conseguiu engravidar nenhuma das suas duas mulheres
seguintes. E os traços um tanto caricaturais, por vezes trágicos, dos costumes
libaneses, numa família pobre a que pertencera e outras que a rodearam – as
três “bruxas” dos andares de cima, suas senhorias, por morte do pai delas – que
deixara de a respeitar depois do divórcio daquela – como traço social de atraso
machista, por ali também, mais ainda do que por cá, naqueles mesmos tempos de penúria social – vão sucedendo-se, em recuos de memória e avanços favorecidos
uns e outros pelas transcrições literárias ou evocações artísticas, de um
extraordinário impacto, nos nossos espíritos tantas vezes desgostosos pela
linguagem de obscenidades ou piroseiras de mau gosto de tantos escritores
nossos.
A história de um afecto profundo, por
uma irmã do marido sua protectora – Hannah - mulher original, num mundo de
convenções e tristes hábitos de domínio masculino e servidão feminina, mundo
que começa, todavia, a libertar-se, no desprezo bem expresso de uma Aaliya que
jamais amara o seu, nem tinha motivos para tal, a história familiar nos seus
inícios, num ambiente de pobreza e promiscuidade, uma mãe mal amada,
perpassando em cenas grotescas numa velhice abandonada, os escrúpulos de filha
e a visita à mãe fedorenta, a quem lava os pés e corta as unhas, cenas de um
presente de remorso alternando com as de um passado de penúria, tudo isso vai
passando, ao acaso dos dias e das evocações, em discurso natural e sério, de
uma mulher libanesa envelhecendo, sem grandes arrebiques de vaidade, nem contemplações
de maior por si própria que, todavia, por ouvir as “bruxas” vizinhas referirem a sua
cabeça branca, se descuida na lavagem, pintando o cabelo de azul por excesso do
produto colorante posto na água.
A história das três vizinhas “bruxas”,
que se revelarão amigas prestáveis e generosas, entre outras, na cena do cano roto
que inundou a casa de banho com os caixotes das suas traduções de livros que
nunca pensara em publicar, e que elas ajudam a secar, dando sugestões para que
as folhas sejam salvas pelos alunos de uma delas, reconhecendo o mérito das
traduções para possível publicação, e denunciando assim a solidariedade feminina,
eis um bom final para uma história desse mundo feminino, em que é igualmente
sensível a história trágica da sua cunhada Hannah, que se suicidará, na solidão
frustrante de mais um viver feminino encurralado no seu vazio, apesar da amizade por Aaliya.
Um esplendor de leitura que se serve de
tantos desses livros de que extrai as suas citações, sendo as de Pessoa –
Bernardo Soares, do “Livro do Desassossego” ou Álvaro de Campos - um dos
autores venerados, a quem reconhece a plena capacidade de exprimir, como nenhum
outro, o universo das ambiguidades que arrastam o homem nos seus pensamentos
íntimos, num mundo de respostas frouxas ou nulas. E Proust, e Marguerite Yourcenar, e “Madame Bovary", e uma multidão
deles, mais os clássicos e os filósofos, e a Torá e os pintores e os
compositores das suas solidões de velha modesta - “desnecessária”, assim se
diz, mas, afinal, não recalcada nem má, apesar da falta de pretensiosismo da
sua linguagem, de um sabor crítico jamais amaneirado, e revelador de uma felicidade, na vida de leitora e tradutora para árabe, que escolheu para si.
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