sexta-feira, 20 de setembro de 2019

«Uma mulher desnecessária», um romance de Rabih Almedinne



Não, não é uma mulher que escreve, embora o livro se apresente como uma autobiografia, cuja narradora protagonista, Aaliya Saleh, assume profundamente o seu universo feminino de memórias, lutas, orgulhos, desprezos, revoltas, timidez, sentido de humor, e um extraordinário memorial de leituras, às quais se dedicou a vida inteira, e que utiliza tantas vezes como ponto de partida para as suas próprias reflexões, no acaso das suas evocações, como leit-motiv constante do seu percurso numa Tripoli de alternância de paz e lutas, ora intestinas - as religiosas entre sunitas e xiitas - ora entre libaneses e israelitas, dos últimos dos quais decididamente repudia as arrogâncias - tudo isso a que fomos – os ocidentais - assistindo de longe, na estranheza apática ou levemente crítica das distâncias e do desenquadramento etnográfico. E as datas da autobiografia, exactas, vão sendo apontadas escrupulosamente pela heroína apagada, fechada no cubículo do seu envelhecimento desprovido de conforto, da casa para onde se mudara aquando do seu casamento, aos dezasseis anos, quando ainda estudava, casamento imposto pela família e que do coração desprezou. É nessa pequena casa, transformada em sóbrios aposentos de leitura e de traduções dos autores que lê apaixonadamente, dedicando-se ao gosto pessoal de os traduzir e escrever manualmente com tinta, guardando-os em caixotes arrumados numa casa de banho de empregada, que um dia fora conspurcada pela defecação de um soldado invasor, israelita, já ela estava separada do marido que a desprezara por lhe não ter dado filhos, culpando-a disso, provando-se essa impostura quando não conseguiu engravidar nenhuma das suas duas mulheres seguintes. E os traços um tanto caricaturais, por vezes trágicos, dos costumes libaneses, numa família pobre a que pertencera e outras que a rodearam – as três “bruxas” dos andares de cima, suas senhorias, por morte do pai delas – que deixara de a respeitar depois do divórcio daquela – como traço social de atraso machista, por ali também, mais ainda do que por cá, naqueles mesmos tempos de penúria social – vão sucedendo-se, em recuos de memória e avanços favorecidos uns e outros pelas transcrições literárias ou evocações artísticas, de um extraordinário impacto, nos nossos espíritos tantas vezes desgostosos pela linguagem de obscenidades ou piroseiras de mau gosto de tantos escritores nossos.
A história de um afecto profundo, por uma irmã do marido sua protectora – Hannah - mulher original, num mundo de convenções e tristes hábitos de domínio masculino e servidão feminina, mundo que começa, todavia, a libertar-se, no desprezo bem expresso de uma Aaliya que jamais amara o seu, nem tinha motivos para tal, a história familiar nos seus inícios, num ambiente de pobreza e promiscuidade, uma mãe mal amada, perpassando em cenas grotescas numa velhice abandonada, os escrúpulos de filha e a visita à mãe fedorenta, a quem lava os pés e corta as unhas, cenas de um presente de remorso alternando com as de um passado de penúria, tudo isso vai passando, ao acaso dos dias e das evocações, em discurso natural e sério, de uma mulher libanesa envelhecendo, sem grandes arrebiques de vaidade, nem contemplações de maior por si própria que, todavia, por ouvir as “bruxas” vizinhas referirem a sua cabeça branca, se descuida na lavagem, pintando o cabelo de azul por excesso do produto colorante posto na água.
A história das três vizinhas “bruxas”, que se revelarão amigas prestáveis e generosas, entre outras, na cena do cano roto que inundou a casa de banho com os caixotes das suas traduções de livros que nunca pensara em publicar, e que elas ajudam a secar, dando sugestões para que as folhas sejam salvas pelos alunos de uma delas, reconhecendo o mérito das traduções para possível publicação, e denunciando assim a solidariedade feminina, eis um bom final para uma história desse mundo feminino, em que é igualmente sensível a história trágica da sua cunhada Hannah, que se suicidará, na solidão frustrante de mais um viver feminino encurralado no seu vazio, apesar da amizade por Aaliya.
Um esplendor de leitura que se serve de tantos desses livros de que extrai as suas citações, sendo as de Pessoa – Bernardo Soares, do “Livro do Desassossego” ou Álvaro de Campos - um dos autores venerados, a quem reconhece a plena capacidade de exprimir, como nenhum outro, o universo das ambiguidades que arrastam o homem nos seus pensamentos íntimos, num mundo de respostas frouxas ou nulas. E Proust, e Marguerite Yourcenar, e “Madame Bovary", e uma multidão deles, mais os clássicos e os filósofos, e a Torá e os pintores e os compositores das suas solidões de velha modesta - “desnecessária”, assim se diz, mas, afinal, não recalcada nem má, apesar da falta de pretensiosismo da sua linguagem, de um sabor crítico jamais amaneirado, e revelador de uma felicidade, na vida de leitora e tradutora para árabe, que escolheu para si.

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