Só agora encontrei este texto que guardo
com apreço, Fernando Gil tendo sido
companheiro, na turma das Letras do novo Liceu Salazar, naquele ano de 52-53, em
Lourenço Marques, em que esteve preso pela Pide, e quando apareceu na sala e exclamámos,
felizes, “Olha o Gil!” - pois vivêramos com susto a sua prisão - ele se
comoveu, por ver quanto era estimado e admirado, pelo seu saber. Reencontrei-o
aquando da morte da mãe, Irene Gil, cá, mas a
afabilidade, reforçada eventualmente em anos de estudo cá, foi recebida com ar
distante e trocista de espírito superior, que a apresentação biográfica que
segue, feita pelo colega e amigo Manuel Villaverde Cabral, plenamente
justifica, vejo-o agora, tão grande o preciosismo de complexidade da obra que
refere, nos títulos que cita, da sua autoria, a racionalizar a incompreensão
dos leigos.
FERNANDO GIL: UMA EVOCAÇÃO
MANUEL
VILLAVERDE CABRAL ….OBSERVADOR, 22
de Abril de 2018
Manuel
Villaverde Cabral recorda o legado do filósofo para a actualização,
racionalização e modernização da sociedade portuguesa, uma personalidade tinha
ainda tudo a dar à cultura e à filosofia.
Texto
lido na sessão de atribuição do Prémio Internacional Fernando Gil em Filosofia
da Ciência, Fundação Calouste Gulbenkian, 9 de Abril de 2018
Foi
com grande emoção que acompanhei a doença e o falecimento de Fernando Gil
(1937-2006) fez há pouco doze anos. Se é certo que ele viveu a vida plenamente
e se deixa a marca indelével da sua obra, a verdade é que a sua energia
intelectual e a sua personalidade intensa tinham ainda tudo a dar à cultura e à
filosofia, e bem entendido à família e aos amigos. Por isso, se o legado é
imenso, nem por isso deixou de ser uma perda enorme para o pensamento e para a
sociedade portuguesa, para cuja actualização, racionalização e modernização ele
contribuiu sem descanso.
Conheci
Fernando Gil no final dos anos Sessenta em Paris, onde ambos vivíamos e onde
ele acabaria por fixar a sua residência principal, sem nunca deixar de
trabalhar em Portugal depois do fim da ditadura. O seu expatriamento, a seguir
à publicação do primeiro livro (Aproximação antropológica, 1961), tinha
tudo a ver com a situação política portuguesa e com a guerra colonial, que
acabara de começar e o tocava de muito perto, tendo nascido e vivido em
Moçambique até vir para Lisboa fazer Direito. Ao mesmo tempo, porém, o
expatriamento correspondia também à busca de um percurso que já então se pusera
em movimento dentro dele.
Ficámos
amigos praticamente desde o primeiro encontro até à memória permanente que hoje
tenho dele. Entretanto, em Paris o Fernando terminava a tese de doutoramento (La
logique du nom, 1971) e iniciava uma sucessão ininterrupta de projectos
que a sua inesgotável criatividade alimentaria até ao fim. Um dos poucos
projectos que nunca teve oportunidade de terminar e permanecia até há pouco
desconhecido da maioria dos seus leitores foi o de um Cahier de l’Herne
dedicado a Fernando Pessoa, que constituiu a nossa primeira colaboração
no início dos anos 70. Esse projecto foi agora recordado pelo seu antigo
colega do curso de Direito, o jurista e filósofo João Lopes Alves, num
artigo publicado em sua memória com as longas e reflexivas cartas que Fernando
Gil então lhe enviou sobre o seu projecto pessoano, onde chega a escrever:
“Estou desde há uma semana numa sobre-excitação fernandina (aí umas 10h por
dia)! Tenho de romper o «charme» pois há outras coisas para fazer!” Em Setembro
de ’72, ele escrevia a última carta sobre o projecto Pessoa, onde dizia: “Não
sei se chegará a fim. Não sei bem porquê…”. E eu também nunca soube.
Com
o fim da ditadura, o 25 de Abril abriu-lhe, como aos outros exilados e
expatriados, a chance de trabalhar em liberdade com aquele mínimo de condições
que a universidade portuguesa em reconstrução nos concedeu. Em contrapartida,
bem mais tarde, o seu interesse pelos regimes de relação entre “crença” e
“convicção”, “ideologia e verdade”, para citar o estudo precioso que o seu
orientando – hoje filósofo – Paulo Tunhas lhe dedicou, levaram Fernando
Gil de novo à literatura e ao estudo – este publicado – sobre “o
efeito-Lusíadas” (As Viagens do Olhar, com Helder Macedo, 1998). Interesses
simultaneamente estéticos e filosóficos que se estenderam também à música (A
quatro mãos, com Mário Vieira de Carvalho, 2005) e à pintura com vários
textos sobre a obra de artistas portugueses (in Modos da Evidência, 1998)!
Com
o fim da ditadura, o 25 de Abril abriu-lhe, como aos outros exilados e
expatriados, a chance de trabalhar em liberdade com aquele mínimo de condições
que a universidade portuguesa em reconstrução nos concedeu. Entre Lisboa e
Paris, dedicou então parte da sua energia criadora a essas novas
enciclopédias “problemáticas e críticas”, como lhes chamou, que são
a Encyclopédie Universalis (Paris, 1968-1975) e
a Enciclopedia Einaudi (Turim, 1977-1984; traduzida em português
pela Imprensa Nacional de Lisboa), nas quais também me deu oportunidade de
colaborar.
Ao
mesmo tempo, introduzia perspectivas inéditas no ensino da filosofia em
Portugal; lançava a primeira das suas revistas, Filosofia e Epistemologia
(Lisboa, 1978-), e reunia boa parte dos textos então produzidos
em Mimésis e Negação (1984), o que lhe trouxe o reconhecimento
geral como o mais original e actualizado pensador português, nomeadamente
no campo da epistemologia e da filosofia das ciências, que desde sempre o
atraiu pelo lugar central que esse campo ocupa nos sistemas de pensamento e
conhecimento modernos.
Mais
tarde, foi o lançamento da revista Análise (1984-2005) e a fundação do
Gabinete de Filosofia do Conhecimento, com sede na Biblioteca Nacional, quando
eu era director (1985-1990), sendo-me então possível apoiar logisticamente esse
grupo cujos motores eram a heterogeneidade e a vontade sabiamente orientadas
pelo Fernando; e depois a publicação das suas Provas em 1986
(traduzidas em Francês em 1988), que constituíram, ao mesmo tempo, a sua prova
de agregação universitária e o estudo das práticas da prova e da controvérsia.
Entretanto,
Fernando Gil havia, precisamente, coordenado um grande colóquio internacional
em Évora sobre as Controvérsias científicas e filosóficas (1985), ao qual
se seguiu aquele que organizou em Paris em 1988 sobre Wiittgenstein (Acta
publicada pelo Collège International de Philosophie em 1990); outro colóquio,
desta vez não publicado, foi o organizado por ele, Vasco Graça Moura, então
director da Imprensa Nacional, e eu próprio, sobre as “Enciclopédias e
Bibliotecas” enquanto lugares de organização e produção do conhecimento. Por
fim, a conquista do seu lugar no campo filosófico internacional, com a escolha
de Fernando Gil pelos seus pares para “Directeurd’études” da Ecole dês Hautes Etudes
en Sciences Socialesde Paris. Foi, talvez, a época mais fértil da nossa
colaboração e o cimento inquebrável da nossa amizade.
Em
1993, o Prémio Pessoa assinalou o reconhecimento público e a plenitude pessoal
de Fernando Gil. Com a
publicação das obras de maturidade (Le Traité de l’Évidence, 1992, e La
conviction, 2000), ele acercou-se enfim à possibilidade de uma síntese,
onde fica unida a sua dupla capacidade para a abrangência temática e para a
profundidade analítica. Entretanto, em Português ou em Francês, frequentemente
em ambas as línguas, Fernando Gil havia de publicar um conjunto vastíssimo
de tratados, livros, colectâneas, artigos, colaborações, textos para
enciclopédias e para catálogos de arte, etc. O Fernando estava, creio eu, a
fazer o seu ajuste de contas com o "militantismo", que nunca terá sido
a sua primeira escolha, apesar de haver participado no importante grupo de
exilados anti-fascistas contra a guerra colonial – o MAR, Movimento de Acção
Revolucionária.
De
modo tal que, apesar dos meus esforços, não logrei localizar uma bibliografia
completa dos seus títulos desde 1961 a 2006 – 45 anos de expressão da sua
enorme criatividade e da sua inesgotável energia – que importa fazer título
a título, edição a edição. Enfim, “mors certa hora incerta”, como ele
próprio recordou filosoficamente no último capítulo daquele que viria a ser o
seu derradeiro livro (Acentos, 2006); a sua morte, porém, chegou
cedo demais; hoje, é Fernando Gil quem dá o nome, merecidamente, ao Prémio
Internacional de Filosofia das Ciências atribuído pelo Estado português e pela
Fundação Calouste Gulbenkian.
Resta-me
evocar algo de, simultaneamente, mais pessoal e mais teórico. Na primeira
reunião em casa do Fernando, há quase 50 anos, o tópico geral era a política
depois de Maio de ’68, e a minha presença – sugerida pelo irmão dele, o
também filósofo José Gil, igualmente presente nessa reunião depois de haver
colaborado com o grupo dos Cadernos de Circunstância (Paris, 1967-1970) –
devia-se à minha condição de animador daquele grupo e de “militante” político.
O Fernando estava, creio eu, a fazer o seu ajuste de contas com o
“militantismo”, que nunca terá sido a sua primeira escolha, apesar de haver
participado no importante grupo de exilados anti-fascistas contra a guerra
colonial – o MAR, Movimento de Acção Revolucionária – juntamente com o meu
futuro colega há pouco falecido, o seu amigo e grande intérprete do regime
salazarista Manuel de Lucena, que esteve connosco no funeral do Fernando nos
Pirinéus!
O
motivo imediato do encontro do “loft” da Bastilha onde Fernando Gil vivia era discutir
um ensaio que ele estava a escrever sobre a hipotética renovação do marxismo
então proposta por Louis Althusser. O ensaio foi publicado na revista Ruedo
Ibérico e a sua resposta à pergunta sobre a eventual renovação althusseriana do
marxismo era negativa. E apenas uma vez terá conferido, alguns anos depois, um
enquadramento político à sua reflexão filosófica num extenso texto publicado no
Brasil em 1974, por um cientista português igualmente exilado, o físico teórico
Jorge Dias de Deus, onde se pode reconhecer uma influência mais metafórica do
que ideológica do obreirismo neo-marxista italiano de então: “O Plano da
Ciência”.
"A
contribuição filosófica mais decisiva de Fernando Gil para o entendimento do
político e do seu princípio de razão encontra-se em 'La Conviction' (2000),
nomeadamente na 2.ª parte do livro, dedicada ao “pensamento soberano”, onde
fornece ainda uma passagem para o conhecimento local da política."
Só muito mais tarde, já no século XXI, Fernando Gil voltaria à política do dia.
Dito isto, a presença do político – diversamente da política – atravessa de
forma latente todo o pensamento de Fernando Gil, como afirma Paulo Tunhas. É
que ele pensava o político e o científico, assim como o estético e o religioso,
implicados uns nos outros e não se deixando reduzir ao exclusivo funcionamento
interno de cada campo, em especial o da política. Na
realidade, todos esses campos autónomos nas suas manifestações fenomenológicas
passariam por pré-construções cognitivas e intelectuais – em suma, na linguagem
de Fernando Gil, por evidências e convicções – através das quais mergulhariam
num solo comum. Como para
Leibniz, que usou para escrever um texto luminoso intitulado “O Lugar do Outro”
(Passé Présent, 1984; publicado em português na revista Risco publicada pelo
Clube da Esquerda Liberal (1984-1987), também para Fernando Gil “não existe
o político puro”. Um exemplo precoce de exploração desse grund comum entre
o político e o científico é o referido “Plano da Ciência”, que voltou a
publicar nas Mediações em 2001. Em Fernando Gil, o político – mais
do que nas ideologias e os seus agentes, que até ao 11 de Setembro de 2001 não
lhe tinham despertado particular interesse – circula antes entre o direito e
a ética, acerca dos quais dialogou não só com os clássicos, desde Hobbes
e Spinoza a Rousseau e Kant, mas também com os contemporâneos, ora
com Karl Schmitt e Kelsen, ora ainda
com Habermas e Rawls. Foi em discussão com os dois
últimos que produziu um belo artigo sobre deveres e direitos que ilumina os
fundamentos do welfare state, tema ao qual regressou no último texto
que publicou, onde evoca comovido a ética de serviço público reinante no
hospital público de Paris onde viria a falecer.
Porém,
a contribuição filosófica mais decisiva de Fernando Gil para o entendimento do
político e do seu princípio de razão encontra-se em La
Conviction (2000), nomeadamente na 2.ª parte do livro, dedicada ao
“pensamento soberano”, onde fornece ainda uma passagem para o conhecimento
local da política, através do “duplo estatuto do cidadão, sujeito individual e
soberano”. O mais importante a reter, na leitura da soberania feita por ele, é
que “a revolução operada por Jean Bodin [século XII] consiste em extrair o
fundamento do poder do próprio político”, transformando este último numa “transcendência
na imanência”, em suma, numa vontade ilimitada, conflitual e violenta, cuja
“liberdade selvagem coloca permanentemente em perigo a ordem jurídica”. É este
risco, que Karl Schmitt exaltava mas que, pelo contrário, “o Estado de direito
moderno e democrático pretende controlar, definindo antecipadamente as
situações que autorizam a derrogação da ordem jurídica normal”, domesticando,
por assim dizer, tanto a “tirania” como o “poder constituinte”.
As
implicações extraídas por Fernando Gil deste encadeado de “convicções” passam
pela crítica das ficções constitucionalistas, mas também pela admissão
kantiana de que todo o pensamento tem a vocação de tomar a intuição por
finalidade, a fim de chegar aos “princípios da ciência” e à sua “causalidade
autárcica” homóloga da soberania política, através da qual Gil tece o fio de
uma comunalidade geral da convicção em torno de todo o espaço mundano, do
político ao científico.
Quanto
à política – enquanto
segmento da vida mundana – vê-se assim reduzida à sua mecânica interna. E como
tal, com a excepção relevante dos Impasses (2004), que escreveu com Danièle
Cohn e Paulo Tunhas, e da secção final – significativamente intitulada “Medos”
– da última recolha de ensaios que ainda pôde editar (Acentos, 2005), Fernando
Gil acabou por ocupar-se talvez menos da política como filósofo do que como
cidadão, enquanto jovem militante anti-colonialista que foi em
Moçambique onde nasceu e viveu até aos 18 anos, o que chegou a valer-lhe a
prisão; enquanto adversário permanente da ditadura e, finalmente, enquanto
adversário da deriva esquerdizante de 1974-75 em Portugal.
E
foi mesmo político, no melhor sentido da palavra, enquanto pensador de “os
saberes e a cidade” (Acentos, pp. 181-251), em prol da política científica
promovida pelo precocemente falecido José Mariano Gago, nosso
companheiro do Gabinete de Filosofia do Conhecimento e ministro socialista da
Ciência durante 12 anos; ou ainda enquanto impulsionador do programa de investigação
do Gabinete de Filosofia do Conhecimento que culminou no número da revista
Análise sobre “O Interesse Público” (1994). E, claro, enquanto organizador
de conferências e colóquios da importância do Balanço do Século (1990) e A
ciência como cultura (1992), realizados durante a presidência de Mário Soares.
Já com a publicação de Impasses (2003),
Fernando Gil demonstra como foi profundamente interpelado pela violência inaudita do 11 de Setembro de 2001 e
pela fractura que o terrorismo e o fundamentalismo islâmicos abriram nas
próprias sociedades demoliberais. São conhecidos os conteúdos da
controvérsia que se seguiu comigo e outros interlocutores, reunida em Acentos
(2005), pelo que será suficiente reconhecer que as preocupações que então o
mobilizaram não só tinham toda a razão de ser como estão muito longe de haver
desaparecido. Nesse sentido, consola-nos que Fernando Gil tenha sido poupado à
posterior «cavalgada do terror», mas isso não diminui a perda sentida pela sua
família e pelos seus amigos e admiradores.
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