sábado, 21 de setembro de 2019

Um feito ibérico



É muito curiosa a história de uma circum-navegação que só um acaso infeliz permitiu que o fosse. Não deixa de constituir um feito, esse caminho por Ocidente, que tem quinhentos anos. Quem ganhou, afinal, foi o Mundo, totalmente assim abraçado, desfazendo mitos. Fernando Pessoa ousou referi-lo, embora os termos da sua leitura simbólica talvez devam ser postos em causa pelas sensibilidades depuradas dos nossos partidos de esquerda, que já os latinos apelidavam de sinistra e se indisporão com os moldes despudoradamente racistas do descritivo épico pessoano … Mas releiamos Pessoa, quand même,  - que esse sim, já deu muitas voltas ao mundo - para complementar o texto de João Morgado, em homenagem ao seu bom trabalho histórico – e sobretudo em comemoração admirativa por tal feito ibérico.
Um história portuguesa
Sem a morte de Fernão de Magalhães não teria havido circum-navegação
JOÃO MORGADO      OBSERVADOR, 20/9/2019
Há 500 anos, dar a volta ao mundo nunca foi um objectivo para Fernão de Magalhães. O paradoxo é que aconteceu por simples instinto de sobrevivência, desespero e desnorte de uma tripulação sem líder.
Sem a morte de Fernão de Magalhães não teria havido circum-navegação e nada haveria a comemorar. Este é o profundo paradoxo de todos estes festejos que assinalam os 500 anos da partida de uma armada que deu a volta ao mundo, não em função de um objectivo definido, mas pelo simples instinto de sobrevivência e desespero de uma tripulação sem líder. O que veio a tornar Fernão de Magalhães uma figura planetária e memorável, não foram os seus grandes feitos – e houve muitos -, mas sim, aquele que acabou por ser o seu maior erro e lhe granjeou a morte.
Na verdade, Magalhães deu fisicamente a volta ao mundo, mas disso falaremos mais adiante. Em relação à frota que partiu a 20 de Setembro de 1519, de Sanlúcar de Barrameda, data que assinalamos esta sexta-feira, cabe dizer que nunca teve a intenção, nem declarada, nem oculta, de circum-navegar o planeta. Não era o seu propósito e, mais, estava até proibida de tal.
O rei de Espanha, Carlos I (e Imperador Romano-Germânico como Carlos V) escreveu a D. Manuel I garantindo-lhe que a armada guardaria as demarcações do célebre Tratado de Tordesilhas e que, por isso, não tocaria em terras sob a alçada de Portugal.
«…soube que vós tendes alguma suspeita que da armada que mandamos fazer para ir às Índias (…) mas porque disto não vos fique pensamento acordei em vos escrever pera que saibais que nossa vontade foi e é de mui cumpridamente guardar tudo o que sobre a demarcação foi assentado e capitulado com os católicos rei e rainha meus senhores e avós, que estejam em glória, e que a dita armada não irá nem tocará em parte que prejudique em qualquer coisa ao vosso direito (…) o primeiro capítulo e mandamento nosso que levam os ditos capitães, é que guardem a demarcação e que não toquem de nenhuma maneira e sob graves penas nas partes, e terras e mares que pela demarcação a nós nos estão assinaladas e nos pertencem e assim o guardarão e cumprirão; e disto não tenhais nenhuma dúvida. Sereníssimo e mui excelente rei e príncipe, nosso mui caro e mui amado irmão, Nosso Senhor vos tenha em sua especial guarda e recomenda.» (Carta redigida em Barcelona, a 28 de fevereiro de 1519.)
Então qual era a missão desta armada comandada pelo português? Tão-somente, conseguir o que Colombo apenas sonhara, chegar à Ásia rumando a ocidente. O que alcançou. Fruto da sua personalidade de “antes quebrar que torcer”, da sua disciplina, do seu empenho e perseverança, ao descobrir o “estreito” que hoje leva ao seu nome, conseguiu cruzar o continente americano e chegar ao mar do sul, que baptizou de “Oceano Pacífico”.
O que pretendia? Tinha como objectivo chegar às ilhas de Maluco (Molucas), ricas em cravo, uma especiaria rara e muito bem paga pelas casas nobres da velha Europa.
Porquê? Ora, porque o tratado de Tordesilhas tinha sido marcado num mapa plano, mas acreditando na esfericidade da terra, então aquele meridiano prologar-se-ia até ao outro lado do mundo, até à Ásia. Definindo esse ‘anti-meridiano’, Magalhães acreditava que tais ilhas ficariam na demarcação de Espanha, sendo que Carlos V poderia reclamar o território e as suas riquezas comerciais. Por ser um objectivo contrário aos interesses dos portugueses que tinham o monopólio daquele mercado, é que Magalhães foi considerado traidor em Lisboa, e D. Manuel I mandou até uma armada para o… deter, digamos assim! Concluindo: a ideia era navegar o Atlântico para ocidente, chegar às ilhas de Maluco, marcá-las para Espanha, conseguir um feito naval, um golpe político, um enriquecimento pessoal, e regressar pela mesma rota.
E a circum-navegação? De onde surgiu? Esta foi uma viagem longa e perigosa. Cruzaram mares (verdadeiramente) nunca dantes navegados, enfrentaram os frios e os gelos do sul, andaram pelo desconhecido. No mundo global de hoje, temos dificuldade em compreender o quão enorme e destemida foi esta façanha, mas foi enorme. Para além das intempéries, da fome, das doenças, Magalhães ainda teve de enfrentar rebeliões internas. Não fosse pela sua personalidade forte e justiceira, a armada teria ficado a meio caminho e todos tinham regressado a casa, passado uns tempos, cobertos de vergonha. Foi graças à sua crença que a armada testou os seus limites, encontrou o “estreito” e chegou, não às ilhas de Maluco, mas bem mais acima… às actuais Filipinas. Foi aqui que Magalhães, com o apoio do astrónomo e cartógrafo Andrés de San Martín, percebeu que o globo terreste era maior do que o presumido, e que os seus cálculos poderiam ter um ligeiro erro. Assim, ao contrário do que sempre acreditara, as ilhas de Maluco afinal… estavam na demarcação portuguesa definida pelo Tratado de Tordesilhas.
Tal constatação deixou-o um pouco perturbado. Talvez isso explique que se tenha demorado uns meses longe dos seus propósitos, empenhando-se na evangelização daquelas ilhas, algo que não lhe fora pedido. Graças a si, à sua semente, as Filipinas são a primeira nação cristã no Oriente. Foi a oposição de uma das ilhas que o levou a expor-se numa batalha tresloucada: com apenas sessenta homens, enfrentou mais de dois mil indígenas. Magalhães tombou em combate. Mais tarde, noutra ilha que se mostrara afável e acolhedora, os restantes oficiais caíram numa cilada e foram mortos à traição. A armada ficou sem o grande líder, os barcos metiam água, sentiam-se perseguidos pelos indígenas daquelas paragens e pelos portugueses que estavam no seu encalço para os deterem. Havia que zarpar, regressar a casa. Por onde? Pela mesma rota? Na ausência de outras figuras de primeira água, Delcano assumiu o comando da frota e determinou que não. Estavam fragilizados, e não teriam condições para enfrentar de novo os perigos e aqueles rigores do clima gelado.
Como sobreviver então? Esquecendo o regimento da armada, as instruções d’el-rei e avançando pelo proibido mar português adentro. Foi assim que chegaram às Índias, desceram o Índico sem tocar terra, para que os portugueses não os atacassem. Contornaram o famoso “cabo das tormentas” nos fundilhos de África e subiram o Atlântico até Espanha. Determinada pelo desespero, pela sobrevivência, pelo desnorte de terem perdido o líder, Magalhães, cumpriam assim a famosa circum-navegação.
Então, Magalhães deu a volta ao mundo ou não?
Vamos dividir a resposta em duas partes. Por um lado, o que comemoramos, é a grande viagem que contornou o globo de uma só vez. Foi pensada e defendida por Magalhães junto do rei Carlos I, conseguiu provar experimentalmente que a terra era redonda, e chegou à Ásia rumando a ocidente, cumprindo um sonho dos Espanhóis. Um grande feito, já que cumpriu, no essencial, o grande ciclo dos Descobrimentos marítimos, iniciado um século antes, em Portugal. Sem os conhecimentos e a postura de Magalhães tal não seria possível, temos por isso muito que festejar.
Por outro lado, levanta-se uma dúvida: se Magalhães morre a meio caminho, nas Filipinas, não deu apenas meia-volta ao globo? Verdade. Mas também é certo que, ao serviço do rei de Portugal, já servira nas partes das Índias, combatido ao lado de Afonso de Albuquerque na conquista de Malaca, em 1511, e – segundo alguns documentos da época – terá seguido com o amigo Francisco Serrão até às ilhas de Maluco, no mesmo meridiano das Filipinas.
Ou seja, Fernão Magalhães abraçou o mundo em duas partes, com o braço direito ao serviço de Portugal, com o braço esquerdo, ao serviço de Espanha. E foi ainda o mentor da viagem que, dadas as razões apresentadas, cumpriu a primeira circum-navegação de uma só tirada. Uma viagem que começou a 20 de Setembro, cumprem-se agora 500 anos. Comemoremos.
João Morgado é escritor, autor do romance biográfico “Fernão de Magalhães e a Ave-do-Paraiso”, Esfera dos Livros, 2019 (www.joaomorgado.net)
COMENTÁRIOS:
Ricardo Saldanha: A tese de que, se Magalhães não tivesse morrido, teria regressado voltando para trás é completamente descabida, porque os ventos alísios do Pacífico obrigariam naus em más condições a navegar pelo Pacífico Sul junto aos icebergs: um suicídio em que Magalhães não se iria meter seguramente. O mais provável é que Magalhães, sabendo que o lugar em que se encontrava era perto da Malásia (o escravo malaio conseguia comunicar com os nativos), iria voltar por mares dantes navegados mesmo  correndo o risco de ser apanhado.
Rodrigo Pires: Parabéns, João Morgado
Só esqueceu de informar, que o Magalhães é tratado como um herói no Chile.
João Silva Cirne: Interessante era adivinhar onde é que Elcano terá tomado consciência que tinha circum-navegado. Magalhães morre em Cebu. Elcano abandona as Filipinas em direcção ao mar de Celebes. Elcano não parou nem no mar das Molucas nem no mar de Banda, infestado de Portugueses. Talvez neste limiar, no mar de Celebes, Elcano tenha compreendido onde estava e tenha sabido que tinha dado a volta.
Oliver Klein: A missão nunca foi a circum-navegação, mas a verificação e aferição das Molucas no mapa das pertenças ibéricas.  O regresso estava previsto pela mesma rota. E tal só não aconteceu por redução drástica de meios (de 4 navios para 1) que praticamente inviabilizava o cumprimento da missão. Decidiu, pois, um espanhol sobrevivente a Magalhães que a missão só teria probabilidade razoável de êxito se rumassem a Oeste por mar português. Ainda estiveram detidos no golfo da Guiné, mas acabaram por seguir para Espanha após algumas tramitações diplomáticas. Em Portugal insistiu-se longamente numa versão falseada dos factos e condenada pela História.
Jose Neto: Finalmente, temos a história bem contada!
Rui Rebelo: A circum-navegação foi um acaso o que não invalida a sua grandiosidade, pois navegar pelos mares da India e África cheios de Portugueses estava fora de questão para os Espanhóis, se não fosse isso, Fernão fazia-o com uma perna às costa pois ele já conhecia bem esses mares. Mas lá conseguiram!
victor guerra: Ideia de português, comprada pelo rei de Espanha e terminada por um espanhol. Tal como a de Colombo ,uma medalha para os vizinhos.
Fernando Pessoa
(VIII. FERNÃO DE MAGALHÃES (MENSAGEM, II PARTE, “Mar Português”)
VIII
FERNÃO DE MAGALHÃES
No vale clareia uma fogueira.
Uma dança sacode a terra inteira.
E sombras disformes e descompostas
Em clarões negros do vale vão
Subitamente pelas encostas,
Indo perder-se na escuridão.
De quem é a dança que a noite aterra?
São os Titãs, os filhos da Terra,
Que dançam da morte do marinheiro
Que quis cingir o materno vulto —
Cingi-lo, dos homens, o primeiro —,
Na praia ao longe por fim sepulto.
Dançam, nem sabem que a alma ousada
Do morto ainda comanda a armada,
Pulso sem corpo ao leme a guiar
As naus no resto do fim do espaço:
Que até ausente soube cercar
A terra inteira com seu abraço.
Violou a Terra. Mas eles não
O sabem, e dançam na solidão;
E sombras disformes e descompostas,
Indo perder-se nos horizontes,
Galgam do vale pelas encostas
Dos mudos montes.

Nenhum comentário: