É muito curiosa a história de uma circum-navegação
que só um acaso infeliz permitiu que o fosse. Não deixa de constituir um feito,
esse caminho por Ocidente, que tem quinhentos anos. Quem ganhou, afinal,
foi o Mundo, totalmente assim abraçado, desfazendo mitos. Fernando Pessoa ousou referi-lo, embora os termos
da sua leitura simbólica talvez devam ser postos em causa pelas sensibilidades
depuradas dos nossos partidos de esquerda, que já os latinos apelidavam de
sinistra e se indisporão com os moldes despudoradamente racistas do descritivo épico
pessoano … Mas releiamos Pessoa, quand
même, - que esse sim, já deu
muitas voltas ao mundo - para complementar o texto de João
Morgado, em homenagem ao seu bom trabalho histórico – e sobretudo em
comemoração admirativa por tal feito ibérico.
Um
história portuguesa
Sem
a morte de Fernão de Magalhães não teria havido circum-navegação
JOÃO MORGADO OBSERVADOR, 20/9/2019
Há 500 anos, dar a volta ao mundo
nunca foi um objectivo para Fernão de Magalhães. O paradoxo é que aconteceu por
simples instinto de sobrevivência, desespero e desnorte de uma tripulação sem
líder.
Sem
a morte de Fernão de Magalhães não teria havido circum-navegação e nada haveria
a comemorar. Este é o profundo paradoxo de todos estes festejos que assinalam
os 500 anos da partida de uma armada que deu a volta ao mundo, não em função de
um objectivo definido, mas pelo simples instinto de sobrevivência e desespero
de uma tripulação sem líder. O que veio a tornar Fernão de Magalhães uma
figura planetária e memorável, não foram os seus grandes feitos – e houve
muitos -, mas sim, aquele que acabou por ser o seu maior erro e lhe granjeou a
morte.
Na
verdade, Magalhães deu fisicamente a volta ao mundo, mas disso falaremos mais
adiante. Em relação à frota que partiu a 20 de Setembro de 1519, de Sanlúcar de
Barrameda, data que assinalamos esta sexta-feira, cabe dizer que nunca teve a
intenção, nem declarada, nem oculta, de circum-navegar o planeta. Não era o seu
propósito e, mais, estava até proibida de tal.
O rei de Espanha, Carlos I (e
Imperador Romano-Germânico como Carlos V) escreveu a D. Manuel I garantindo-lhe
que a armada guardaria as demarcações do célebre Tratado de Tordesilhas e que,
por isso, não tocaria em terras sob a alçada de Portugal.
«…soube que vós tendes alguma suspeita que da armada que mandamos fazer
para ir às Índias (…) mas porque disto não vos fique pensamento acordei em
vos escrever pera que saibais que nossa vontade foi e é de mui cumpridamente
guardar tudo o que sobre a demarcação foi assentado e capitulado com os
católicos rei e rainha meus senhores e avós, que estejam em glória, e que a
dita armada não irá nem tocará em parte que prejudique em qualquer coisa ao
vosso direito (…) o primeiro capítulo e mandamento nosso que levam os ditos
capitães, é que guardem a demarcação e que não toquem de nenhuma maneira e sob
graves penas nas partes, e terras e mares que pela demarcação a nós nos estão
assinaladas e nos pertencem e assim o guardarão e cumprirão; e disto não
tenhais nenhuma dúvida. Sereníssimo e mui excelente rei e príncipe, nosso mui
caro e mui amado irmão, Nosso Senhor vos tenha em sua especial guarda e
recomenda.» (Carta redigida em Barcelona, a 28 de fevereiro de 1519.)
Então qual era a missão desta armada
comandada pelo português? Tão-somente,
conseguir o que Colombo apenas sonhara, chegar à Ásia rumando a ocidente. O que
alcançou. Fruto da sua personalidade de “antes quebrar que torcer”, da sua
disciplina, do seu empenho e perseverança, ao descobrir o “estreito” que hoje
leva ao seu nome, conseguiu cruzar o continente americano e chegar ao mar do
sul, que baptizou de “Oceano Pacífico”.
O
que pretendia? Tinha como objectivo chegar às ilhas de Maluco (Molucas), ricas
em cravo, uma especiaria rara e muito bem paga pelas casas nobres da velha
Europa.
Porquê?
Ora, porque o tratado de Tordesilhas tinha sido marcado num mapa plano, mas
acreditando na esfericidade da terra, então aquele meridiano prologar-se-ia até
ao outro lado do mundo, até à Ásia. Definindo esse ‘anti-meridiano’, Magalhães
acreditava que tais ilhas ficariam na demarcação de Espanha, sendo que Carlos V
poderia reclamar o território e as suas riquezas comerciais. Por ser um
objectivo contrário aos interesses dos portugueses que tinham o monopólio
daquele mercado, é que Magalhães foi considerado traidor em Lisboa, e D. Manuel
I mandou até uma armada para o… deter, digamos assim! Concluindo: a
ideia era navegar o Atlântico para ocidente, chegar às ilhas de Maluco,
marcá-las para Espanha, conseguir um feito naval, um golpe político, um
enriquecimento pessoal, e regressar pela mesma rota.
E a circum-navegação? De onde surgiu?
Esta foi uma viagem longa e perigosa.
Cruzaram mares (verdadeiramente) nunca dantes navegados, enfrentaram os frios e
os gelos do sul, andaram pelo desconhecido. No mundo global de hoje, temos
dificuldade em compreender o quão enorme e destemida foi esta façanha, mas foi
enorme. Para além das intempéries, da fome, das doenças, Magalhães ainda teve
de enfrentar rebeliões internas. Não fosse pela sua personalidade forte e
justiceira, a armada teria ficado a meio caminho e todos tinham regressado a
casa, passado uns tempos, cobertos de vergonha. Foi graças à sua crença que a
armada testou os seus limites, encontrou o “estreito” e chegou, não às ilhas de
Maluco, mas bem mais acima… às actuais Filipinas. Foi aqui que Magalhães, com o
apoio do astrónomo e cartógrafo Andrés de San Martín, percebeu que o globo
terreste era maior do que o presumido, e que os seus cálculos poderiam ter um
ligeiro erro. Assim, ao contrário do que sempre acreditara, as ilhas de Maluco
afinal… estavam na demarcação portuguesa definida pelo Tratado de Tordesilhas.
Tal
constatação deixou-o um pouco perturbado. Talvez isso explique que se tenha
demorado uns meses longe dos seus propósitos, empenhando-se na evangelização
daquelas ilhas, algo que não lhe fora pedido. Graças a si, à sua semente, as
Filipinas são a primeira nação cristã no Oriente. Foi a oposição de uma das
ilhas que o levou a expor-se numa batalha tresloucada: com apenas sessenta
homens, enfrentou mais de dois mil indígenas. Magalhães tombou em combate. Mais
tarde, noutra ilha que se mostrara afável e acolhedora, os restantes oficiais
caíram numa cilada e foram mortos à traição. A armada ficou sem o grande líder,
os barcos metiam água, sentiam-se perseguidos pelos indígenas daquelas paragens
e pelos portugueses que estavam no seu encalço para os deterem. Havia que
zarpar, regressar a casa. Por onde? Pela mesma rota? Na ausência de outras
figuras de primeira água, Delcano assumiu o comando da frota e determinou que
não. Estavam fragilizados, e não teriam condições para enfrentar de novo os
perigos e aqueles rigores do clima gelado.
Como
sobreviver então? Esquecendo o regimento da armada, as instruções d’el-rei e
avançando pelo proibido mar português adentro. Foi assim que chegaram às
Índias, desceram o Índico sem tocar terra, para que os portugueses não os
atacassem. Contornaram o famoso “cabo das tormentas” nos fundilhos de África e
subiram o Atlântico até Espanha. Determinada pelo desespero, pela
sobrevivência, pelo desnorte de terem perdido o líder, Magalhães, cumpriam
assim a famosa circum-navegação.
Então,
Magalhães deu a volta ao mundo ou não?
Vamos
dividir a resposta em duas partes.
Por um lado, o que comemoramos, é a grande viagem que contornou o globo de uma
só vez. Foi pensada e defendida por Magalhães junto do rei Carlos I, conseguiu
provar experimentalmente que a terra era redonda, e chegou à Ásia rumando a
ocidente, cumprindo um sonho dos Espanhóis. Um grande feito, já que cumpriu, no
essencial, o grande ciclo dos Descobrimentos marítimos, iniciado um século
antes, em Portugal. Sem os conhecimentos e a postura de Magalhães tal não seria
possível, temos por isso muito que festejar.
Por
outro lado, levanta-se uma dúvida: se Magalhães morre a meio caminho, nas
Filipinas, não deu apenas meia-volta ao globo? Verdade. Mas também é certo que,
ao serviço do rei de Portugal, já servira nas partes das Índias, combatido ao
lado de Afonso de Albuquerque na conquista de Malaca, em 1511, e – segundo
alguns documentos da época – terá seguido com o amigo Francisco Serrão até às
ilhas de Maluco, no mesmo meridiano das Filipinas.
Ou
seja, Fernão Magalhães abraçou o mundo em duas partes, com o braço direito ao
serviço de Portugal, com o braço esquerdo, ao serviço de Espanha. E foi ainda o
mentor da viagem que, dadas as razões apresentadas, cumpriu a primeira
circum-navegação de uma só tirada. Uma viagem que começou a 20 de Setembro,
cumprem-se agora 500 anos. Comemoremos.
João Morgado é escritor, autor do
romance biográfico “Fernão de Magalhães e
a Ave-do-Paraiso”, Esfera dos Livros, 2019 (www.joaomorgado.net)
COMENTÁRIOS:
Ricardo Saldanha: A tese de que, se Magalhães não tivesse morrido, teria regressado voltando
para trás é completamente descabida, porque os ventos alísios do Pacífico
obrigariam naus em más condições a navegar pelo Pacífico Sul junto aos
icebergs: um suicídio em que Magalhães não se iria meter seguramente. O mais
provável é que Magalhães, sabendo que o lugar em que se encontrava era perto da
Malásia (o escravo malaio conseguia comunicar com os nativos), iria voltar por
mares dantes navegados mesmo correndo o risco de ser apanhado.
Rodrigo Pires: Parabéns, João Morgado
Só esqueceu de informar, que o Magalhães é tratado
como um herói no Chile.
João Silva Cirne: Interessante
era adivinhar onde é que Elcano terá tomado consciência que tinha
circum-navegado. Magalhães morre em Cebu. Elcano abandona as Filipinas em
direcção ao mar de Celebes. Elcano não parou nem no mar das Molucas nem no mar
de Banda, infestado de Portugueses. Talvez neste limiar, no mar de Celebes,
Elcano tenha compreendido onde estava e tenha sabido que tinha dado a volta.
Oliver Klein: A missão nunca foi a circum-navegação, mas a verificação e aferição das
Molucas no mapa das pertenças ibéricas. O regresso estava previsto pela mesma
rota. E tal só não aconteceu por redução drástica de meios (de 4 navios para 1)
que praticamente inviabilizava o cumprimento da missão.
Decidiu, pois, um espanhol sobrevivente a Magalhães que a missão só
teria probabilidade razoável de êxito se rumassem a Oeste por mar português. Ainda
estiveram detidos no golfo da Guiné, mas acabaram por seguir para Espanha após
algumas tramitações diplomáticas. Em
Portugal insistiu-se longamente numa versão falseada dos factos e condenada
pela História.
Jose Neto: Finalmente, temos a história bem contada!
Rui Rebelo: A circum-navegação foi um acaso o que não invalida a sua grandiosidade,
pois navegar pelos mares da India e África cheios de Portugueses estava fora de
questão para os Espanhóis, se não fosse isso, Fernão fazia-o com uma perna às
costa pois ele já conhecia bem esses mares. Mas lá conseguiram!
victor guerra: Ideia de português, comprada pelo rei de Espanha e terminada por um
espanhol. Tal como a de Colombo ,uma medalha para os vizinhos.
Fernando Pessoa
(VIII. FERNÃO DE MAGALHÃES (MENSAGEM, II PARTE, “Mar
Português”)
VIII
FERNÃO DE
MAGALHÃES
No vale clareia uma fogueira.
Uma dança sacode a terra inteira.
E sombras disformes e descompostas
Em clarões negros do vale vão
Subitamente pelas encostas,
Indo perder-se na escuridão.
De quem é a dança que a noite aterra?
São os Titãs, os filhos da Terra,
Que dançam da morte do marinheiro
Que quis cingir o materno vulto —
Cingi-lo, dos homens, o primeiro —,
Na praia ao longe por fim sepulto.
Dançam, nem sabem que a alma ousada
Do morto ainda comanda a armada,
Pulso sem corpo ao leme a guiar
As naus no resto do fim do espaço:
Que até ausente soube cercar
A terra inteira com seu abraço.
Violou a Terra. Mas eles não
O sabem, e dançam na solidão;
E sombras disformes e descompostas,
Indo perder-se nos horizontes,
Galgam do vale pelas encostas
Dos mudos montes.
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