Mas há uns mais Césares do que outros.
Há os que querem o poder para bem do país, há os que o querem para bem de si
próprios, como nas Áfricas se viu e se vê.
Uma boa página da História de Israel, a
respeito de Benjamin Netanyahu, que pertence ao primeiro grupo, inteligente que
é. Relatada por ESTHER MUCZNIK.
OPINIÃO
César pode ser Deus?
Se Netanyahu for obrigado a abandonar
o poder, o que é tudo menos certo, deixa um país economicamente desenvolvido,
mas também uma sociedade fracturada entre religiosos e laicos e assente numa
falsa segurança.
ESTHER MUCZNIK
PÚBLICO, 24 de Setembro de 2019
Se o laico
Benjamin Netanyahu conseguir formar governo, Israel ficará – mais
ainda – refém dos partidos ultra-ortodoxos que são o principal ingrediente da
aliança contranatura que está na base da sua coligação. Mesmo tendo fracassado pela segunda
vez no seu principal objectivo, o ainda primeiro-ministro tentará
tudo por tudo para continuar a ser o “rei” de Israel e escapar assim à justiça
que o espera.
Mas
este é talvez
o fim da sua era. Apesar do apoio de que ainda goza, a sociedade
israelita recusou dar-lhe carta-branca, incluindo a minoria árabe que, votando
massivamente, contribuiu para o impasse. Se Netanyahu for obrigado a
abandonar o poder, o que é tudo menos certo, deixa um país
economicamente desenvolvido, com uma das maiores taxas de inovação do mundo,
mas também uma sociedade fracturada entre religiosos e laicos, e assente numa
falsa segurança baseada num status quo que mais tarde ou mais cedo
deixará de o ser, pondo em causa o carácter judaico e democrático do
Estado de Israel.
Em
minha opinião, o mais grave problema da sociedade israelita é interno e está
relacionado com a existência de partidos religiosos e com a promiscuidade entre
religião e política. É um problema que não é de agora. Apesar do direito
israelita não ser um direito religioso e a Declaração de Independência
assegurar a diversidade e a liberdade religiosa de todos os cidadãos, na
tradição judaica nação e religião estão intimamente ligadas e o compromisso com
o sector ortodoxo data do nascimento do Estado de Israel. Para David
Ben-Gurion, tratava-se acima de tudo de evitar uma “guerra” entre laicos e
ortodoxos, que aliás nunca deixou de existir. Todas as
questões de ordem religiosa judaica são da responsabilidade do Grão-Rabinato,
co-presidido por dois grão-rabinos, sefardita e asquenaze, ambos funcionários
públicos e reconhecidos como “única autoridade em matéria de Lei Judaica”.
Esta
“intimidade” entre a religião e o Estado com consequências no quotidiano dos
cidadãos pode ser compreensível à luz da história do povo judeu e da vontade de
preservar a sua identidade e unidade em Israel e na diáspora. Mas o judaísmo ortodoxo soube explorar até ao
limite esta ambiguidade original, nomeadamente organizando-se em partidos
cuja influência política sempre foi muito maior do que o seu peso eleitoral e
através dos quais obtinha concessões exorbitantes, no campo religioso, social e
educacional.
Apesar
de tudo, até à “Guerra dos Seis Dias” e à Guerra do Yom Kipur, a relação
manteve-se estável e o status quo equilibrado, sem que os partidos
religiosos interferissem demasiado na vida política. Esta situação começou a
mudar na década de 1970 quando ganha vigor uma mistura de integrismo religioso
e de nacionalismo agressivo alimentada nas últimas décadas pelo recrudescimento
religioso e fundamentalista, particularmente no mundo médio-oriental.
Esta
questão tem-se agravado drasticamente devido ao sistema eleitoral israelita,
directamente proporcional, que garante desde o seu início a representação de
todos os grupos étnico-religiosos e partidos políticos. No entanto, essa
representatividade quase absoluta que no início do Estado permitia uma melhor
integração das componentes sociais é responsável pela fragmentação partidária
do país, assim como mais tarde pela necessidade de negociação permanente e de
compromissos políticos para governar.
A
separação entre o Estado e a religião é uma condição indispensável a qualquer
Estado democrático, à liberdade e ao pluralismo religioso. Mas não é apenas do
ponto de vista individual ou colectivo dos cidadãos que a laicização do Estado
é importante. É também do ponto de vista religioso: a promiscuidade com o poder
corrompe a religião. Dir-se-á que
mesmo nos países mais democráticos a religião nunca
está muito longe do poder, seja por necessidade, ou por outros motivos. Em Israel, a proximidade do poder e a sua
dependência tem levado à perversão da essência do judaísmo: arrogando-se o
direito de decidir quem são os bons e os maus judeus, ou até quem é judeu ou
quem não é; reclamando direitos que mais nenhum cidadão beneficia como o de não
participar no exército ou o de ser subsidiado pelo Estado, ou seja, pelo
conjunto da sociedade, para não trabalhar e poder apenas estudar; privilegiando
a ritualização em detrimento da ética e decretando quais são as boas e más
comunidades judaicas da diáspora, os partidos religiosos ultra-ortodoxos acabam
por promover assim uma forma de racismo interno e externo que fractura e
dilacera a sociedade israelita, mas também o próprio mundo judaico.
Pela
sua própria história atribulada, não há no judaísmo nenhuma hierarquia
religiosa, nem nenhum “Vaticano”. A liberdade de praticar ou não a religião ou
a forma de a praticar é intrínseca à liberdade de consciência individual ou
colectiva e um direito fundamental. A própria sociedade israelita espelha essa
realidade multifacetada do ponto de vista religioso: judeus ultraortodoxos,
ortodoxos, conservadores e reformistas de vários tipos, laicos ou ateus, para
além evidentemente de árabes cristãos ou muçulmanos, drusos e beduínos… O sonho
de todos os integrismos é o de uma sociedade totalmente regida pela lei divina. Mas César não é nem nunca será Deus, mesmo
que se arrogue esse direito.
Aproxima-se
a celebração do Ano Novo judaico, o Rosh Hashaná, que marcará a entrada no ano
de 5780 do calendário judaico e durante a qual um dos elementos da ceia festiva
é o mel para que o ano seja doce... E porque os bons votos nunca são demais,
aproveito para desejar a todos, judeus e não-judeus, um feliz e doce ano novo!
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