De resto, não é nada a que não estejamos
habituados, nessa coisa dos “espetantes” como atributo dos divórcios, são estes
perfeitamente perfuradores dos equilíbrios sociais, mais do que esperançosos de
equilíbrios familiares. Daí que as expectativas (/espetativas) para o
desgraçado e divorciado do c, a breve trecho, extraído o c como enfeite
inútil de uma língua que se deseja simples, pertencente a um povo que se
reconhece frouxo, o desgraçado e de pronúncia aberta que o c resguarda, sumir-se-á numa
mudez envergonhada, extraído este, como bem explica Nuno Pacheco, das poucas entidades a tentar perfurar
ainda a camada bafienta da nossa miserável e serviçal incúria e arrogância
traiçoeira.
OPINIÃO
A triste história da vogal que foi
separada de uma consoante e emudeceu
São novas pronúncias que ditam as duplas
grafias ou as duplas grafias é que andam por aí a inventar pronúncias?
PÚBLICO,12 de Setembro de 2019
Amanhã é sexta-feira 13, o MOTELX já divulgou a sua ementa de terrores
para entreter um público que
gosta de ser assustado e o momento parece ser propício para contar esta
história. Mas não a deixem ao alcance das crianças e, se a forem ler em voz
alta, mandem-nas antes para a cama. Aqui vai. Era uma vez uma vogal e duas
consoantes que viviam como irmãs, felizes a seu modo, respirando o mesmo ar e
partilhando espaços contíguos na casa a que chamavam Palavra. As consoantes
eram quase gémeas e portavam-se como tal. Sempre juntas, as suas vozes
ouviam-se com clareza, num tropeço perto do uníssono. A ponto de as
considerarem inseparáveis e lhes porem uma alcunha adequada: dígrafo. A vogal,
sempre junta àquela parelha, e em harmonia com ela, fazia-se ouvir com
distinção. Felizes, as três. Até que, numa noite, sem que as outras se
apercebessem, estranhos entraram em silêncio na casa, amordaçaram uma das
consoantes, a que estava mais perto da vogal, e levaram-na para lugar
desconhecido. Consta que a torturaram, para a obrigar a confessar as razões da
sua existência, e que, nada obtendo em confissão, a mataram, ocultando depois o
seu cadáver. Mas diz-se também que a encerraram numa masmorra escura, onde ela
definha, na esperança de um salvamento que tarda. Depois daquele dia, a
consoante ainda foi conseguindo fazer-se ouvir, mas a vogal perdeu alento e alma,
viu-se reduzida a um fio de voz e emudeceu.
Esta
história vem a propósito de algo que
Marcelo Rebelo de Sousa (Presidente da República) disse na sua última aula como
professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, onde
leccionou desde 1972, fez agora um ano, em 20 de Setembro de 2018. Alguém o
acusou de ter emudecido o “e” e suprimido o “c” em “expectantes”, ao pronunciar
a seguinte frase: “Como conhece a legítima impaciência dos seguidores, sempre
atentos à vaga, cada vez mais avara, essencial para os seus expectantes
projectos de existência”. Mas, ouvindo com atenção (do minuto 19:05 ao 19:16 do discurso) percebe-se que ele disse
“expètantes”, abrindo o “e”.
Mas,
ainda assim, “expètantes” soa estranho. Se formos ao Vocabulário de Mudança do ILTEC, que indica o que mudou após o
Acordo Ortográfico de 1990 (AO90), mas com a curiosa nota “todos os países
exceto o Brasil”, veremos que aplicaram dupla grafia a estas palavras:
expectação, expectador, expectante, expectar, expectativa, que passaram a poder
ser escritas “expetação”, “expetador”, “expetante”, “expetar”, “expetativa”.
Esta “regra” foi adoptada igualmente pelos vocabulários das academias
portuguesa e brasileira e pelo vocabulário do IILP. Porém, o Priberam
brasileiro pós-AO90 (edição para Kindle) só admite a grafia com o dígrafo “ct”.
Já noutro conjunto de palavras próximas, na sequência alfabética,
“expetoração", “expetorante", “expetorar", estas
surgem sem o “c”, indicando que essa é a grafia brasileira e que em Portugal,
antes do AO90, se escrevia expectoração, expectorante, expectorar (o ILTEC e
seguidores só admitem para Portugal, neste caso, “expetoração”, “expetorante” e
“expetorar").
Mas
se formos à página 1644 do Dicionário da Academia das Ciências de Lisboa (o de
Malaca Casteleiro, pré-AO, que a Verbo editou em 2001) veremos que para tais
palavras, já que este dicionário tem indicações de ortoépia (forma correcta de
dizer), não há dupla pronúncia em expectação, expectador, expectante, expectar,
expectativa (devendo ler-se sempre “pèkt”), enquanto em expectoração,
expectorante ou expectorar se deveria omitir o “c”, lendo-se “pèt”.
Voltando
aos “expètantes” do discurso de Marcelo: estaremos perante um dilema do género
“o que nasceu primeiro, o ovo ou a galinha”? Foi uma nova pronúncia que ditou a
dupla grafia ou é a dupla grafia que anda por aí a inventar pronúncias? A
segunda hipótese tem maior consistência, como se verá. E a confusão é mais do que muita. Só para dar um
exemplo da salada ortográfica que nos é servida diariamente, o jornal A Bola (obrigado, João Barroca, pela recolha cirúrgica e
atenta!), numa série de notícias recentes, usa as palavras “expetativa” (duas vezes), “expetativas” (3), “expectativa” (quatro) e “expectativas.
Errado? Não, tudo certo. Duplas grafias são para se usar a eito, à vontade do
freguês. E duplas pronúncias?
Num
excelente texto intitulado Contestação do Acordo
Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, datado de 2011-12,
António Blanco, da Sociedade da Língua Portuguesa, escreveu: “A nossa oposição
deve recair na tentativa de abolição das consoantes ditas mudas, c e p, presentes nas sílabas pré-tónicas. Estas
consoantes influem na prolação das vogais que as antecedem, abrindo-as, com
clara distinção sónica, como se pode comprovar na pronunciação de vocábulos
como: ‘concepção’, ‘recepção’, ‘corrector’, ‘espectador’, os quais, sem a
presença das referidas consoantes, facilmente passarão a ser pronunciados com a
vogal muda, seguindo uma tendência típica do português europeu, na sua forma
oral, que come letras, omite ou silencia as sílabas átonas (…).” Assim,
aquelas palavras “acabarão, com alta probabilidade, pronunciadas,
respectivamente, como concessão, recessão, corretor e espetador (aquele que
espeta)”. Ou “expetante”, que o “e” aberto emudecerá. É ele, aliás, a vogal
desta triste história.
COMENTÁRIOS
mzeabranches, 12.09.2019: A cegueira e a surdez da nossa classe
política mantêm-se. Seria normal que, pelo menos, começassem a interrogar-se,
sobre as consequências da imposição do AO90 à língua de Portugal... Mas não,
continuam a ignorar ostensivamente a questão, e ninguém parece ter a coragem
necessária para enfrentar e procurar resolver a situação a que conduziram a
nossa língua! As eleições aproximam-se e ainda ninguém, em nenhum debate, se
lembrou simplesmente de abordar a questão do AO90: nem políticos, nem
jornalistas, nem comentadores! Escusam de contar com o meu voto os promotores
do novo analfabetismo: mostra-me como escreves, dir-te-ei quem és!
Luis Morgado, 12.09.2019: Mais um bom texto de Nuno Pacheco. É preciso
demonstrar que o Acordo Ortográfico foi uma "solução" para um
problema que não existia.
José Almeida, 12.09.2019: A história da vogal e das duas
consoantes que viviam juntas e felizes ilustra, quanto a mim exemplarmente, o
que aconteceu: estou a ver o Buick preto, saído de um romance de Le Carré, e os
gigantes vestidos com fatos, gravatas e chapéus negros que de lá saíram, numa
noite escura, fria e mergulhada em nevoeiro, e que raptaram a pobre consoante
mártir, a mando de um gabinete secreto, muito distante do nosso mundo
quotidiano: algum dia perceberão que a língua não evolui por Acordos e para
mais não ratificados por todos, ou mesmo "desertados"? Que estranhos
e toldados sonhos "imperiais"...
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