Uma crónica de MJ Avillez sobre as suas férias de verão, que são
sempre um prazer ler, de tal maneira ela nos vai dando conta da sua elasticidade
e elegância culturais que nos fazem espreitar com gosto os seus requintes
veraneantes. Uma crónica simpática de Francisco
Assis, sobre a virtuosa Catarina Martins , sobre a virtuosa Catarina Martins que em boa altura surge transformada em social-democrata,
segundo afirmação da própria e confirmação do cronista, que com isso nos tira
um enorme peso do corpo – o do receio das próximas explosões da nossa
teatralidade habitual, e a certeza, com tal transformação, de que todos
trabalharão em comunhão para benefício do país e, sobretudo do nosso chefe
António Costa, o tal guardador….
I - CRÓNICA: O
Verão /premium
Quando as coisas “impossíveis” acontecem é como um
certificado: sabemos que podem acontecer e por isso, voltar a acontecer. O
desconsolo é maior que o consolo.
1. Durante
longas semanas vi o fantasma
do Verão galopar à
minha frente sem nunca o apanhar. Estranha corrida. Se no Oeste o Verão sempre
caprichou, este ano a cor do céu e a zanga do vento transfiguraram-no no
ausente desejado (e não só nas minhas moradas). Para alguém que espera pela
“única estação” como por ”outra vida” e se vê desconsoladamente sem ela, não
sei se foi mais injusto que triste. Onde estavam os dias sem fim, a luz, as
noites quentes e os pés descalços? O solo acre de calor, a vida ao relento, ar
quente da esteva cobrindo as dunas, o cheiro a maresia? O mar e as ondas e a
volúpia disto tudo? O desconsolo foi sempre maior que o consolo. Quando as
coisas “impossíveis” acontecem é como um certificado: sabemos que podem
acontecer e, por isso, voltar a acontecer. Fica-se desconfiado. E como bem sabe
quem é do mar, sem o mar fica-se fora de pé e de sentido. Na cinza das manhãs
ou no frio das tardes fui-me virando para outras coisas, descobri algumas,
coleccionei outras. Depois guardei-as, a elas, às pessoas com quem me cruzei,
aos lugares onde estive. Passara Julho, morria Agosto, entrava Setembro e o Verão foi-me calhando assim.
2. Sorte
minha, calharam-me as mãos de Artur Pizarro. Um deleite,
num pequeno palco em Óbidos. Bach e Schubert tocadas num fôlego onde técnica e
talento se diluíam com o mesmo grau de felicidade, o que talvez seja dizer
muito sobre um pianista. Estava-se em Julho, na Semana Internacional de Piano
de Óbidos (SIPO) que – mistério! — tendo vida demasiado discreta e holofotes
renitentes, é apesar disso invariavelmente frequentado, desde há duas décadas,
por plateias de melómanos, turistas civilizados, curiosos musicais.
Muito diferente de Londres para onde só a ausência do Verão me projectaria em
Julho e onde a plateia era polifónica mas a trama e a fama do “Lehman Trilogy”
impuseram o breve desvio geográfico. A história dos irmãos Lehman — isto é, a
extraordinária história dos alvores do capitalismo — contada com rigor, minúcia
e um interesse sempre aceso, estreou-se no National Theater há duas épocas. A
seguir viajou para N.Y. e no regresso foi catapultada pelo West End com o mesmo
estrondoso e estridente acolhimento. Ainda mais que o óptimo texto do italiano
Stefano Massini e ainda mais, se possível, que a pasmosa representação — ah, os
actores ingleses… — o segredo e a chave deste “acontecimento” chama-se Sam
Mendes. Foi este homem da cena e do écran que com um golpe de asa que o
inspirou a ser tão vertiginoso quanto prodigioso na sua encenação, nos “deu a
ver” — mas tão brilhantemente — uma história que durou 163 anos e não deixou
ninguém indiferente. E levando três (só três…) actores geniais, a
permanentemente se desmultiplicarem, na pele de homens, mulheres, crianças,
jovens, velhos, sem nunca saírem, por um minuto que fosse, de um
cinematográfico cubo giratório onde, durante quase quatro horas, mora esta
saga. Memorável.
3. Olhei
sempre José Honorato Botelho como um patriarca não pelo porte ou a cabeça branca
mas pelo que foi fazendo da sua vida que poderia dar um livro se os portugueses
(se) escrevessem. Confundem-se ambos, ele, os Açores, paisagem amada e mar que
sempre procuro nos verṍes e este ano lá voltamos. José Honorato e o seu “Monte
Simplício”, na ilha de S. Miguel também são indesligáveis: casa antiga, tapetes
de hidranjas, plátanos centenários, criptomérias. Antiguidade. Alma. E uma
largueza a perder de vista nesta ilha onde os Botelhos sempre tiveram pedra e
terra. Biólogo de excelência, professor já jubilado com obra publicada,
fazendeiro – vive há quase quarenta anos numa imensa fazenda no Estado de S.
Paulo — e anfitrião generosíssimo lá e nos Açores, rendi-me há muito a este
sábio das coisas da vida que tão bem conta boas histórias: as suas — onde
sempre desaguam Portugal e o Brasil — e as dos outros, gente interessante com
quem se cruzou ao longo dos anos. Conversar com ele torna o ambiente, as
pessoas e as coisas subitamente mais amáveis. Aconteceu de novo este ano. Com
a chuva deixando uma transparência aquosa na mais bela das mais belas paisagens
portuguesas.
4. O Verão faltou à chamada mas – tenho de ser justa — houve algumas boas
ondas no mar da “única estação”. Mas nem o Baleal, nem outros mares atlânticos
da minha predilecção que procurei com bom ou mau tempo estiveram, nem de longe,
à altura da formidável reputação que merecem. Só a encontrei em águas
açorianas (Água de Alto, Santa Bárbara…)
onde as ondas se enrolavam como se jamais se viessem a desenrolar, connosco lá
dentro, num borbulhar de sal e maresia. Os banheiros que o digam. São eles os
meus grandes interlocutores nestes meses e não há praia onde vá onde não me
entretenha em conciliábulos sobre a espantosa coreografia pela qual zelam com
uma autoridade que não ouso pôr em causa: praia mar, baixa mar, ventos, ondas,
marés, fundões, correntes, tudo entrelaçado num bailado que só os banheiros
conhecem e eu não sei dançar como eles. Costumo obedecer-lhes e às vezes
ocorre-me mesmo pedir -lhes que “fiquem de olho” nesta festa. Não sei se Ruy
Belo gostava das ondas como eu. Mas sei que ele sabia porque é que o Verão era
a “única estação”.
5. Em
dias tingidos pela implacável meteorologia de Agosto, alguém acendia por vezes
a televisão. Foi assim, na surpresa de um zapping meio preguiçoso que me cruzei
com o professor João Paço,
no écran. Um senhor. Conheço-o bem. Não por ser um dos melhores otorrinos do
país, ou meu médico há décadas, por ter sido maratonista internacional de
excelência ou benfiquista dos quatro costados. Não, conheço-o -e por isso deixo
registo — pela rara “substância” de que é feito. A vida amplia-se com gente
assim. Houve prémios, claro, muitas distinções e louvores (daqui a dias
ser-lhe-á dada, pela Ordem dos Médicos, a mais alta condecoração atribuída a um
médico, e é um dos muito poucos portugueses a ter recebido o Prémio de Honra da
Academia Americana de Otorrinolaringologia) mas ele não cabe em homenagens nem
elas abarcarão o que ele é e o que ele fez: o seu entendimento de “serviço”, a
dimensão que lhe emprestou, a plasticidade generosa e muito inteligente com que
o praticou, o uso que fez de si em nome dos outros (há anos que vai a S. Tomé e
Príncipe por sua conta e risco tratar crianças). Após 50 anos de médico e
académico (professor catedrático Nova Medical School), acaba de se jubilar e a
sua última “lição”, ocorrida recentemente, ficará inscrita como imagem forte do
meu fraco Verão. Com altíssima qualidade científica, intelectual, humana, não
leu, contou uma vida bem escolhida: o saber nunca desligado da exigência e da
generosidade. A medicina foi-lhe a única vocação, “quando sabia que não podia
curar, sabia que poderia sempre melhorar”. E o ensino, claro, “um médico tem de
ensinar!”. João Paço procurou assim “replicar no seu pequeno hospital o que
tinha visto e feito em Santa Maria” onde muito exerceu e leccionou. Replicou e
bem: “com a minha força e empenho, a ajuda da Administração do Hospital da CUF
e dos colegas da minha equipa criei as condições para chamar a atenção da
Universidade, ter alunos e mais tarde Internato Médico e alunos de
Doutoramento. Julgo sermos um caso único no país neste domínio.” Sorriso feliz:
“e em tão pouco tempo…”.
6. Nunca
entre nós se quebrou o fio da amizade, podíamos vermo-nos muito ou pouco nas
nossas vidas. Começou a tecer-se na Rua Duque de Palmela onde o André
Gonçalves Pereira tinha o seu
escritório, a mesma minúscula rua onde então se albergava o Expresso, meu local
de trabalho na altura. O tempo transformou a amizade numa “entente”
sentimental, tão cúmplice que acolhia ora discordância — com a mesma filosófica
bonomia, por vezes cáustica ironia –, ora a concordância, mas sempre tingida
por uma mesma e recíproca ternura. Durante meses e meses, quando por vezes ia
almoçar com ele à sua casa da Marinha, fui insistindo com veemência para que
falasse comigo diante de um gravador, vivera “pas mal de choses”. Que não. Este
Verão transformou agora esse “não” num “nunca”. Mas partir no Verão é ainda
mais triste, a “única estação” não é feita para despedidas como esta do André.
II
- OPINIÃO: A “renegada” Catarina e a
Social-Democracia
O que há de novo e de substancialmente
relevante no presente é o facto de Catarina Martins se ter atrevido a proclamar
a opção pela social-democracia. Acho que fez bem.
Numa
entrevista ao jornal Observador a líder do Bloco de Esquerda, Catarina
Martins, afirmou o seguinte: “Os partidos também têm projectos para os tempos
históricos que vivem. O Bloco de Esquerda apresenta um programa, às vezes as
pessoas ficam um pouco chocadas, mas eu acho importante dizê-lo que é, na sua
essência, um programa social-democrata.” Se as palavras ainda têm algum
significado na nossa vida política, e presume-se naturalmente que tenham, esta
declaração constitui um dos acontecimentos mais relevantes ocorridos nos
últimos tempos no nosso país. Façamos um breve exercício de decomposição
analítica das afirmações proferidas por Catarina Martins. Ela começa por dizer
que o BE é portador de um projecto adaptado a uma circunstância histórica
precisa anunciando, assim, um certo pragmatismo político; logo de seguida
salienta o carácter chocante, mas igualmente importante, da novidade que irá
transmitir; esta consiste na divulgação de que o programa do BE é, na sua
essência, de teor social-democrata. Não estamos perante algo de acidental, de
subsidiário, de meramente parcelar – estamos perante uma opção substancial pela
social-democracia. É natural que Catarina Martins admita a perplexidade de
alguns e valorize a singularidade do acto verbal praticado. Sem sombra de
dúvidas estamos perante uma novidade na vida política portuguesa.
Registada
a afirmação, que por si própria detém já um extraordinário significado
político, convirá averiguar acerca do grau de conformidade da mesma com a
realidade. Convenhamos que não é tarefa fácil, dado o carácter polissémico da
noção de social-democracia. Se nos ativermos a uma compreensão restritiva da
social-democracia dificilmente a poderemos ver representada em Portugal seja
por quem for. Teremos, por isso, de optar por uma acepção mais lata do referido
conceito em harmonia, de resto, com o que é habitualmente praticado. Nessa
perspectiva parece-nos interessante a fórmula desenvolvida por Anthony
Crossland, um histórico dirigente e intelectual do Partido Trabalhista
britânico, que consistia no seguinte: social-democracia= liberalismo político +
economia mista + Estado Providência + política económica keynesiana + promoção
da igualdade. Crossland afirmava isto nos anos 50 do século passado. Para trás
já tinham ficado o revisionismo de Bernstein e a reinterpretação do marxismo
levada a cabo por Kautsky no interior do mais importante partido
social-democrata, o alemão. Bernstein, conotado com a ala direita da
social-democracia alemã, ousou romper com o dogmatismo marxista, antepondo a
ética kantiana à dialectica hegueliana, e reconhecendo inegáveis méritos à
democracia parlamentar e à própria economia capitalista. Kautsky, principal
figura da social-democracia europeia do seu tempo, sem romper abertamente com o
pensamento marxista, formulou duríssimas críticas ao bolchevismo e à ditadura
do proletariado promovida pelo mesmo na União Soviética, o que originou um
violentíssimo ataque contra si da parte de Lenine. Tanto este como Trotsky
elaboraram documentos doutrinários e desenvolveram acções históricas concretas
absolutamente antagónicas a tudo quanto, pelo menos a partir de 1914, era
preconizado pela corrente social-democrata em toda a Europa. O confronto entre
comunistas e social-democratas marcou praticamente todo o século XX. Lenine na
sua obra panfletária A Revolução Proletária
e o Renegado Kautsky deu o mote para uma longa campanha de acusações infames
dirigida ao movimento social-democrata. Por seu lado, este movimento, nas suas
diversas manifestações nacionais, nunca se coibiu de denunciar a identidade
totalitária dos regimes comunistas. É certo que, hoje, reduzidos a escombros
esses regimes e ressurgida a tentação da extrema-direita, o quadro cultural e
político é significativamente diferente e apela a respostas inovadoras.
Neste
novo contexto histórico caberá, então, perguntar se o Bloco de Esquerda é
enquadrável no espaço da social-democracia. Não o foi claramente no seu início por opção
própria, que terá tido a ver com a natureza das organizações partidárias que o
fundaram e com o pensamento e os percursos políticos dos seus principais
dirigentes. A verdade é que o Bloco de Esquerda se foi paulatinamente
transformando e é hoje um partido político com características bem distintas
daquelas que apresentava aquando da sua génese. É um partido reformista, que
valoriza a democracia parlamentar, promove a luta pelos direitos humanos em
todo o mundo e convive, ainda que com alguma dificuldade, com a economia de
mercado. O facto de preconizar um amplo programa de nacionalizações ou a
renegociação da dívida pública confere-lhe um tom de radicalismo político notório,
compatível porém com um posicionamento mais à esquerda no campo da tradição
social-democrata europeia. Acresce a isto que o Bloco de Esquerda sempre
procurou associar-se a um conjunto de temas e causas, convencionalmente
designados por pós-materiais, que têm sido igualmente reclamados por vários
partidos social-democratas no espaço europeu.
Poder-se-á
assim concluir, sem mais, que assiste razão a Catarina Martins quando esta
apregoa como social-democrata o programa eleitoral que propõe ao país? A meu
ver, a resposta só pode ser afirmativa, levando até em consideração a fórmula
de Crossland acima enunciada.
O
que há de novo e de substancialmente relevante no presente é o facto de
Catarina Martins se ter atrevido a proclamar a opção pela social-democracia.
Acho que fez bem. E eu que aqui tantas vezes no passado ataquei o Bloco de
Esquerda sinto-me agora compelido a saudar tão significativo passo.
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