Mas tudo tem conserto. Quando forem para
o lar, já não precisam dela, da caderneta, para nada. Afinal, as cadernetas,
tão vistosas, o último brinquedo dos velhos – e eu bem os encontro, na caixa,
no dia do vencimento, a fazer como eu, a actualizar a conta em que se revêem,
que às vezes até serve para se tirarem dúvidas, sobre os débitos e os créditos
das memórias desasadas, como o perdigão que perdeu a pena, querendo voar a uma
torre alta demais – as cadernetas vistosas não passam dum luxo inútil, com
reflexos na floresta, mais até do que os incêndios… Temos que ser poupados, são os velhos que dizem. A Banca não faz mais que cumprir.
BANCA: As costas largas da
Europa nas cadernetas da CGD/premium
HELENA
GARRIDO, OBSERVADOR, 16/9/2019
As novas regras de pagamentos
bancários têm como objectivo reforçar a segurança nas transacções digitais.
Qual o efeito mais visível em Portugal? Nas cadernetas da CGD. A Europa tem as
costas largas.
São
300 mil pessoas, a maioria delas idosas, 290 mil das quais com conta na CGD que
usam uma caderneta para actualizar os seus movimentos na conta
bancária e para levantarem dinheiro. Desde dia 14 de Setembro estão
impedidas de o fazer “por causa de legislação europeia que reforça os critérios
de segurança” – dizem os bancos envolvidos que, além da CGD são o Montepio e o
Crédito Agrícola. A alternativa que colocam a estas pessoas é terem um cartão e pagarem por ele.
Mas
isto faz sentido? Legislação europeia sobre serviços de pagamentos, numa era
digital, a ter o seu maior e visível efeito nos idosos que não se conseguiram
libertar da caderneta da Caixa? E no resto da banca não aconteceu nada?
(Sim
vai acontecer, anunciou-me o banco de que sou cliente: no domingo dia 15 de
Setembro, avisa-me que desde dia 14 estão em vigor novas regras de acesso aos
serviços online do banco, de reforço da segurança, e que estão a mudar agora as
coisas. Para os clientes que tinham caderneta mudaram logo as regras dia 14,
tal devia ser o risco de segurança.)
Mas vamos lá à história da famosa
legislação europeia.
A Directiva sobre Serviços de Pagamentos, que revê a primeira,
foi publicada em finais de 2015 e aqui podem ver-se alguns esclarecimentos dados
pelo Banco de Portugal. Mais tarde, em 2017, a Comissão Europeia publica um Regulamento que
pretende complementar a Directiva. Em Novembro de 2019 o Governo transpõe a
Directiva para a legislação portuguesa. Para
quem possa estar esquecido, as Directivas europeias são em regra princípios e
objectivos gerais que dão aos governos dos Estado-membros margem para construírem
regras adaptadas a cada país. É o famoso princípio da subsidiariedade. Nem que fosse por isso, já existia aqui margem
para suspeitarmos que o fim das cadernetas, como meio para levantar dinheiro,
não podia ser “culpa” da União Europeia. Como nunca foi “culpa” da União
Europeia o fim dos galheteiros – íamos a Espanha e lá estavam eles. A culpa,
com muita frequência, é do legislador português que, por incompetência,
desleixo ou outra razão pior, não respeita – por vezes até parece odiar – a
cultura do povo de que faz parte.
Mas
quando olhamos com mais pormenor para o que é esta legislação europeia, a nossa
perplexidade aumenta. De facto, a directiva sobre serviços de pagamentos só
com muita boa (ou má) vontade tem a ver com a segurança das cadernetas que, ou
foram sempre inseguras, ou não podem ter passado a sê-lo por causa desta
directiva.
Os
principais objectivos das regras que a União Europeia definiu são,
resumidamente: reforçar a segurança das transacções e pagamentos online;
criar condições de igualdade entre todos os que prestam serviços de pagamentos
(que não são apenas os bancos) e regular os serviços de informação sobre
contas, aspecto relacionado com as aplicações que nos oferecem a possibilidade
de aceder aos dados das nossas contas sem termos de ir à “app” de cada banco.
É
extraordinário como se conseguiu afectar a menos digital das populações
bancárias – a maioria dos que têm cadernetas – com regras que têm como
principal objectivo actuar no mundo bancário digital, ao reforçar a segurança
da banca digital, promover a concorrência entre os bancos instalados e os novos
serviços digitais e regular o que de novo está a aparecer em matéria bancária
digital.
A
cereja em cima deste bolo de mau gosto é dizer a esta população idosa,
desestabilizada com o fim das cadernetas, que a culpa é da União Europeia. Foi
assim, aos poucos, a culpar a União, que se chegou ao Brexit.
Não,
a culpa não é da União Europeia. A culpa é dos bancos tradicionais, que não
sabem como ganhar dinheiro com taxas de juro negativas ao mesmo tempo que a
parte mais rentável do seu negócio é atacada pelas novas sociedades digitais de
prestação de serviços. Quem atacam então os bancos? Os mais vulneráveis, os
idosos, info-excluídos e com os quais nem os partidos em eleições se preocupam.
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