Depois de ter visto “Variações”, revi “Chicago” na Internet, e mais uma vez me deixei deslumbrar pelo musical de Rob Marshall, que pôs em cena figuras conhecidas, como a de Renée Zellweger (Roxie) e Catherine Zeta-Jones (Velma), (ambas no papel de assassinas - do amante e do marido, respectivamente), Richard Gere, (o advogado Billy), C. Reilly, (Amos o marido simplório), Queen Latifah, (a supervisora da Penitenciária "Mama" Morton)… Um musical arrebatador, não só pela música como pelas danças de cabaret, além do desempenho excelente, numa intriga que destacou os bas-fonds de Chicago, de par com os contorcionismos e malabarismos de uma justiça americana corrupta e de uma imprensa bacoca manipuladora da opinião pública. Uma obra-prima da cinematografia – de diversão e de crítica social, disfarçada sob uma aparência alegremente bonacheirona (ou antes, cínica), na voz do advogado (R. Gere) - só possível num país de grande potencial económico – além do velho carisma de “Meca do Cinema” que justifica tal arte, em criatividade e meios coreográficos.
É claro que o filme português não
poderia aspirar a uma dimensão dessas, circunscrito a uma temática de “luta
pela vida artística” num meio artisticamente pobre e convencional em produção
musical, mas o realizador João Maia conseguiu
ignorar a característica que tornou António
Variações vítima de um público tosco, que aproveitava a fama desse “génio
musical” para o “apedrejar” sem piedade relativamente a uma homossexualidade
tão precursoramente exposta. João
Maia
respeitou a personalidade de António Variações
e circunscreveu, no seu filme, essas facetas castradoras (numa altura em que o individualismo
e a democracia davam os primeiros passos reivindicativos das liberdades
pessoais) à relação suficientemente expressiva pelo amigo que abandonara e que
entretanto casara. Como bem frisou RUI CATALÃO, «Aquilo que se ouve neste filme não são as canções que ficámos a
conhecer nos anos 80, tal como foram tocadas e produzidas
pelos músicos dos GNR e dos Heróis
do Mar, mas reinvenções dos esboços dessas canções, a partir
das cassetes que António Variações gravou sozinho ou com músicos amadores.»
O certo é que o filme de João Maia nos dá,
sobretudo, a conhecer, ainda que um pouco truncadamente, (pese embora a carga
dramática entre os dois “condenados de amor”), à luta de um génio musical pela
exposição da sua originalidade musical no mundo, a qual viria a ser reconhecida
em tantas canções que não fazem parte, infelizmente, do “álbum” nele exposto.
CRÓNICA CINEMA
Variações em variações
PÚBLICO, 11 de
Setembro de 2019
Eu
não sei onde estava no 25 de Abril, mas sei onde estava, e com quem estava, no
dia em que soube da morte de António Variações.
António Variações foi o primeiro ícone pop da cultura portuguesa e
julgo não estar a esquecer-me de ninguém se disser que depois dele não voltou a
haver outro (Salvador Sobral não quis surfar essa onda). Se António Variações
fosse apenas um cantor, ou um artista de palco, é provável que a sua aura se
tivesse já extinguido, à semelhança de outros epifenómenos entretanto
esquecidos. Restariam as canções. Mas António Variações ficou célebre de um dia
para o outro. No contexto televisivo em que apareceu, a sua imagem fez
envelhecer as convenções em uso. A sua morte veio encerrar simbolicamente o boom do rock português (seguir-se-ia a via alternativa, que cresceu já longe
do grande público).
Fora
dos programas televisivos, qualquer forma de exuberância estranha à norma que
se arriscasse a subir a um palco em Portugal era uma experiência comparável à
de Cristo a subir o Gólgota. Principalmente para quem não fosse o cabeça de
cartaz. Lembro-me de um concerto em Sintra dos Pop Dell’Arte em que João Peste foi
agraciado por uma chuva de escarros. No contexto
português, a imagem
de Variações era ainda
mais chocante que a de Leigh Bowery e Boy George em Londres, ou a de Klaus Nomi
em Nova Iorque. Num comentário a um vídeo de YouTube, li um testemunho a
recordar uma actuação de António Variações na Feira Popular, onde até pedras
lhe atiraram. Mais abaixo, alguém escreveu o seguinte: “Uma das pessoas que
estavam comigo foi um dos que atiraram pedras e hoje em dia ele arrepende-se
profundamente, todos os anos vai pôr flores na campa dele e pede perdão!” Na
mesma caixa de comentários, esta confissão espantosa: “Recordo de o ver passar
na Rua Angelina Vidal e era ridicularizado por todos, onde me incluo, com todos
os nomes desde ‘maricas’, ‘anormal’, enfim nada de que me orgulhe.” Tenho um
amigo que cresceu na R. de S. José, onde ficava a sua barbearia, e ele
recordava ter assistido a ofensas semelhantes, assim como o estoicismo de
Variações a ignorá-las. Mas deixemos que o tempo extinga os abusos do
anonimato. Esse clima de agressões encontra-se devidamente transfigurado,
transcendido e sublimado nas canções e na iconografia.
Variações, o
filme, dá uma grande atenção aos adereços que participaram na montagem do ícone, mas a construção dramática sustenta-se no processo
criativo em que a música apareceu. Que
eu saiba, a primeira tentativa séria de filmar a música, no momento em que está
a ser criada, resultou em fracasso. As filmagens foram dirigidas por Michael
Lindsay-Hogg (que viria a realizar alguns episódios da série Reviver o Passado em Brideshead), mas a ideia partiu de Paul McCartney: filmar a gravação
do álbum Get Back, dos Beatles. Os ensaios são experiências ardilosas. No
caso das gravações de Get Back, os desentendimentos e irritações aconteceram, claro
está, mas como os músicos estavam a ensaiar em frente às câmaras evitavam
discutir. O mal-estar foi crescendo, o clima tornou-se insuportável e o
projecto acabou por ser cancelado. Terminou numa manhã de Inverno, com os
Beatles a darem o famoso concerto no telhado de um prédio, em Savile Row.
Love
& Mercy, o filme de
Bill Pohlad sobre Brian Wilson, não resultou
em grande cinema e esteve longe de ser um sucesso de bilheteira. Mesmo assim,
conseguiu captar esse tal instante de criatividade a acontecer, e nisso foi até
mais longe do que Milos Forman
na sua abordagem a Mozart, em Amadeus, que marcou
uma época em Hollywood. O que de melhor há em Love & Mercy é
o processo da música a formar-se no “ouvido interno” de Brian Wilson, antes de
se tornar a matéria musical que depois é tocada e gravada. Fora desse
imaginário auditivo, Wilson é apenas um espectro, um mendigo da fama, um
desconhecido até para os irmãos, que tocavam com ele nos Beach Boys.
No filme de João Maia nunca chegamos a ouvir as canções de Variações
tal como as conhecíamos. O que mais interessa ao realizador parece mesmo ter
sido o processo de tentativa e erro na escrita das canções, em que a voz de
Variações vai chocando com a sua falta de formação musical e a dificuldade em
expressar o que pretende dos músicos que o acompanham nos ensaios. Ele foi-se
aproximando muito lentamente desse som entre o fado e a new wave, que imaginava
ligar o Minho a Nova Iorque. Chegou lá por intuição. Por insistência. O
processo de domar as palavras em rimas e versos, de chegar às melodias não foi
menos laborioso e obsessivo.
O
trabalho de Armando Teixeira para o filme não foi bem compor uma banda sonora,
para dramatizar ou criar ambientes, mas servir uma matéria musical aos actores
para construírem as cenas em frente à câmara. Aquilo que se ouve neste filme
não são as canções que ficámos a conhecer nos anos 80, tal como foram tocadas e
produzidas pelos músicos dos GNR e dos Heróis do Mar, mas
reinvenções dos esboços dessas canções, a partir das cassetes que António
Variações gravou sozinho ou com músicos amadores.
Nas
cenas de ensaio, João Maia usa um recurso de câmara oposto ao que usa
quando a personagem está inserida na multidão. Quando ele está numa
discoteca, ou misturado com o público num concerto, a câmara aproxima-se do
rosto de Sérgio
Praia, até o
isolar dos figurantes à sua volta; mas quando canta em estúdio parte de um
grande plano, que abre depois até criar um enquadramento cénico. O trabalho de
câmara sobre a canção faz a ponte entre as suas introspecções e a abertura ao
público.
No
final do filme, plantei-me à porta da sala, a ver os espectadores a saírem: era
quase só gente de meia-idade. Pontualmente, uma criança ou adolescente a
acompanhar os pais. O silêncio, o fechamento dos rostos, fez-me lembrar
os cortejos fúnebres. A morte de alguém conhecido leva sempre a enterrar uma
fatia da nossa juventude. As pessoas dizem que preferiam ver mais episódios da
biografia de Variações, mas a sua biografia está comprimida nas canções: “Perdi
a Memória, turvou-se-me o pensamento, não posso contar a minha história.” A voz
apropriou-se das histórias, tal como veio a apropriar-se da voz de Amália na
canção que lhe dedicou.
Aquela
época foi a do meu crescimento. Os rapazes começaram a pintar o cabelo, a usar
brinco e calças à pirata. Antes de
entrar na puberdade, a minha geração viu as raparigas a mijarem de pé num
anúncio às calças Lois; Suzie 4 e Joan Jett a rockarem em calças de napa, tão
esguias como os Ramones; e viu Duran Duran, Soft Cell, Japan, Classic Nouveau,
Human League, totalmente andróginos, totalmente maquilhados. Foram anos
neo-românticos. Soa pueril, mas na altura foi mais importante do que cantar
os hinos de Abril. A miudagem cedo percebeu que uma revolução pouco muda, se
não for possível mudar de aparência. Aquela barba oxigenada acabou com o tiriririri.
COMENTÁRIO
DCM,
11.09.2019 21: Tenho um amigo que cresceu na R. de S.
José, onde ficava a sua barbearia, e ele recordava ter assistido a ofensas
semelhantes, assim como o estoicismo de Variações a ignorá-las." Neste
período eu tinha um restaurante na Rodrigues Sampaio, chamado "Vento
Norte" onde o António ia regularmente , às vezes acompanhado pelo actor
Carlos Quintas .Gostava de brincar com todos e adorava a comida da minha
mulher, ficava sempre ao balcão onde acabava por adormecer. Quando víamos que
estava na hora de ele ir para a barbearia, tocávamos -lhe no ombro dizendo:
António ! está na hora do banho ! O bom do António acordava sobressaltado
dizendo: quanto devo? quanto devo? Esquecendo quase sempre que a conta já tinha
sido paga. “Uma das pessoas que estavam comigo foi um dos que atiraram pedras e
hoje em dia ele arrepende-se profundamente, todos os anos vai pôr flores na
campa dele e pede perdão!”
Nenhum comentário:
Postar um comentário