O certo é que a ambiguidade do
pensamento de António Barreto quase sempre acompanha a impecabilidade de uma expressão
escrita que nos encanta mas deprime. Na realidade, tão justa e certeira
aparenta ser a sua retórica de argumentação inicial, que repousamos nela a
nossa adesão e gratidão, por uma tal inteligência e sabedoria crítica. Depois,
surge o seu final, o paralelo das liberdades que desejamos, com as que Salazar
nos não deixou ter, e a perfidiazinha do ataque – a lembrar, (ainda que na parcialidade
da sua injustiça) – o outrora, que marcou tantos dos nossos Barretos, com as
suas máculas de totalitarismo a que o seu progressismo foi refractário, ao que
parece - para nos deslumbrar vaidosamente com as suas lições de brilho argumentativo
e retórico, numa honestidade de critério, afinal, mais aparente do que real.
OPINIÃO: Três museus
O Estado democrático não pode tratar
Salazar tal como ele tratou a democracia: proibindo-a! Nós não podemos tratar
Salazar tal como ele nos tratou a nós!
ANTÓNIO BARRETO PÚBLICO, 1
de Setembro de 2019
Há
décadas que intelectuais, artistas, políticos e militares, com relevo para
historiadores e geógrafos, se queixam da ausência de um museu
dos Descobrimentos. Durante
anos, o tema não era controverso, “apenas” faltavam edifícios à altura,
material para lá colocar, orçamento, oportunidade e, como se diz agora, vontade
política. Com um programa próprio, o belo Museu da Marinha está longe de satisfazer. O Padrão não cumpre os objectivos. A maravilhosa Torre
de Belém e os imponentes Jerónimos não se destinam a museu, apesar de poderem dar uma
ajuda. A Casa da Cordoaria
está para ali à espera. Esquerda e direita comungavam na mesma intenção. Os
nacionalistas pensavam mais em padrões, pelourinhos, caravelas, expansão da fé
e glórias militares. Os mais materialistas cogitavam em mercados,
matérias-primas, colonização e escravatura.
Hoje, a coisa fia mais fino. Há séria
polémica. Os
antigos defensores da liberdade transformaram-se em polícias e inquisidores.
Descobrimentos e Descobertas deixaram de ser admitidos pelos bem pensantes, em
detrimento de Colonização e Escravatura. O suposto ponto de vista das vítimas
substituiu o alegado ponto de vista dos opressores. O lado negro das
Descobertas foi transformado em lado primordial. A existir, o museu é cada vez
mais dos Escravos e cada vez menos dos Descobrimentos.
À ideologia dominante não ocorre que
esse museu deva ser de tudo o que explica, acontece e sucede aos
Descobrimentos: de Camões à ciência, do colonialismo à globalização e do
comércio à escravatura. Nada deve faltar a um museu dos Descobrimentos, que
recorda, estuda e comemora as mais importantes páginas da história de Portugal
e que, como as histórias de todos os países, têm os seus lados negros e
violentos, à mistura com empreendimentos excepcionais. Mas há muita gente que
quer condicionar o pensamento contemporâneo, dominar a cultura actual, limitar
as interpretações da história, determinar o que se deve estudar e regular o
modo como se deve pensar.
Uns dizem com ar sério que não se
deve fazer o Museu dos Descobrimentos, mas sim o da Escravatura ou do
Colonialismo. A verdade é que, se existissem os dois, teríamos um país
tolerante. Se existisse só um com os dois lados da questão, teríamos um país
tolerante e inteligente. Se existir um em vez do outro, teremos um país
intolerante e estúpido. Se não existir nenhum, como agora, então teremos o país
habitual, envergonhado e ignorante.
Outros
sugerem a construção de um memorial dedicado à escravatura. Privado, da
sociedade civil, da autarquia ou do Estado, qualquer solução pode ser boa e
compreensível, desde que não seja alternativa fanática. O que se tem visto por
aí com museus e memoriais do Antifascismo, da Resistência, da Liberdade e da
República, não revela bons pergaminhos. O antifascismo e o anti-racismo têm
sido consagrados em Portugal como sinónimos de liberdade e de democracia, o que
não é verdade.
Negar o ciclo dos Descobrimentos ou
até o termo vulgar que ficou para a história é tão prepotente quanto negar a
cobiça que coexistiu com esses descobrimentos. O que os marxistas
contemporâneos, os anti-racistas com programa, os intelectuais do Bloco de
Esquerda, os idiotas úteis e os correctíssimos cientistas de tantas disciplinas
pretendem fazer com a cultura e a história é igual ao que fizeram os anteriores
beatos, fascistas e sacerdotes do poder. São igualmente facciosos, intolerantes
e fanáticos.
A
polémica dos museus foi recentemente enriquecida por uma nova história. A do Museu Salazar ou do Estado Novo. A ideia surgiu nas cabeças de familiares, de
habitantes de Santa Comba e de vereadores do mesmo município. Não se imagina o
que será, dada a ausência de objectos interessantes. A maior parte do
acervo do ditador ficou nos arquivos da Presidência de Conselho de Ministros,
visto o senhor confundir intimamente a sua vida com a do seu país. Tal
documentação, de grande valor, habita hoje, e muito bem, a Torre do Tombo. Mas
tudo parece indicar que alguns munícipes querem explorar o turismo e as fontes
de interesse daquele pobre concelho. Um vereador chegou a dizer que o Museu
Salazar era importante para a “sustentabilidade e a atractividade” do concelho!
Se
a ideia, o trabalho, os custos e a responsabilidade são dos familiares, não se
vê razão válida para impedir esse museu, tal como pretendem tantos
peticionários indignados. Se esses esforços forem da câmara, também não se vê
argumento para impedir a obra, desde que haja democracia na decisão, o que é
fácil obter por intermédio da vereação e da assembleia.
Mas o mundo é como é. Na praça
pública, com argumentos pobres, multiplicam-se os pedidos para proibir esse
museu. Proibir o Museu Salazar, tal como ele proibiu tantos? É essa a diferença
entre os dois regimes, os que ele proibiu proíbem-no agora? O Estado
democrático não deve financiar o Museu Salazar, mas também não deve proibi-lo.
O Estado democrático não pode tratar Salazar tal como ele tratou a democracia:
proibindo-a! Nós não podemos tratar Salazar tal como ele nos tratou a nós!
O
Estado democrático pode financiar museus que tenham a liberdade como valor. Tal
como pode financiar instituições museológicas relativas à independência
nacional, aos feitos militares, às batalhas pela independência, à luta contra
os opressores estrangeiros (mouros, franceses ou espanhóis, por exemplo), aos
descobrimentos, à colonização, à monarquia ou à República. Como pode organizar
instituições dedicadas ao estudo de fenómenos que são hoje questionados, como a
Inquisição, a expulsão dos judeus, a escravatura, o encerramento das ordens e
dos mosteiros, a expulsão dos religiosos, a censura ou a polícia política. Mas
não faz sentido o Estado democrático apoiar iniciativas destinadas a louvar
quem oprimiu a liberdade e quem lutou contra a democracia. Assim como não faz
sentido que o Estado democrático proíba os privados, as pessoas e outras
comunidades de festejar o que quiserem, desde que sem apoio do Estado.
O
debate público sobre a criação de novos museus é revelador do estado de
espírito dos povos e da sociedade. Mas temos obrigação de conhecer um
pouco melhor a tentação totalitária que espreita em cada esquina. Sabemos que
os museus podem não ser neutros. Que pode haver contrabando político e
ideológico em centros de interpretação. Que o patriotismo pode esconder vícios
e mitos nefastos. E que em nome da liberdade também se mata, oprime e proíbe.
Como sabemos que em nome de Deus e da Pátria se cometeram inúmeros crimes.
Tantos quantos foram cometidos em nome do mercado e da fortuna. Ou em nome da
liberdade e da igualdade!
Sociólogo
COMENTÁRIOS
OldVic: "Na praça pública, com argumentos pobres, multiplicam-se os
pedidos para proibir esse museu. Proibir o Museu Salazar, tal como ele proibiu
tantos? É essa a diferença entre os dois regimes, os que ele proibiu proíbem-no
agora? O Estado democrático não deve financiar o Museu Salazar, mas também não
deve proibi-lo. O Estado democrático não pode tratar Salazar tal como ele
tratou a democracia: proibindo-a! Nós não podemos tratar Salazar tal como ele
nos tratou a nós!": subscrevo. Como diz o povo, de boas intenções está o
inferno cheio; de gente que usa a democracia como pretexto para acabar com a
liberdade já tivemos que chegasse.
Jose, 01.09.2019: Parece que para António Barreto a luta
antifascista já acabou. Não! Está errado Sr. António Barreto! A luta
antifascista em Portugal dura há quase um século e continua. Essa luta
antifascista incluiu a luta pela liberdade, democracia, autodeterminação dos
povos vítimas da ditadura Imperial, colonial e fascista. Essa luta conduziu ao
fim da guerra, libertação dos presos políticos, independência dos povos
português, cabo-verdiano, guineense, angolano, moçambicano, e de Timor,
eleições com sufrágio eleitoral universal para todos os portugueses,
estabelecimento da democracia pluralista inscrita na Constituição da República
Portuguesa de 2 de abril de 1976. Essa luta continua contra o fascismo que
continua a dar luta. A democracia não proíbe nada. É um espaço de liberdade
para a luta política.
A. Martins, 01.09.2019: Mais um grande artigo de António Barreto, um dos nossos
intelectuais com coragem, que pensa pela sua própria cabeça e não pelos ditames
de uma qualquer cartilha ideológica ou partidária anti-isto e anti-aquilo a
tentar tolher-nos a liberdade de pensamento e de acção. Sim ao Museu da
Descobertas. Em minha opinião é um belo nome para um Museu.
Sima Qian, 01.09.2019: Curvo-me perante a clarividência de
António Barreto. Que superioridade intelectual, no bom sentido da palavra.
António Barreto e Pacheco Pereira dão-nos lições e explicam-nos a Verdade.
Antonio
Leitao, 01.09.2019: Barreto
mostra-se, como tantos, amedrontado pelo que chama de politicamente correto,
ideologia de gênero e outros termos que a direita agora usa para descrever uma
espécie de gambozino que aí virá para roubar esta preciosa história nacional e
liberdade! Mas no fundo aquilo que faz mover estas posições é uma posição
conservadora e anti-critica, que permite uma liberdade que só se enquadra com o
costumezinho, as boas maneiras e a herança da pátria. E por isso recorre a
falsas equivalências, comparando as opiniões de intelectuais de partidos
democráticos ou petições públicas com Salazar. Haverá ou não museu consoante a
política o ditar no Estado de direito.
Tiago Vasconcelos, 01.09.2019: O politicamente correto, ideologia de
género e outros filões da esquerda das "causas" representa uma
investida do obscurantismo sobre a racionalidade. Em Portugal o panorama ainda
não está muito mau. Porém, em países anglo-saxónicos já raia a lunaticidade.
mário borges, 01.09.2019 : Para quem duvida que já não existe uma
molécula de esquerda sequer neste cronista aqui está a prova. Claro: dá ao teu
inimigo a possibilidade dele acabar com a democracia que tanto sangue custou a
conquistar... Claro que sim ó Barreto...
cisteina,01.09.2019: Moléculas !... Do que precisamos,
mesmo, é de proteínas, moléculas, nem de esquerda nem de direita, sim,
proteínas democráticas, vão faltando em generosa quantidade. E, já agora,
biológicas, cerebrais, neuronais, além das sinapses, gente que pense alto e
longe.
mário borges, 01.09.2019: À senhora cisteína (ou ao senhor
aminoácido) não recomendo nem moléculas nem proteínas nem sinapses em bom
estado. Recomendo uma espera (não demorada por certo) que quando abrir eu
ofereço-lhe um bilhete para o seu querido museu em Santa Comba Dão. Ou então
que se junte ao seu ídolo tão breve quanto possível.
Tiago Vasconcelos, 01.09.2019: Mário Borges e o intelectualmente
preguiçoso Reductio ad Salazarum...
bento guerra,
01.09.2019: A "esquerda" militante já
provou que não é democrática.Eles conduzem a "mudança"
José Manuel Martins,
01.09.2019: Fulgurante!
Subscrito a 300%. É de muito longe a melhor peça de pensamento crítico de
alcance global e profundo que tenho lido nos últimos anos. E olhem que tenho
lido muita coisa... Quem um dia quiser compreender o estado do planeta e o
labirinto das suas infinitas micro-polémicas, da rede complexa das dissensões -
tem aqui o mapa que desmistifica toda essa aparente ‘complexidade’: continua a
ser muito, muito simples: há a liberdade livre - e depois há o resto (a começar
pela privatização ideológica da 'Liberdade' como bandeira de chantagem e
dominação, e a continuar por todas as outras obscuras veredas do homo hominis
lupus). Obrigado, António Barreto.
rgusmao, 01.09.2019: Cada vez mais sábio, António Barreto.
danielcouto1100, 01.09.2019: Um texto com um começo brilhante e
sapiente, próprio de um cientista social, mas um finalmente bastante dúvio: sim
e talvez não... o melhor seria nada fazer.
José Manuel Martins, 01.09.2019: o final não é dúbio: entre césar e deus, aos privados o
que é dos privados, ao público o que é público. A única reserva a tudo quanto
Barreto expõe é que também é tão democrático quanto possa sê-lo a mobilização
(democraticamente discutível) em curso, e as razões, valores, motivos dessa
mobilização. Precisamente, a querela ao primeiro nível transfere-se intacta,
para o meta-nível - e eis que coexistem democraticamente os que querem
amordaçar as descobertas, os que querem glorificar as caravelas, e os que reflectem
sobre as duvidosas agendas de uns e outros (idem para o caso salazar). Barreto
deve perceber que, em democracia, a agenda mamadou/gorjão deve poder coexistir
com a dele, e reciprocamente. Mesmo se Barreto o perceba muito melhor que
aquele par de jarras. Voilà o que é liberdade.
viana,
01.09.2019: Hipócrita. Houvesse alguém
a propor um museu a vangloriar o estado islâmico concordaria? Há limites para
tudo. O que AB não quer fazer é discutir quais deverão ser esses limites. Já
agora, é a favor da liberalização total do porte de arma, de que se possam
fazer fogueiras em florestas? É igual. Em qualquer dos casos ninguém está, com
tal acto, a infringir a liberdade dos outros. Mas, claro, estatisticamente a
probabilidade de haver mais mortes por uso de armas e mais incêndios aumentará.
Portanto, a questão é: a partir de que limites a propaganda anti-democrática,
racista, colonialista levará seguramente a crescentes ataques à Democracia e a
seres humanos? AB quer lavar as mãos dessas consequências. Não se importa de
ver a nossa casa a arder, porque todos têm "direito" a atiçar
fogueiras.
mariavazneves,
01.09.2019: Uma coisa é
vangloriar...outra coisa é informar. Esconder é bem pior!!! As pessoas sabem o que era a pide, os
assassinatos como H. Delgado, as prisões, a tortura, a censura...o tentáculo de
informadores, etc... Concordo totalmente com AB.
viana, 01.09.2019: Sabem?!... Então porque tantos afirmam
que no tempo de Salazar é que se vivia bem? Basta atentar a sondagens de todo o
tipo. Parece-me que a maria é que se está a esconder da realidade... Ninguém é
contra informar. Aliás, quem toma a posição de AB é que é contra informar,
porque permite que se conte apenas uma versão, falsa, da História.
rgusmao, 01.09.2019: Censor esquerdalho
sociogénico.
henrique Mota,
01.09.2019: Q.E.D. (QUOD ERAT DEMONSTRANDUM)
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