No fundo, os inimigos da democracia são
todos aqueles que desejariam um modelo ideal de governo, sem os excessos
cometidos a cada passo pelos que têm o poder de os produzir ou permitir, com a
autoridade desse poder, a que um dia se propuseram aceder, com a competência precisa
e acompanhada dos respectivos acólitos, movidos por idênticos - ou diferentes -
propósitos, não se deve generalizar. A imagem dos sete cães a um osso, se lhes
aplica, naturalmente, embora em quantidade maior de participantes e de ossos,
com o respectivo tutano. De resto, o cinismo é a moeda de maior uso nesse
governo que se define como governo do povo. O povo lá terá a sua representação,
é certo, ora reivindicativo ora acomodado, em troca das benesses que espera
receber. Quanto à corrupção … de que valem os protestos? Talvez nos esteja na
massa do sangue, a nós, povo – donde partiram os democratas corruptos e também
os outros, provavelmente bem-intencionados. Mas António
Barreto está um perito, na sua escrita de paralelismos
anafóricos em crescendo argumentativo, belo exercício de retórica e definição
de conceitos. E de preceitos, também, que alguns comentadores rebatem. Mas
outros aceitam-nos, encantados, como eu, com o discurso magistral.
OPINIÃO
Os inimigos da democracia
ANTÓNIO BARRETO
PÚBLICO, 29 de
Setembro de 2019
Os clássicos inimigos da
democracia são conhecidos: comunistas, fascistas e populistas de esquerda ou de direita, estes
últimos com pretextos comuns, o nacionalismo e a virtude. Podem vir do
capitalismo, do sindicato, do regimento e do púlpito, com ajudas várias, da
cátedra à imprensa, das polícias às redes sociais. Há muito que se sabe isto.
Os inimigos
da democracia percorrem as vias abertas pelos democratas.
Aproveitam em seu benefício os erros dos democratas, as suas desatenções, as
suas querelas inúteis, a sua volúpia e a sua cobiça. Procuram as falhas
dos democratas, o seu egoísmo, o seu narcisismo e a sua ambição desmedida.
Estão à espera da incompetência e da covardia dos democratas.
Os inimigos da democracia espreitam atentamente para os corredores da
justiça, local onde a democracia se perde tantas vezes. Olham para as
contas bancárias dos políticos e dos seus amigos, à procura de movimentos e de
sinais. Observam a corrupção, a que faz circular dinheiro, a que branqueia
receitas, a que organiza concursos, a que favorece promoções, a que emprega os
amigos e a que cobra luvas e comissões pelos negócios de Estado.
Os inimigos da democracia sabem que
a corrupção e o nepotismo abrem as portas para as suas aventuras. Estão
cientes de que os seus caminhos estão numa justiça que falha, numa polícia
que não cumpre e numa administração incompetente. Por isso, espreitam
e esperam. Se for
possível aproveitar os interstícios da democracia, aproveitam. Mas as
suas reais intenções são as de varrer as instituições e tomar conta.
Uma
longa observação dos tempos de antena da maior parte dos “pequenos” partidos,
os que não têm representação parlamentar, os partidos da fragmentação e do
populismo, é utilíssima! Na verdade,
uma boa parte desses pequenos partidos são evidentemente inimigos da
democracia, usam todos os tiques e clichés, “estamos fartos”, “é preciso
acabar com isto”, “é necessária uma vassourada”, “saiam daí para nos deixar
governar”, “são todos uma cambada de corruptos”, “são todos iguais”… É com
estes desabafos analfabetos que esses senhores julgam comover o eleitorado.
Dentro de uma semana, vão desaparecer. Talvez voltem, com o mesmo nome ou
outro, não se sabe. Mas deles nada virá. É donde menos se espera que não vem
mesmo nada. Os outros, os verdadeiros inimigos da democracia, estão mais
calados, por enquanto. Nas arcadas do poder e nos corredores das instituições,
esperam e espreitam.
Segundo Ignazio Silone, o
americano senhor W ou Duplo-Vê veio à Europa, há umas décadas, com o seu
conselheiro político e para os assuntos ideológicos, o Professor Pickup. O
senhor W queria tomar o poder nos Estados Unidos, mas não sabia muito bem como.
Fez uma tournée na Europa, instalou-se confortavelmente num hotel de Zurique,
onde recebia o senhor Thomas, especialista europeu em política e mais conhecido
pela alcunha de “O Cínico”. As suas conversas duraram longas horas e muitos
dias. São verdadeiras lições que convém recordar. A mensagem essencial que Thomas dá ao Senhor W é simples: ao
contrário do que se pensa frequentemente, as democracias não são derrubadas.
Ninguém as conquista do exterior. Não morrem por causas alheias. Não são
tomadas de assalto. Caem por si próprias. São derrotadas pelos seus próprios
responsáveis. “A morte de uma democracia é, o mais das vezes, um suicídio
camuflado!”
Não
é possível observar ou pensar no episódio de Tancos sem ter em mente este aviso. O
assunto merece especial atenção. O caso incomoda a democracia há dois anos.
Quase ninguém se portou convenientemente. Um episódio de mera delinquência
transformou-se numa das mais graves e sérias provações da democracia
portuguesa, pondo em xeque as instituições e a honra de muita gente. Sem poupar
as Forças Armadas e os Tribunais. Pior era
impossível! São
episódios como este que revelam a fragilidade do regime e a fraqueza dos seus
dirigentes. Todos passam culpas para os senhores do lado, para os
adversários e para quem está abaixo.
Será
que as instituições políticas e judiciárias não têm capacidade para resolver a
questão de Tancos? Para elucidar a população? Sanear e castigar os
responsáveis? Punir a mentira e a irresponsabilidade? Já se percebeu que
Tancos conspurcou tudo e todos. Por culpas ou responsabilidades. Por
intervenção ou omissão. Por ocultação ou mentira. Dos trafulhas aos
bandidos, até ao Governo
e à Presidência da República, passando pela Administração Pública,
os Magistrados e as Forças Armadas, desconfia-se de toda a gente, parece que
ninguém fica de fora. Seria bom que, de facto, todos percebessem que têm
alguma responsabilidade, por actos, cumplicidade, encobrimento, omissão,
ignorância, ocultação ou indiferença. Como é evidente, o grau de
responsabilidade varia muito, conforme o gesto ou a falta dele.
Não quero dizer que Tancos seja o cenotáfio da democracia. Seria exagerado.
Mas, se houver um dia uma tragédia, poder-se-á dizer que alguma coisa começou
ali, naquela charneca. Tancos acrescenta-se ao BNP, ao BES e ao BCP. À PT, à
EDP e aos cimentos. À Face Oculta e à Operação Marquês. Aos incêndios e à
Protecção Civil. Aos políticos arguidos e nunca julgados. Aos despachos de
arquivamento inexplicáveis.
Diminuem os tempos dos comícios, os
berros nas arruadas e os insultos na praça pública. Ainda há berraria inútil e
histriónica no Parlamento e nas instituições representativas, por causa da
televisão. Mas,
nestes domínios, as nossas eleições estão a melhorar, a ficar mais
bem-educadas. E os nossos políticos a comportarem-se como pessoas civilizadas
ou quase. É bom que assim seja. Só que não chega. No comportamento político e
financeiro e nas regras de conduta, há muito que não satisfaz, talvez até cada
vez mais.
Em tempos de política de massas, de
redes sociais e de lugares comuns, os regimes autoritários, fascistas,
comunistas ou populistas são, como no passado recente, golpes em democracias
falhadas, em países onde as revoluções não vingaram e onde a democracia foi
capturada.
Não
serão brigadas fascistas, regimentos europeus ou destacamentos comunistas que
ameaçarão a democracia portuguesa. Nem sequer o capitalismo chinês ou as
multinacionais americanas. Quem o fizer, será graças aos políticos portugueses
e aos tribunais portugueses. E será por causa da corrupção, do nepotismo e da
porta giratória. E da falta de justiça.
Sociólogo
COMENTÁRIOS
Jose, 29.09.2019: Para António Barreto é ele próprio o alfa e o omega
da democracia. A democracia é a delegação secreta, livre e justa do poder
pessoal intrínseco ao ser humano individual num poder mais geral que exponencía
a intervenção do indivíduo na gestão da coisa pública. Não há liberdade numa
atmosfera dominada pelo obscurantismo diariamente alimentado por organizações
como Domus Pacis e seu internacional Exército Azul. Este tipo de instrumentos de
propaganda obscurantista que habita nos directórios dos partidos burgueses e
seus propagandistas instalados na vida e na comunicação social, como António
Barreto, são um forte obstáculo a liberdade individual, à formação livre e
justa de opinião e à decisão justa. Atenta contra os fundamentos da democracia
e destrói a solidez ideológica dos democratas.
Alforreca Passista, 29.09.2019: Inimigos da democracia: Oligarcas como Soares do
Santos.
PdellaF, 29.09.2019: Pois. Há dois inimigos da Democracia: 1) os cidadãos
absentistas, para quem nenhum assunto é com eles e tratam as instituições como
se fossem meros clientes; 2) os sequiosos pelo Poder sem partilha e sem freio.
Alguns destes, até são democratas até ao dia em que provam o sabor do Poder.
Aí, tornam-se os maiores inimigos da Democracia.
FPS, 29.09.2019: Estas palavras de António Barreto parecem-me muito
avisadas e sérias (eu que estou, quase sempre, na trincheira oposta à sua) . Há
por aí muita confusão e beatos não faltam que, tomassem eles o poder, e a
corrupção era um ver se te avias... São os cátaros do "combate à
corrupção". Claro que esta malta vai desaparecer na noite de 6 de
Outubro... vai desaparecer mas vai continuar a escarafunchar que já os oiço há
séculos (até já criaram um PRD impoluto que implodiu em 1/2 dúzia de anos).
Tem, sem dúvida, razão, António Barreto... só nos podemos safar desta gente com
políticos decentes e tribunais decentes. O resto é mesmo só conversa!
Fowler Fowler, 29.09.2019: Há dias assim: um dia, o sr. Barreto diz-nos que a
democracia deve comportar forças nacionalistas, comunistas e populistas de
esquerda e direita; outro dia, diz-nos que essas forças representam o inimigo
da democracia, uma vez que se alimentam dos erros dos democratas no exercício
do poder. Fica o aviso cínico daquele que tem sido, consciente ou não, o
porta-voz eloquente dos “inimigos da democracia”.
Macuti, 29.09.2019: "Os inimigos da democracia sabem que a corrupção
e o nepotismo abrem as portas para as suas aventuras." Mas que grande
verdade!!! No processo Marquês e não só, a extrema esquerda está normalmente
contra a acusação, colocando-se paradoxalmente ao lado de uma defesa onde estão
muitos dos piores representantes do capitalismo português. É compreensível,
mais corrupção significa mais desigualdade social, campo fértil para o
recrutamento de descontentes.
AndradeQB, 29.09.2019: Não me admiraria que os psicólogos chegassem à
conclusão de que os perfis dos que, dentro das instituições existentes num
regime democrático, abrem caminho para os inimigos da democracia e o desses
inimigos sejam coincidentes. Se não irmãos gémeos, primos seguramente. O lado
em que estão é um mero resultado da conjuntura. Os primeiros ascenderam
aproveitando as brechas das mexidas que a democracia implica, os segundos
sobrevivem em negócios, instituições, ou profissões, com que essas mexidas só
marginalmente interferem. Se alguma diferença existe, será a de que os
primeiros são mais repulsivos e os segundos mais perigosos.
Jose Vic,
29.09.2019: AB faz-nos uma leitura dos perigos da democracia. Um pouco mais de
rigor histórico sff. Alguma leitura por exemplo de Eric Hobsbawm seria útil...
Sergio Paradiz, 29.09.2019: Naturalmente todos os comentadores têm opções
políticas que se reflectem nos seus comentários. Se isso é inevitável já não o
é que essas opções levem a distorção grosseira da realidade. Para LC o
Governo anterior, para retirar o país da bancarrota, trazendo um défice de
10,7% para 3% ( o rating da República em “lixo” e sem acesso aos mercados ),
seguiu uma “política de empobrecimento “, mas para o mesmo LC, o actual
Governo, já com as contas públicas equilibradas, ao insistir em manter
superávites, já não segue uma “política de empobrecimento”, limitando-se a
expressar que podia ser “mais amiga do crescimento e menos preocupada com o
défice”. Mas não contente com a acrobacia, não acaba o seu comentário sem
deixar outra nota ainda mais relevante da total falta de isenção :- para LC “e’
positivo”(!!!!!) a saída da política ecofin do palco de campanha, mas
“indesejável “ que seja “por um caso de Justiça” i e pelo caso de Tancos. Como
escreve AB neste mesmo jornal, o caso de Tancos é “uma das mais graves e sérias
provações da democracia portuguesa”.
PdellaF, 29.09.2019: Quem é o LC?
Jorge Rodrigues, 29.09.2019: Não foi por acaso que com a sua habitual ironia
Winston Churchill disse: "a democracia é o pior dos regimes, à excepção de
todos os outros!"
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