segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Lições de ética, lições de escrita



No fundo, os inimigos da democracia são todos aqueles que desejariam um modelo ideal de governo, sem os excessos cometidos a cada passo pelos que têm o poder de os produzir ou permitir, com a autoridade desse poder, a que um dia se propuseram aceder, com a competência precisa e acompanhada dos respectivos acólitos, movidos por idênticos - ou diferentes - propósitos, não se deve generalizar. A imagem dos sete cães a um osso, se lhes aplica, naturalmente, embora em quantidade maior de participantes e de ossos, com o respectivo tutano. De resto, o cinismo é a moeda de maior uso nesse governo que se define como governo do povo. O povo lá terá a sua representação, é certo, ora reivindicativo ora acomodado, em troca das benesses que espera receber. Quanto à corrupção … de que valem os protestos? Talvez nos esteja na massa do sangue, a nós, povo – donde partiram os democratas corruptos e também os outros, provavelmente bem-intencionados. Mas António Barreto está um perito, na sua escrita de paralelismos anafóricos em crescendo argumentativo, belo exercício de retórica e definição de conceitos. E de preceitos, também, que alguns comentadores rebatem. Mas outros aceitam-nos, encantados, como eu, com o discurso magistral.
OPINIÃO
Os inimigos da democracia
ANTÓNIO BARRETO
PÚBLICO, 29 de Setembro de 2019
Os clássicos inimigos da democracia são conhecidos: comunistas, fascistas e populistas de esquerda ou de direita, estes últimos com pretextos comuns, o nacionalismo e a virtude. Podem vir do capitalismo, do sindicato, do regimento e do púlpito, com ajudas várias, da cátedra à imprensa, das polícias às redes sociais. Há muito que se sabe isto.
Os inimigos da democracia percorrem as vias abertas pelos democratas. Aproveitam em seu benefício os erros dos democratas, as suas desatenções, as suas querelas inúteis, a sua volúpia e a sua cobiça. Procuram as falhas dos democratas, o seu egoísmo, o seu narcisismo e a sua ambição desmedida. Estão à espera da incompetência e da covardia dos democratas.
Os inimigos da democracia espreitam atentamente para os corredores da justiça, local onde a democracia se perde tantas vezes. Olham para as contas bancárias dos políticos e dos seus amigos, à procura de movimentos e de sinais. Observam a corrupção, a que faz circular dinheiro, a que branqueia receitas, a que organiza concursos, a que favorece promoções, a que emprega os amigos e a que cobra luvas e comissões pelos negócios de Estado.
Os inimigos da democracia sabem que a corrupção e o nepotismo abrem as portas para as suas aventuras. Estão cientes de que os seus caminhos estão numa justiça que falha, numa polícia que não cumpre e numa administração incompetente. Por isso, espreitam e esperam. Se for possível aproveitar os interstícios da democracia, aproveitam. Mas as suas reais intenções são as de varrer as instituições e tomar conta.
Uma longa observação dos tempos de antena da maior parte dos “pequenos” partidos, os que não têm representação parlamentar, os partidos da fragmentação e do populismo, é utilíssima! Na verdade, uma boa parte desses pequenos partidos são evidentemente inimigos da democracia, usam todos os tiques e clichés, “estamos fartos”, “é preciso acabar com isto”, “é necessária uma vassourada”, “saiam daí para nos deixar governar”, “são todos uma cambada de corruptos”, “são todos iguais”… É com estes desabafos analfabetos que esses senhores julgam comover o eleitorado. Dentro de uma semana, vão desaparecer. Talvez voltem, com o mesmo nome ou outro, não se sabe. Mas deles nada virá. É donde menos se espera que não vem mesmo nada. Os outros, os verdadeiros inimigos da democracia, estão mais calados, por enquanto. Nas arcadas do poder e nos corredores das instituições, esperam e espreitam.
Segundo Ignazio Silone, o americano senhor W ou Duplo-Vê veio à Europa, há umas décadas, com o seu conselheiro político e para os assuntos ideológicos, o Professor Pickup. O senhor W queria tomar o poder nos Estados Unidos, mas não sabia muito bem como. Fez uma tournée na Europa, instalou-se confortavelmente num hotel de Zurique, onde recebia o senhor Thomas, especialista europeu em política e mais conhecido pela alcunha de “O Cínico”. As suas conversas duraram longas horas e muitos dias. São verdadeiras lições que convém recordar. A mensagem essencial que Thomas dá ao Senhor W é simples: ao contrário do que se pensa frequentemente, as democracias não são derrubadas. Ninguém as conquista do exterior. Não morrem por causas alheias. Não são tomadas de assalto. Caem por si próprias. São derrotadas pelos seus próprios responsáveis. “A morte de uma democracia é, o mais das vezes, um suicídio camuflado!”
Não é possível observar ou pensar no episódio de Tancos sem ter em mente este aviso. O assunto merece especial atenção. O caso incomoda a democracia há dois anos. Quase ninguém se portou convenientemente. Um episódio de mera delinquência transformou-se numa das mais graves e sérias provações da democracia portuguesa, pondo em xeque as instituições e a honra de muita gente. Sem poupar as Forças Armadas e os Tribunais. Pior era impossível! São episódios como este que revelam a fragilidade do regime e a fraqueza dos seus dirigentes. Todos passam culpas para os senhores do lado, para os adversários e para quem está abaixo.
Será que as instituições políticas e judiciárias não têm capacidade para resolver a questão de Tancos? Para elucidar a população? Sanear e castigar os responsáveis? Punir a mentira e a irresponsabilidade? Já se percebeu que Tancos conspurcou tudo e todos. Por culpas ou responsabilidades. Por intervenção ou omissão. Por ocultação ou mentira. Dos trafulhas aos bandidos, até ao Governo e à Presidência da República, passando pela Administração Pública, os Magistrados e as Forças Armadas, desconfia-se de toda a gente, parece que ninguém fica de fora. Seria bom que, de facto, todos percebessem que têm alguma responsabilidade, por actos, cumplicidade, encobrimento, omissão, ignorância, ocultação ou indiferença. Como é evidente, o grau de responsabilidade varia muito, conforme o gesto ou a falta dele.
Não quero dizer que Tancos seja o cenotáfio da democracia. Seria exagerado. Mas, se houver um dia uma tragédia, poder-se-á dizer que alguma coisa começou ali, naquela charneca. Tancos acrescenta-se ao BNP, ao BES e ao BCP. À PT, à EDP e aos cimentos. À Face Oculta e à Operação Marquês. Aos incêndios e à Protecção Civil. Aos políticos arguidos e nunca julgados. Aos despachos de arquivamento inexplicáveis.
Diminuem os tempos dos comícios, os berros nas arruadas e os insultos na praça pública. Ainda há berraria inútil e histriónica no Parlamento e nas instituições representativas, por causa da televisão. Mas, nestes domínios, as nossas eleições estão a melhorar, a ficar mais bem-educadas. E os nossos políticos a comportarem-se como pessoas civilizadas ou quase. É bom que assim seja. Só que não chega. No comportamento político e financeiro e nas regras de conduta, há muito que não satisfaz, talvez até cada vez mais.
Em tempos de política de massas, de redes sociais e de lugares comuns, os regimes autoritários, fascistas, comunistas ou populistas são, como no passado recente, golpes em democracias falhadas, em países onde as revoluções não vingaram e onde a democracia foi capturada.
Não serão brigadas fascistas, regimentos europeus ou destacamentos comunistas que ameaçarão a democracia portuguesa. Nem sequer o capitalismo chinês ou as multinacionais americanas. Quem o fizer, será graças aos políticos portugueses e aos tribunais portugueses. E será por causa da corrupção, do nepotismo e da porta giratória. E da falta de justiça.
Sociólogo
COMENTÁRIOS
Jose, 29.09.2019: Para António Barreto é ele próprio o alfa e o omega da democracia. A democracia é a delegação secreta, livre e justa do poder pessoal intrínseco ao ser humano individual num poder mais geral que exponencía a intervenção do indivíduo na gestão da coisa pública. Não há liberdade numa atmosfera dominada pelo obscurantismo diariamente alimentado por organizações como Domus Pacis e seu internacional Exército Azul. Este tipo de instrumentos de propaganda obscurantista que habita nos directórios dos partidos burgueses e seus propagandistas instalados na vida e na comunicação social, como António Barreto, são um forte obstáculo a liberdade individual, à formação livre e justa de opinião e à decisão justa. Atenta contra os fundamentos da democracia e destrói a solidez ideológica dos democratas.
Alforreca Passista, 29.09.2019: Inimigos da democracia: Oligarcas como Soares do Santos.
PdellaF, 29.09.2019: Pois. Há dois inimigos da Democracia: 1) os cidadãos absentistas, para quem nenhum assunto é com eles e tratam as instituições como se fossem meros clientes; 2) os sequiosos pelo Poder sem partilha e sem freio. Alguns destes, até são democratas até ao dia em que provam o sabor do Poder. Aí, tornam-se os maiores inimigos da Democracia.
FPS, 29.09.2019: Estas palavras de António Barreto parecem-me muito avisadas e sérias (eu que estou, quase sempre, na trincheira oposta à sua) . Há por aí muita confusão e beatos não faltam que, tomassem eles o poder, e a corrupção era um ver se te avias... São os cátaros do "combate à corrupção". Claro que esta malta vai desaparecer na noite de 6 de Outubro... vai desaparecer mas vai continuar a escarafunchar que já os oiço há séculos (até já criaram um PRD impoluto que implodiu em 1/2 dúzia de anos). Tem, sem dúvida, razão, António Barreto... só nos podemos safar desta gente com políticos decentes e tribunais decentes. O resto é mesmo só conversa!
Fowler Fowler, 29.09.2019: Há dias assim: um dia, o sr. Barreto diz-nos que a democracia deve comportar forças nacionalistas, comunistas e populistas de esquerda e direita; outro dia, diz-nos que essas forças representam o inimigo da democracia, uma vez que se alimentam dos erros dos democratas no exercício do poder. Fica o aviso cínico daquele que tem sido, consciente ou não, o porta-voz eloquente dos “inimigos da democracia”.
Macuti, 29.09.2019: "Os inimigos da democracia sabem que a corrupção e o nepotismo abrem as portas para as suas aventuras." Mas que grande verdade!!! No processo Marquês e não só, a extrema esquerda está normalmente contra a acusação, colocando-se paradoxalmente ao lado de uma defesa onde estão muitos dos piores representantes do capitalismo português. É compreensível, mais corrupção significa mais desigualdade social, campo fértil para o recrutamento de descontentes.
AndradeQB, 29.09.2019: Não me admiraria que os psicólogos chegassem à conclusão de que os perfis dos que, dentro das instituições existentes num regime democrático, abrem caminho para os inimigos da democracia e o desses inimigos sejam coincidentes. Se não irmãos gémeos, primos seguramente. O lado em que estão é um mero resultado da conjuntura. Os primeiros ascenderam aproveitando as brechas das mexidas que a democracia implica, os segundos sobrevivem em negócios, instituições, ou profissões, com que essas mexidas só marginalmente interferem. Se alguma diferença existe, será a de que os primeiros são mais repulsivos e os segundos mais perigosos.
Jose Vic, 29.09.2019: AB faz-nos uma leitura dos perigos da democracia. Um pouco mais de rigor histórico sff. Alguma leitura por exemplo de Eric Hobsbawm seria útil...
Sergio Paradiz, 29.09.2019: Naturalmente todos os comentadores têm opções políticas que se reflectem nos seus comentários. Se isso é inevitável já não o é que essas opções levem a distorção grosseira da realidade. Para LC o Governo anterior, para retirar o país da bancarrota, trazendo um défice de 10,7% para 3% ( o rating da República em “lixo” e sem acesso aos mercados ), seguiu uma “política de empobrecimento “, mas para o mesmo LC, o actual Governo, já com as contas públicas equilibradas, ao insistir em manter superávites, já não segue uma “política de empobrecimento”, limitando-se a expressar que podia ser “mais amiga do crescimento e menos preocupada com o défice”. Mas não contente com a acrobacia, não acaba o seu comentário sem deixar outra nota ainda mais relevante da total falta de isenção :- para LC “e’ positivo”(!!!!!) a saída da política ecofin do palco de campanha, mas “indesejável “ que seja “por um caso de Justiça” i e pelo caso de Tancos. Como escreve AB neste mesmo jornal, o caso de Tancos é “uma das mais graves e sérias provações da democracia portuguesa”.
PdellaF, 29.09.2019: Quem é o LC?
Jorge Rodrigues, 29.09.2019: Não foi por acaso que com a sua habitual ironia Winston Churchill disse: "a democracia é o pior dos regimes, à excepção de todos os outros!"

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