Lembrei-me do António Gedeão, de quem tanto gosto. Poderia pôr,
dele, um qualquer poema, como homenagem a essa figura forte, consistente, batalhadora,
segura - quando não perplexa, como nos deixa a nós, com as suas análises
políticas esclarecedoras, de quem vai desbravando e transmitindo, motivo por
que lhe somos gratos. Lembrei-me das figuras de «Álvaro Góis, Rui Mamede, filhos de António Brandão, naturais de
Cantanhede, pedreiros de profissão, de sombrias cataduras como bisontes
lendários» que «modelam ternas figuras
na brutidão dos calcários”. Vivemos num mundo de mudanças políticas, que
tentam permanecer coesas, apesar de tudo, e Teresa
de Sousa explica, num «truca-truca,
lento, pausado, suave», como o tal “cinzel
que batuca» que nos “ilumina“ a cabeça desocupada dessas manigâncias por
que somos manipulados. Ficamos, de facto, mais esclarecidos, e a nossa gratidão
por isso. Que nunca deixe de nos martelar as cabeças com as suas explicações feitas
com simplicidade, síntese das muitas pesquisas do seu truca-truca magistral, (que
alguns sábios comentadores complementam). Não ficaremos tão perfeitos como as
esculturas da Barca, que o Cristo acolhe, mas um pouco mais de luz cairá sobre
nós, sobre o antes e o agora, de uma U E que para nós se fabricou, julgo que em
boa hora.
ANÁLISE
Ainda o “modo de vida europeu”
As escolhas feitas por Von der Leyen não
implicam uma condenação generalizada, mas são um preocupante sinal dos tempos.
TERESA DE SOUSA
PÚBLICO,
15 de Setembro de 2019
1. O que se
espera da figura que preside à Comissão Europeia? Que tenha uma visão global da União Europeia, da sua
natureza, dos seus problemas e dos seus principais desafios. Que consiga
fazer-se respeitar pelos governos europeus, fazendo ouvir a sua voz com a
devida atenção no Conselho Europeu, o órgão que detém as rédeas da condução
política da União e cujo poder se viu reforçado ao longo da crise que a Europa
atravessou na última década. Que compreenda os pontos essenciais da agenda
europeia em cada momento, a nível interno e na sua relação com o mundo, não se
deixando enredar nas “pequenas e médias” medidas de que a eurocracia se
alimenta. Que seja capaz de liderar um órgão colegial no qual estão
representados todos os Estados-membros, com as suas particularidades e os seus
interesses específicos, mesmo que, por definição, cada comissário deva ser o
mais independente possível do seu país de origem. É um
caderno de encargos pesado, que exige habilidade política, bom senso e
autoridade.
2.
Jacques Delors,
que presidiu à Comissão entre 1985 e 1995, foi em boa medida o modelo em relação ao qual os seus sucessores tiveram de se
comparar. Presidiu a
alguns momentos históricos da integração europeia. Ganhou uma enorme autoridade
junto dos chefes de Estado e de Governo. Mas é justo recordar que a sua
liderança foi bastante facilitada pelo apoio fundamental que recebeu quase
sempre do eixo franco-alemão. Coube-lhe também liderar uma Europa mais
pequena, mais homogénea e mais ocidental. Muito longe
da actual União Europeia, alargada à dimensão do continente, a viver as dores
da adaptação a um mundo nos antípodas daquele que a viu nascer, e que se move
hoje na direcção contrária do seu próprio modelo de integração. Os sucessores de Delors foram figuras políticas menos dominantes, mais
susceptíveis de se vergar à pressão dos grandes países. Durante a crise
financeira e a crise do euro, essa subordinação foi particularmente evidente,
com a Comissão Barroso a aceitar sem pestanejar os diktats de Berlim. Jean-Claude Juncker
foi o “último dos moicanos” de uma velha geração de europeístas, para os
quais a Europa foi quase um modo de vida, nem sempre capazes de se
adaptar a uma realidade muito mais complexa e muito mais adversa ao velho sonho
europeu. A Comissão Juncker agiu algumas vezes em formação dispersa,
sobretudo durante a crise, com os “ortodoxos” da austeridade a assumirem o
comando das operações. São famosos os desabafos do ainda presidente da
Comissão sobre a sua impotência perante a vontade dos grandes países – com
particular relevo, naturalmente, para França e Alemanha.
3. A
escolha da nova presidente da Comissão não foi um processo simples. Aliás,
poucas horas antes de o seu nome ser colocado em cima da mesa num dramático
Conselho Europeu extraordinário no início de Julho, não fazia
parte, nem de perto nem de longe, dos nomes possíveis para desempenhar o cargo.
A sua escolha resulta do confronto entre os principais grupos políticos em
torno dos chamados “Spitzenkandidaten” (os candidatos à liderança da Comissão
que cada um dos partidos políticos europeus apresentou nas eleições para o
Parlamento Europeu de Maio) sobre a forma de distribuir entre eles os cargos
mais importantes das instituições da União – quem preside à Comissão, ao
Conselho Europeu, ao BCE e à diplomacia europeia. A parte mais inesperada,
e porventura mais pesada de consequências, desta “guerra” acabou por ser a rebelião do PPE contra o acordo que tinha
sido encontrado entre a chanceler alemã, o Presidente francês e os líderes
socialistas (em particular, os dois primeiros-ministros de Portugal e Espanha)
para uma distribuição de cargos que dava a Comissão ao socialista Frans
Timmermans e o Conselho ao PPE, com a directora-geral do FMI, a francesa
Christine Lagarde, a suceder a Mario Draghi no BCE. O PPE não quis abdicar
do direito a ter a Comissão, enquanto partido mais votado nas eleições
europeias. Acabou por entrar no jogo de Viktor Orbán e dos seus amigos
polacos, para quem Timmermans era a figura a abater. Por uma simples razão:
foi ele o responsável pelos processos abertos contra Budapeste e Varsóvia
por violação das regras do Estado de Direito. Macron tirou Von der Leyen
do bolso e construiu uma maioria em torno do seu nome, que contou com o
beneplácito de Orbán e do Governo de Varsóvia.
Nada disto
foi pacífico no Parlamento Europeu, cioso do seu poder de
condicionar as escolhas do Conselho Europeu através da figura dos
“Spitzenkandidaten”. Von der Leyen teve de “conquistar” a simpatia dos
principais grupos políticos, comprometendo-se com algumas das suas exigências.
É preciso levar tudo isto em conta para perceber a reacção muito dura de muita
gente ao novo organigrama e à nova nomenclatura da sua
Comissão, e sobretudo à designação de uma vice-presidência
responsável por “proteger o modo de vida europeu”, vista imediatamente como uma
cedência aos populistas e à sua agenda anti-imigrantes.
4.
É difícil de acreditar que Von
der Leyen não tenha
medido as consequências desta escolha.
Tem experiência política que baste e vem de um país, a Alemanha, no qual o
debate sobre os imigrantes e os refugiados tem sido particularmente intenso.
Fez parte de um Governo que abriu generosamente as portas a centenas de
milhares de refugiados, para não ter consciência da importância e da delicadeza
que as questões da imigração hoje têm nas democracias europeias. Na sexta-feira,
a sua resposta à polémica foi a transcrição via Twitter do Artigo 2.º do
Tratado de Lisboa, segundo o qual o objectivo da União é promover a paz,
os seus valores e o bem-estar dos seus povos (…), devendo “oferecer aos seus
cidadãos uma área de liberdade, segurança e justiça, sem fronteiras internas,
na qual a liberdade de movimento das pessoas é garantida em conjugação com
medidas apropriadas no controlo das fronteiras exteriores, do asilo, da
imigração e da prevenção e combate ao crime”.
É
uma boa tentativa, que não
conseguirá pôr cobro à polémica.
5. À
primeira vista, “proteger o modo de vida europeu” pode parecer uma ideia óbvia e inocente.
Somos europeus, queremos proteger o nosso modo de vida, que pode ser
definido por um Estado Social que nos garante longos períodos de férias,
licenças pagas de maternidade, subsídios de desemprego decentes, saúde e
educação para todos. Não é bem assim nem é essa a descrição da tarefa que Von der
Leyen atribui ao comissário responsável, o grego Margaritis
Schinas. Camino
Mortera-Martinez, investigadora das questões de Justiça e Assuntos Internos da
UE do Centre for European Reform de Londres, começa por lembrar que o
trabalho do comissário grego será “coordenar as políticas de migração e asilo,
promovendo a integração e garantindo que os europeus estão protegidos do
terrorismo e dos ataques cibernéticos”. É esta ligação directa entre imigração
e segurança que não permite uma interpretação mais benévola da nova função
criada por Von der Leyen. “Ser tão directo ao ponto de ligar a necessidade de
gerir a imigração com a necessidade de proteger o ‘modo de vida europeu’ (seja
o que for que isto queira dizer) é roubar uma página ao livro de receitas dos
movimentos populistas.” A investigadora lembra que as migrações
são um tema fundamental
da agenda política europeia e bem mereciam uma vice-presidência, só que numa
perspectiva distinta: a liberdade de movimentos, os controlos fronteiriços
e a necessidade de criar políticas comuns de asilo e de imigração. Tão simples
quanto isso. A versão da nova presidente da Comissão é “iludir” a
importância da questão, “acenando à agenda populista com uma mão, enquanto
tenta manter a outra limpa de qualquer acusação”. É uma crítica dura, mas provavelmente certeira.
“Talvez seja outra forma de dizer que vamos manter a Europa branca e cristã”, escreve Paul Dallison no site Politico. eu. Orbán passa a
vida a defender a “cristandade”, acusando a democracia-cristã europeia de ter
abandonado os seus valores.
Nada
disto implica uma condenação generalizada das escolhas feitas por Von der Leyen,
nem a ambição política que imprimiu à sua agenda e à escolha dos seus
comissários. Mas é um preocupante sinal dos tempos. Defender o modo de vida
europeu é de facto aplicar o artº 2º do Tratado de Lisboa como refere. Se de um modo muito
simplista pudéssemos caracterizar como modelos de sociedade , o modelo
Americano liderado obviamente pelos EUA, o modelo Asiático liderado pela China
e o modelo Europeu assente nas regras da UE, diria que sem entrar em avaliações mais detalhadas o modelo
de sociedade mais equilibrado, no meu ponto de vista, será o Europeu. Porque
não defende-lo sem complexos e aperfeiçoando e melhorando tal modelo ?!
COMENTÁRIOS
José Manuel Martins: o ministério da Europa é
simplesmente uma cedência à Europa. Desde quando tenho q dar contas aos
marcianos, selenitas, venusianos e transgibraltinos? É para não ter q vir a
ceder 'aos populistas' e à sua agenda pró-europeia e anti-anti-europeus q é
muito boa ideia criar a associação de amizade europa-europa. A europa é boa, é
europeia, é composta por europeus e por uma saudável fatia de extra-europeus de
todas as variantes, e basta, chega, e sobra. Outra coisa: a solidariedade ocidental,
pelos acordos de Paris, com o desenvolvimento do 3º mundo - é com o
desenvolvimento do 3º mundo. O 3º mundo duplicar a população em 30 anos não é
desenvolver-se, e a solidariedade europeia não é com esse anti-desenvolvimento,
é com o desenvolvimento: para os níveis demográficos actuais, não os
exponenciais
manuelserra72, 15.09.2019: É pena não conseguir ler o
texto todo... Infelizmente acho que o proteger o modo de vida europeu é
positivo, mas temo que seja só retórica.
Sum Legend, 15.09.2019 : "Fez parte de um Governo que abriu generosamente as portas a centenas
de milhares de refugiados, para não ter consciência da importância e da
delicadeza...". Sra Teresa, e' por ela ter a exacta consciência da
importância e delicadeza que criou essa ideia de proteger o modo de vida
europeu.
"reacção muito dura de muita gente [...]
sobretudo à designação de uma vice-presidência responsável por “proteger o modo
de vida europeu”, vista imediatamente como uma cedência aos populistas e à sua
agenda anti-imigrantes.". Claro, o mais importante não é proteger o modo
de vida europeu, é não ofender os imigrantes ilegais. Não é a extrema-direita
que me mete medo, são estes que se mostram muito ofendidos por se querer proteger
o modo de vida europeu... Por eles, e para favorecer meia-dúzia de imigrantes
ilegais, prejudicam-se milhoes.
Sum Legend, 15.09.2019: A FN existe/existiu vários anos mas praticamente nunca ninguém lhes ligou
nenhuma ou deu muita importância. Foi a abertura de portas de maneira libertina
para quem quis vir, que o povo começou a abrir os olhos porque os partidos
ditos "liberais" não ouvem o que o seu povo quer, mas sim o que eles
acham que fica bem no Facebook e Twitter. Não são os migrantes ilegais que têm
culpa, é quem os deixou/deixa entrar. Os políticos europeus que sejam mais
comedidos, que haja mais controle na imigração, que a politica europeia volte à
merecida estabilidade. Ao satisfazermos os de fora, acabamos com os de dentro.
Ainda ninguém percebeu isso, ou então não quis admitir. Ainda agora o novo
governo italiano aceitou um barco depois de 6 dias no mar, porque os migrantes
vão ser distribuídos. Salvini?
TM,
15.09.2019: A FN foi a final
Presidencial no inicio do século! Já se falava de imigrantes nessa altura?
viana: Se formos um pouco maquiavélicos, até se poderia supor
que Von der Leyen entregou madeira à direita populista para que ela se possa
imolar perante o parlamento europeu. No processo, enfraquecendo o seu poder e
capacidade de manobra no seio da futura Comissão. Porque é óbvio que o
Parlamento Europeu vai exigir uma alteração da denominação do pelouro em causa,
e provavelmente outros, ao mesmo tempo que vai bloquear, ou impor a mudança de
pelouro, a certos nomes queridos aos governos de Budapeste e Varsóvia. O facto
de os Liberais já se terem manifestado frontalmente contra os aspectos anteriormente
mencionados, e sem estes a Comissão não passa no PE, assegura que assim será.
Ora tudo isto era completamente previsível para qualquer pessoa minimamente
inteligente, como Von der Leyen será.
Poema
da Pedra Lioz (Internet)
(“Teatro
do Mundo,” 1958 – in POESIAS COMPLETAS)
Álvaro Góis,
Rui Mamede,
filhos de António Brandão,
naturais de Cantanhede,
pedreiros de profissão,
de sombrias cataduras
como bisontes lendários,
modelam ternas figuras
na lentidão dos calcários.
Ali,
no esconso recanto,
só o túmulo, e mais nada,
suspenso no roxo pranto
de uma fresta geminada.
Mas no silêncio da nave,
como um cinzel que batuca,
soa sempre um truca…truca…
lento, pausado, suave,
truca, truca, truca, truca,
sob a abóbada romântica,
como um cinzel que batuca
numa insistência satânica:
truca, truca, truca, truca,
truca, truca, truca, truca.
Álvaro
Góis,
Rui Mamede,
filhos de António Brandão,
naturais de Cantanhede,
ambos vivos ali estão,
truca, truca, truca, truca,
vestidos de surrobeco
e acocorados no chão,
truca, truca, truca, truca.
No
friso, largo de um palmo,
que dá volta a toda a arca,
um Cristo, de gesto calmo,
assiste ao chegar da barca.
Homens de vária feição,
barrigudos e contentes,
mostram, no riso dos dentes
o gozo da salvação.
Anjinhos de longas vestes,
e cabelo aos caracóis,
tocam pífaros celestes,
entre cometas e sóis.
Mulheres e homens, sem paz,
esgazeados de remorsos,
desistem de fazer esforços,
entregam-se a Satanás.
Fixando
a pedra, mirando-a,
quanto mais o olhar se educa,
mais se estende o truca…truca…
que enche a nave, transbordando-a,
truca, truca, truca, truca
truca, truca, truca, truca.
No
desmedido caixão,
grande senhor ali jaz.
Pupilo de Satanás?
Alma pura, de eleição?
Dom Afonso ou Dom João?
Para o caso tanto faz.
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