quinta-feira, 2 de julho de 2020

Mandou destruir as pontes



O Rei da Bélgica, Alberto I, para impedir que as tropas alemãs invadissem a França. David Martelo conta, no seu Blog “A Bigorna”, de tanto interesse. Enviado por João Sena.

AGOSTO DE 1914 – A INVASÃO DA BÉLGICA
A Bélgica, tendo repudiado o ultimato alemão que, também a 2 de Agosto, exigia o direito de passagem das suas tropas a caminho do Norte da França, preparava-se para resistir ao invasor. Nessa ocasião, Edward Grey 1 endereçou ao embaixador britânico em Berlim, Edward Goschen, a seguinte mensagem: «O rei dos Belgas dirigiu-se a S. M. o Rei, solicitando uma intervenção diplomática em favor da Bélgica, nos termos seguintes: “Recordando-me das numerosas provas de amizade de Vossa Majestade e do seu predecessor, assim como da atitude amistosa da Inglaterra em 1870 e ainda do testemunho que acabais de nos dar, faço um supremo apelo à intervenção diplomática do governo de Vossa Majestade, para a salvaguarda da integridade da Bélgica.» 2 De nada valeriam as diligências diplomáticas britânicas perante a premência do desencadeamento das operações militares. No dia 3 de Agosto, claramente para consumo interno, o governo alemão apresentou no Reichstag um documento no qual, sob a pressão dos acontecimentos, se declarava que a Alemanha se via envolvida numa guerra defensiva, contra uma agressão da Rússia. A omissão a qualquer referência à França e à Grã-Bretanha decorria, naturalmente, da circunstância de não haver, ainda, o estado de guerra com aqueles países. Entretanto, ao findar a tarde desse mesmo dia, o embaixador germânico em Paris, Von Schoen, apresentou-se no gabinete de Viviani 3. Ia com a missão de ler uma nota na qual a Alemanha começava por acusar a França de actos de «hostilidade organizada», de ataques aéreos a Nuremberga e Karlsruhe e de violação da neutralidade belga sob a forma de voos de reconhecimento. Face a essas alegadas violações, «o Império Alemão considerava-se em estado de guerra com a França».4 Era evidente que a intenção do governo alemão era, por um lado, convencer o seu povo de que a guerra resultava de uma agressão externa, e, por outro, poder iniciar imediatamente as operações a ocidente, para tirar partido da expectável lentidão da mobilização russa. Só essas circunstâncias podem justificar – se é que justificam mesmo – o ter a Alemanha prescindido da vantagem moral que poderia usufruir de ser a França a declarar-lhe guerra, como seria a sequência lógica da aplicação da Convenção Franco-Russa. O governo francês, nessa eventualidade, teria de passar pela provação de aparecer diante da Assembleia Nacional para obter a anuência parlamentar para uma declaração de guerra à Alemanha, com o único argumento de que era para cumprimento de um compromisso com a Rússia, no seguimento de uma declaração de guerra da Alemanha à Rússia. Custa a imaginar que um tal debate parlamentar fosse fácil para o governo de Viviani. Assim, o primeiro-ministro francês teve, apenas, de ir ao parlamento anunciar que a Alemanha declarara guerra à França, que ela pretendia «confiscar as liberdades da Europa» 5 e que, portanto, a França se via forçada, muito a contragosto, a defender-se. Não houve debate nem perguntas. Os termos da Convenção com a Rússia não foram sequer invocados e tão-pouco o texto do tratado foi transcrito no Livre Jaune francês, publicado em 1914. E, se veio a ser publicado em 1918, foi porque o governo de Paris soube que o governo revolucionário russo o iria publicar.6 Ainda na noite de 3 de Agosto, o rei Alberto da Bélgica estava consciente da iminência da invasão do seu país. Dando mostras de uma rara capacidade de decisão, ordenou a imediata destruição das pontes sobre o rio Mosa, em Liège, bem como dos túneis e pontes das vias-férreas da fronteira com o Luxemburgo. Entretanto, em Londres, o governo britânico continuava dividido quanto à conveniência do envolvimento numa guerra continental. Na reunião matinal de 3 de Agosto, o primeiro-ministro Asquith começou por dizer que tinha recebido os pedidos de resignação de quatro membros do

1 Ministro dos Negócios Estrangeiros britânico. 2 THOMASSON, Raoul de, Le revers de 1914 et ses causes, p. 91. 3 Primeiro-ministro da França. 4 TUCKMAN, Barbara W., Os canhões de Agosto, p. 122. 5 DEMARTIAL, Georges, Le mythe des guerres de légitime défense, p. 30. 6 Ibidem, p. 28. 2

governo, por discordarem do provável abandono da neutralidade por parte do governo de Londres. Os ministros demissionários eram Burns, Morley, Simon e Beauchamp. Prosseguindo na sua apreciação a esta situação, afirmou Asquith: «Julgo saber, além disso, que muitos outros membros do governo, talvez a maioria, partilham das suas opiniões [dos demissionários], embora, presentemente, não sigam o seu exemplo. Garantiram-me que a maioria do nosso partido, na Câmara dos Comuns, tende a posicionar-se no mesmo sentido. Bem, se a situação em que o país se encontra fosse normal, a minha solução seria perfeitamente clara. Iria imediatamente ao rei e pedia-lhe para arranjar outros ministros. Mas a situação nacional está longe de ser normal, e não posso persuadir-me de que o outro partido é liderado por homens, ou inclui homens, capazes de lidar com ela. Assim sendo, ocorreu-me, naturalmente, a ideia de uma coligação. Mas as coligações quase nunca resultaram bem na nossa história. Não posso encarar esperançadamente esta hipótese. Vocês [ou nós] podem [podemos] formar uma coligação parcial. De qualquer maneira, é meu dever colocar a minha [ou a] posição perante o Conselho de Ministros.»7 Horas depois, Asquith logrou convencer Simon e Beauchamp a manterem-se em funções, concretizando-se, apenas, as saídas de Morley e Burns. O Memorando de Resignação de Lorde Morley of Blackburn só foi conhecido depois da sua morte, em 1923. Essa circunstância não impediu, naturalmente, que se conhecesse a sua oposição à guerra, mas consentiu que se pensasse e se publicitasse que fora a violação da neutralidade da Bélgica o motivo pelo qual a Grã-Bretanha decidira entrar na guerra. Todo o processo que levou à demissão de Morley demonstra, no entanto, que a sua decisão estava tomada antes desse acontecimento, porque já se convencera de que o governo iria para a guerra por causa da França, com ou sem violação da neutralidade belga por parte da Alemanha. Depois da reunião do Conselho de Ministros, foi a vez de Edward Grey ir ao Parlamento apresentar aos deputados a posição do governo. Numa longa intervenção, o ministro dos Negócios Estrangeiros dissertou sobre os esforços que o governo desenvolvera para tentar salvar a paz e fez questão de sublinhar que, tal como já fora anteriormente anunciado, não havia nenhum compromisso secreto que impedisse a Câmara de decidir livremente sobre a futura atitude da Grã-Bretanha. Depois, a pouco e pouco, foi revelando as conversações que, desde 1906, se haviam estabelecido com o governo de Paris, no plano político e no plano militar, salientando, designadamente, o seguinte: «A esquadra francesa encontra-se no Mediterrâneo e, desde há alguns anos, ali foi concentrada atendendo aos sentimentos de confiança e amizade existentes entre os dois países. O meu sentimento vai no sentido de que se uma esquadra de uma potência estrangeira, envolvida numa guerra com a França que esta não provocou e em que não foi o agressor, vier para o Canal de Inglaterra e bombardear e atacar a costa indefesa da França, não podemos pôr-nos de lado.»8 Não havia, até este ponto do discurso, qualquer alusão à hipótese da violação da neutralidade da Bélgica. Só mais adiante, no seu discurso, Grey revelaria as diligências que fizera junto dos governos de Paris e de Berlim para saber se essa neutralidade seria respeitada e o teor das respostas que obtivera. Depois, prosseguindo na informação à Câmara dos Comuns, Grey entrou finalmente naquela que deveria ser a parte essencial da sua argumentação: os incomensuráveis danos geopolíticos que poderiam resultar de uma vitória da Alemanha sobre a França e do risco que poderiam correr as independências dos três pequenos países banhados pelo Mar do Norte (Bélgica, Holanda e Dinamarca). O cenário de uma só grande potência a dominar todo o oeste do Continente era algo que a GrãBretanha não poderia aceitar. Ora, esta argumentação era tão válida em 3 de Agosto como em qualquer dos dias das últimas duas semanas. É evidente que o governo de Londres sabia que, nos termos do Tratado de Londres, de 1839, não devia furtar-se à eventualidade de intervir, no caso de a Bélgica ser invadida. A dúvida que persistia era sobre o tipo de “intervenção” a implementar, dependendo da extensão da violação territorial e, sobretudo, do grau de resistência oferecido pelo Exército Belga. A invasão acabou por se consumar a 4 de Agosto, pouco depois das oito da manhã, na localidade fronteiriça de Gemerich, a cerca de 50 km de Liège. A força invasora, sob o comando do general Emmich, articulava-se em 3

7 Relato registado por Lorde Morley, conforme MORLEY, John, Memorandum on resignation, http://tmh.floonet.net/articles/lordmorley.shtml 8 REID, Robert (The Earl Loreburn), How war came, p. 222.

3 divisões de cavalaria, 6 brigadas de infantaria, diversa artilharia e outras unidades de apoio. Ao anoitecer desse dia, a cabeça dessa força atingiu o rio Mosa, próximo de Visé. Ao ter conhecimento da invasão da Bélgica, no próprio dia 4 de Agosto, e da determinação do rei Alberto I e do seu governo em resistir ao invasor, o governo de Londres já não tinha como se esquivar às suas responsabilidades, pelo que decretou a mobilização e instruiu o seu embaixador em Berlim no sentido de apresentar ao chanceler alemão uma nota que, em boa verdade, acabava por constituir um verdadeiro ultimato. Nesse documento, declarava-se que a Grã-Bretanha se via obrigada «a defender a neutralidade da Bélgica e a observação do Tratado, do qual a Alemanha era igualmente signatária»9 . Depois, deixando espaço para um recuo das tropas invasoras, solicitava uma resposta satisfatória até à meia-noite desse mesmo dia. No caso de essa resposta não ser recebida, o embaixador britânico pediria o seu passaporte – forma diplomática de anunciar uma próxima declaração de guerra. Apesar da posição britânica ser a única que correspondia ao cumprimento dos seus compromissos, os alemães colocaram-se no papel de ofendidos e reagiram como se acabassem de ser vilmente atraiçoados. O almirante Tirpitz, certamente lembrado do ultimato que, em 1890, o governo de Londres enviara ao governo português, a propósito da disputa pelos territórios compreendidos entre Angola e Moçambique, afirmou mesmo que os britânicos não podiam «tratar-nos como se fôssemos Portugal».10 Ainda nessa noite de 4 de Agosto, o embaixador britânico em Berlim, Edward Goschen, avistou-se uma última vez com o chanceler alemão. Dessa memorável entrevista, Goschen enviou para Grey o seguinte relato: «Encontrei o chanceler11 muito agitado. Sua Excelência começou imediatamente uma arenga que durou cerca de 20 minutos. Afirmou que o passo dado pelo governo de Sua Majestade era de certo modo terrível, só por causa da palavra “neutralidade”, uma palavra que, em tempo de guerra havia sido tantas vezes desprezada. Por um pedaço de papel, a Inglaterra lança-se numa guerra contra uma nação irmã, cujo mais caro desejo é manter com ela relações amistosas. Todos os seus esforços nessa direcção foram tornados inúteis, conforme eu sabia, por este último e terrível passo, e a política à qual, como eu sabia, ele se tinha devotado desde que assumira funções, desmoronara-se como um castelo de cartas. [...] Respondi que, do mesmo modo que ele e o Senhor Von Jagow12 pretendiam que eu compreendesse que, por razões estratégicas, era uma questão de vida ou de morte para a Alemanha avançar através da Bélgica e violar a sua neutralidade, também eu desejava que compreendesse que era, por assim dizer, uma questão de “vida ou de morte” para a honra da Grã-Bretanha que ela mantivesse o seu solene compromisso de fazer tudo o que pudesse para defender a neutralidade da Bélgica em caso de ataque. Esse compromisso solene tem que ser respeitado, senão, que confiança poderia alguém ter nos compromissos assumidos pela Grã-Bretanha no futuro? O chanceler replicou: mas a que preço esse compromisso vai ser mantido? O governo britânico pensou nisso? Dei a entender a Sua Excelência, tão completamente quanto me foi possível, que o receio de consequências era algo que dificilmente podia ser visto como desculpa para quebrar um compromisso solene. Mas Sua Excelência estava tão excitado, tão evidentemente esmagado pela notícia da nossa acção e tão pouco disponível para ouvir a voz da razão que me abstive de atirar mais combustível para a fogueira através de mais argumentos. Quando estava para me retirar, disse-me que o choque de ver a Grã-Bretanha juntar-se aos inimigos da Alemanha era tanto maior quanto era certo que, até ao último momento, ele e o seu governo tinham trabalhado connosco e apoiado os nossos esforços para manter a paz entre a Áustria e a Rússia. Admiti que assim sucedera e acrescentei que isso era parte da tragédia que viu as duas nações afastarem-se uma da outra justamente no momento em que as relações entre elas tinham vindo a ser mais amistosas e cordiais do que haviam sido durante muitos anos.».13 Não tendo havido, dentro do prazo estipulado, qualquer resposta de Berlim, a Grã-Bretanha considerou-se em guerra com a Alemanha a partir da meia-noite de 4 de Agosto (23 horas em Londres). Mesmo assim, a decisão de enviar o Corpo Expedicionário Britânico para França só seria tomada a 6 de

9 TUCKMAN, Barbara W., Idem, p. 128. 10 Ibidem, p. 129. 11 Bethmann-Hollweg. 12 Ministro dos Negócios Estrangeiros da Alemanha. 13 FAY, Sidney, The Origins Of The World War, Vol. II, pp. 545-546.

Agosto. As forças terrestres britânicas iam para a guerra sem que tivesse havido qualquer preparação séria para o efeito. O general Mahon, responsável pela logística no Ministério da Guerra, haveria de descrever a sua espinhosa missão nos seguintes termos: «Providenciar a partir de nada, ou de quase nada, as prodigiosas necessidades de um exército imenso era uma tarefa quase super-humana nas suas dificuldades. Nenhum dos políticos que poderiam ter de colocar as forças armadas em pé-de-guerra tinha pensado em armazenar reservas de artilharia, espingardas ou munições em quantidades suficientes para permitir um rápido aumento de efectivos, se tal se revelasse necessário, e foi-nos dito que eles sabiam que seria necessário. Quando chegou a altura, não havia nada com que pudéssemos começar. Não havia maquinaria, em muitos casos não havia matéria-prima nem havia trabalhadores treinados para a tarefa.»14 Para completar o quadro de guerra generalizado, no dia 5 de Agosto a Áustria-Hungria declarou a guerra à Rússia. Das potências ligadas pela Tripla Aliança só a Itália permaneceu neutral. A nível interno, o apoio à participação na guerra era muito reduzido. Católicos e socialistas coincidiam nessa posição. Uma das figuras mais destacadas do socialismo italiano, Benito Mussolini, editor do Avanti!, fora mesmo ao ponto de ameaçar com uma revolução, no caso de o governo decidir a entrada na guerra.15 Assim sendo, em 1 de Agosto, o ministro dos Negócios Estrangeiros italiano, marquês de San Giuliano, informou o embaixador alemão em Roma de que, embora a Itália se não sentisse obrigada a entrar na guerra, reservava a opção de «subsequentemente, considerar como poderia ir em auxílio dos seus aliados, quando e se os seus interesses forem salvaguardados por acordos prévios e precisos».16 Esta atitude cautelosa mereceria do embaixador austríaco em Roma, o seguinte comentário: «Fiquei com a impressão de que era uma questão de chantagem...[...] A Itália o que pretende é ser paga antecipadamente, tenha a guerra características locais ou gerais17 Posteriormente, apesar dos termos da declaração de guerra da Alemanha à França fazerem deste país o agressor, o governo de Roma, liderado por António Salandra, confirmou que não entendia oportuno envolver-se no conflito, declarando a sua neutralidade em 3 de Agosto. Tão-pouco terá acreditado na versão alemã sobre as violações francesas, o que, nos estritos termos do tratado, o dispensava de qualquer colaboração. O facto de a Áustria ter sob o seu domínio o Trentino, o AltoÁdige e Trieste, províncias com importantes percentagens de italianos, também não favorecia a colaboração com o poderoso vizinho. De resto, o futuro dar-lhe-ia razão. Beligerante ao lado dos Aliados, a partir de 1915, a Itália, no final da guerra, obteria a anexação dos três territórios, aproveitando o desmembramento do Império dos Habsburgos. Ao iniciarem-se as operações militares, já poucos se lembravam de umas notícias sobre a Sérvia que, nos finais de Junho, haviam feito as manchetes dos jornais. Tudo ocorrera tão depressa, e de uma forma tão pouco visível pelo cidadão comum, que a própria percepção do perigo como que se embotou. Só assim se entende o teor do registo oficial britânico da batalha de Mons, travada a 23 de Agosto de 1914, quando a invasão da Bélgica já se iniciara havia 19 dias: «O dia 23, um domingo, amanheceu com nevoeiro e chuva, mas pelas 10 horas fez-se um dia bonito. Tocavam os sinos e viam-se ir para a missa, com os seus fatos domingueiros, os habitantes das aldeias junto do canal, como se a guerra fosse uma coisa distante. Os comboios passavam para Mons, apinhados de pessoas que ali iam passar o dia feriado, como de costume».18
David Martelo – 2013

14 REID, Robert (The Earl Loreburn), Idem, pp. 247-248. 15 Poucos meses volvidos, em Novembro de 1914, Mussolini passaria a defender a participação da Itália na guerra, mas, tal como haveria de suceder em 1915, contra o militarismo dos Impérios Centrais. 16 JOLL, James, The Origins of the First World War, pp. 34-35. 17 Ibidem, p. 35. 18 EDMONDS, James, History of the Great War Military Operations, p. 7

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