Deve ser custoso, para o soldado que
matou, arcar, na sua vida, com o peso da morte que praticou por ordem superior.
O mesmo para os carrascos que matam, a isso obrigados. Os que lançaram as
bombas sobre as duas cidades japonesas, poderiam viver depois, e beijar os
filhos, esquecidamente? O Holocausto, os milhões de mortos, a própria Igreja
insensível nos seus autos-de-fé… o Mal sempre foi banalizado, afinal, a Bíblia
também o conta, e muitas vezes por ordem superior, do Jeová indisposto. Vivemos
hoje mergulhados, no nosso bem-estar de sofá e comunicações à distância, a
saber das misérias que grassam lá fora – muitas vezes também cá dentro, - com a
sensação de que somos todos responsáveis pelos males do mundo, as infâncias desvalidas,
as velhices solitárias, inúteis na solução, egoístas na indiferença, debruçados
sobre os nossos próprios mundos ou o das saias da Elvira . A cumplicidade de um povo com
um monstro humano é algo de inexplicável. Todavia aconteceu. Quem somos nós
hoje, para julgar, quando o Mal continua por aí, e nós deixamos? E os incêndios
de origem criminosa que se riem da nossa impotência também criminosa?
Banalização do Mal, banalização da Vida, afinal. Leiam-se, sim, os textos de Francisco Assis e de Jorge Almeida Fernandes, explícitos e objectivos sobre esses que colaboraram
nas monstruosidades nazis, por obediência ou gosto, agora em julgamento…
I - OPINIÃO
Um julgamento
importante
Como se comportaria cada um de nós se
lhe tivesse sido dado viver naquela época, naquelas precisas circunstâncias?
FRANCISCO ASSIS
PÚBLICO, 27 DE JUNHO
DE 2020
Na semana
passada aqui mesmo, nesta coluna, fiz uma referência fugaz a Hannah
Arendt e a um dos
seus conceitos mais conhecidos, o da banalidade do mal. Hoje volto ao
assunto, depois de ter lido uma reportagem sobre um insólito julgamento. Bruno
Dey,
um homem de noventa e três anos, antigo
guarda no campo de concentração de Stutthof, é
acusado da prática de graves crimes no período decorrido entre 9 de Agosto de
1944 e 26 de Abril de 1945. Como nessa altura tinha apenas dezassete anos o
seu julgamento está a decorrer no Tribunal de Menores de Hamburgo. A
acusação sustenta a tese de que ele terá participado no assassinato de cinco
mil e duzentas pessoas, já que impediu a fuga, a revolta e a libertação dos
prisioneiros. Essa conduta transformou-o automaticamente numa peça de uma
monstruosa “máquina de matar”.
A defesa de Bruno Dey
recorre ao argumento que Eichmann celebrizou no mediático julgamento de
Jerusalém, decorrido no início dos anos sessenta: o argumento da obediência
burocrática. Inseridos numa estrutura
administrativa inspirada nos princípios da autoridade absoluta, da
hierarquização rígida e da dependência acrítica, não lhes restaria senão
obedecer. Num sistema desses a primeira vítima seria o próprio burocrata
exemplar, uma vez que removida a sua capacidade de livre arbítrio lhe era
negada a condição de ser moral. Passava a
ser menos do que um homem. A tese da defesa destes acusados assenta, no
fundo, na ideia de que, por circunstâncias excepcionais, eles próprios foram
remetidos para um estatuto sub-humano. Estavam impedidos de agir moralmente.
Ora, é essa ideia que a acusação contesta veementemente: o ser humano nunca
pode alegar a sua própria morte moral como justificação para a participação em
actos criminosos.
Fritz Bauer, o
conhecido procurador alemão responsável pelos primeiros processos relativos ao
campo de concentração de Auschwitz, afirmou a dado momento: “Este sistema monstruoso só funcionava porque todos
participavam nele. Bastava uma só pessoa, um só funcionário, contrariar uma
ordem e todo o sistema poderia ter sido afectado. É por isso que aqueles que
eram habitualmente apelidados de pequenos foram indispensáveis e, como tal,
devem ser penalmente responsabilizados.”.
A questão não é de abordagem simples e, por isso mesmo, suscitou
ao longo de várias décadas um amplo debate jurídico e filosófico.
Hannah Arendt escreveu
textos magníficos – e muito polémicos – a propósito do julgamento de Eichmann, que acompanhou in loco. As suas reflexões atingiram tão raros níveis de
profundidade e de complexidade que lhe valeram a incompreensão de largos
sectores da própria comunidade judaica.
Os ataques a que foi submetida revestiram-se, aliás, de uma impressionante violência.
Arendt não teve medo de enfrentar o problema do mal e recusou o caminho
da retórica moralista ou do discurso político oportunista. Retirou várias conclusões que exprimiu em fórmulas
muito eloquentes. Uma delas é particularmente sugestiva e merece ser citada: “Um
funcionário, quando não é nada mais do que um funcionário, é alguém muito
perigoso.” O homem reduzido à dimensão de uma
peça burocrática facilmente se transforma num instrumento do mal. Foi isso que
aconteceu, quer no totalitarismo nazi, quer no totalitarismo soviético.
O julgamento que agora está a
decorrer em Hamburgo concita, naturalmente, um grande interesse junto da
opinião pública alemã. Não é caso para menos, dado o que está em causa. De
resto, a importância deste assunto extravasa as fronteiras germânicas e
interpela toda a Humanidade. Como
se comportaria cada um de nós se lhe tivesse sido dado viver naquela época,
naquelas precisas circunstâncias? Günter Grass
acabou por reconhecer, já com provecta idade, que tinha pertencido às temíveis
Waffen-SS durante a sua adolescência. Com
quinze anos ofereceu-se como voluntário para as Forças Armadas e, dois anos
depois, estava integrado numa Divisão das Waffen-SS em Dresden. O autor
de O Tambor, extraordinária
metáfora contra o nazismo adaptada ao cinema por Volker Schlöndorf, tinha,
afinal de contas, sido um jovem militante nazi. Curiosamente, Grass
estava nessa Divisão das SS na mesma altura em que Bruno Dey, exactamente com a
mesma idade – dezassete anos – trabalhava como guarda no sinistro campo de
concentração de Stutthof.
O que não podemos ignorar é que a
anulação da capacidade de auto-questionamento e da função crítica conduz
inevitavelmente à alienação da liberdade. A cultura ocidental, hoje muitas vezes tão levianamente atacada,
distingue-se justamente por ter desenvolvido como nenhuma outra essa capacidade
de autoquestionamento. É algo que vem de longe, do mundo grego clássico e que
esteve na origem de duas importantíssimas inovações: a filosofia e a
democracia.
Militante do PS
TÓPICOS
COMENTÁRIOS
nelsonfari
EXPERIENTE: Tantas questões levantadas num tema onde, numa limitada página,
fica muito por dizer. E muitas situações paralelas à enunciada, com a força de
se passar no país da excepção- curioso, a Alemanha é, hoje, um gigante de pés
de barro, economicamente poderosa mas condicionada historicamente e, para todos
os efeitos, de soberania, ainda hoje, limitada. Os horrores da História levam
um longo tempo de dissipação). Dois casos da banalidade do mal: o regime de
Vichy que deportou para o extermínio milhares e milhares de judeus, no período
dos cinquenta meses da duração do governo de Pétain, tema ainda hoje não
esquecido em França; a banalidade do mal das ditaduras em geral e, relembrando
Lucena, fico-me pela designação de corporativismo português, mas a Pide, as
prisões, os assassínios(vide Delgado) existiram. 28.06.2020
AndradeQB
INFLUENTE: Fará sempre mais sentido julgar alguém aos 90 anos pelo que fez
aos dezassete, do que julgar alguém pelo que fez alguém já enterrado séculos
atrás, como está muito na moda. Não tenho é por garantido que estes julgamentos
com meio século de atraso não sirvam para retirar urgência ao julgamento
imediato a crimes com as mesmas motivações que todos os anos acontecem. Contrariamente
ao que se quer fazer acreditar, a grande maioria dos recorrentes ataques
terroristas isolados tem cúmplices com tanta culpa como a culpa de um guarda de
um campo de concentração no impedimento da fuga dos prisioneiros e ninguém
parece muito preocupado em julgá-los. 27.06.2020
II - ANÁLISE
NO CORAÇÃO DA
TRAGÉDIA ALEMÃ
O paradoxo é que Günter Grass encarnou o combate pela memória dos
crimes nazis, mas mentiu durante 60 anos.
JORGE ALMEIDA
FERNANDES
PÚBLICO, 13 de
Abril de 2015
Foi um alemão do seu tempo. O passado
não cessa de atormentar e a memória nunca chega a ser apaziguada. Não se trata
de confundir o homem e a obra mas de sublinhar que ambos são atravessados pela
teia de tensões da tragédia do nazismo. Adolescente
fascinado pela propaganda hitleriana passa, depois da guerra, a ser perseguido
pelo sentimento da vergonha. Günter Grass bate-se para que a Alemanha reconheça o seu passado e rompa com a
hipocrisia, a mentira e a má consciência. O seu primeiro romance, O Tambor
de Lata, chocou os alemães ao
mostrar o entusiasmo popular perante o nazismo. Como
intelectual, tornou-se na “consciência crítica” da Alemanha e figura tutelar da
esquerda. Em 1970, acompanhou Willy Brandt na dramática cerimónia em que este
se ajoelhou perante o memorial da revolta do gueto de Varsóvia.
Depois da reunificação de 1990, que denunciou como uma “anexação” da
antiga RDA, Grass passa a designar os alemães não apenas como culpados mas
também como vítimas. Em 2006
(na véspera da publicação da sua autobiografia, Descascando
a Cebola), provoca
um choque ao revelar que combateu numa divisão das Waffen SS — a força de elite
nazi. Observou um
dos seus biógrafos, o historiador Thomas Serrier: “O paradoxo é que ele encarnou o
combate para libertar a palavra sobre o III Reich, encerrando-se ele próprio na
mentira durante 60 anos. E esta contradição entre os discurso e os actos obriga
a repensar a complexidade da memória do nazismo na Alemanha.” A direita alemã não escondeu a sua alegria ao
afirmar que o Nobel da Literatura perdia toda a autoridade moral. O semanário
Der Spiegel titulou: “A queda de um moralista.”
Ainda
aqui Grass foi um homem do seu tempo. “Toda a história da República Federal
Alemã foi feita por homens que apagaram uma parte do seu passado, que
trabalharam com um curriculum vitae incompleto ou que assumiram até uma nova
identidade. A continuidade das elites não é uma palavra vã. Chegou a haver 100
mil alemães do Oeste a viver sob um falso nome” — escreveu o historiador Jean-Marc
Dreyfus.
A justificação
Numa
entrevista de 2011 ao historiador israelita Tom Segev, disse Grass a propósito do episódio das SS: “Este debate é muito penoso para mim porque se foca
em duas páginas e meia em que contei o meu serviço nas Waffen SS. O que me
magoa é que haja pessoas a dizer que me alistei como voluntário. A verdade é
que fui mobilizado como milhares de jovens da minha idade. (...) A revelação
sobre o meu serviço nas Waffen SS é apenas um detalhe no livro e não é o mais
importante.” Um detalhe? Grass faz uma confissão num ponto simbolicamente
importante. Mas imediatamente o relativiza.
Justifica-se:
“Globalmente, a história central neste livro não é a minha mas
diz respeito a toda a Alemanha. Como é que um país ilustrado como a Alemanha
pôde ser atraído para o nazismo? É a questão que me obceca desde O Tambor de
Lata, o meu primeiro livro.”
Porque
não falou antes? “Porque tinha vergonha. Fui um estúpido jovem nazi. Só tive
consciência disso depois da guerra e sinto vergonha por isso. Hoje continuo a
ter vergonha. (...) Que seja claro. Eu não decidi revelar um segredo. Atingi
aquele ponto em que decidi confrontar-me com o facto de ainda muito jovem ter
acreditado no nazismo. O meu livro é sobre isso.”
Seis
décadas depois do fim da II Guerra Mundial, muitos alemães ficaram furiosos com
Grass. Uns por ele ter encoberto o passado. Outros por ele o ter revelado.
Alemanha vítima
Após
a reunificação a Alemanha quer ser um “país normal”. Não se trata de apagar o
passado. Poucos povos foram forçados a fazer um trabalho de memória como os
alemães. Mas, para parafrasear um historiador francês, “é um passado que não
passa”. Não passa, mas pode ser “corrigido”. A preocupação do segundo
Grass responde a uma expectativa das novas gerações.
Não
se trata de negar a culpa mas de fazer entrar na História o sofrimento dos
alemães e, assim, os redimir. Declara na mesma entrevista: “O mal e o crime não
se exprimiram apenas no Holocausto e não cessaram com o fim da guerra. Dos oito
milhões de soldados alemães capturados pelos russos, talvez dois milhões tenham
sobrevivido e os outros foram liquidados. Houve cerca de 14 milhões de refugiados
na Alemanha; metade do país passou da tirania nazi para a tirania comunista.
Não digo isto para diminuir o crime contra os judeus, mas o Holocausto não foi
o único crime. Carregamos a responsabilidade pelos crimes nazis. Mas esses
crimes resultaram em terríveis desastres para os alemães que, por sua vez,
também se tornaram vítimas.”
Foi
duramente criticado por historiadores como o alemão Peter Jahn: “Relativizar o extermínio de seis milhões de judeus
comparando-o com a fantasiosa liquidação de seis milhões de prisioneiros de
guerra alemães é algo que, do ponto de vista moral, exige uma explicação.”
Grass é uma testemunha das tragédias
alemãs que, ao longo da vida e em diferentes registos, sempre tentou exorcizar.
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