sexta-feira, 10 de julho de 2020

O peso da culpa



Deve ser custoso, para o soldado que matou, arcar, na sua vida, com o peso da morte que praticou por ordem superior. O mesmo para os carrascos que matam, a isso obrigados. Os que lançaram as bombas sobre as duas cidades japonesas, poderiam viver depois, e beijar os filhos, esquecidamente? O Holocausto, os milhões de mortos, a própria Igreja insensível nos seus autos-de-fé… o Mal sempre foi banalizado, afinal, a Bíblia também o conta, e muitas vezes por ordem superior, do Jeová indisposto. Vivemos hoje mergulhados, no nosso bem-estar de sofá e comunicações à distância, a saber das misérias que grassam lá fora – muitas vezes também cá dentro, - com a sensação de que somos todos responsáveis pelos males do mundo, as infâncias desvalidas, as velhices solitárias, inúteis na solução, egoístas na indiferença, debruçados sobre os nossos próprios mundos ou o das saias da Elvira . A cumplicidade de um povo com um monstro humano é algo de inexplicável. Todavia aconteceu. Quem somos nós hoje, para julgar, quando o Mal continua por aí, e nós deixamos? E os incêndios de origem criminosa que se riem da nossa impotência também criminosa? Banalização do Mal, banalização da Vida, afinal. Leiam-se, sim, os textos de Francisco Assis e de Jorge Almeida Fernandes, explícitos e objectivos sobre esses que colaboraram nas monstruosidades nazis, por obediência ou gosto, agora em julgamento…
I - OPINIÃO
Um julgamento importante
Como se comportaria cada um de nós se lhe tivesse sido dado viver naquela época, naquelas precisas circunstâncias?
FRANCISCO ASSIS
PÚBLICO, 27 DE JUNHO DE 2020
Na semana passada aqui mesmo, nesta coluna, fiz uma referência fugaz a Hannah Arendt e a um dos seus conceitos mais conhecidos, o da banalidade do mal. Hoje volto ao assunto, depois de ter lido uma reportagem sobre um insólito julgamento. Bruno Dey, um homem de noventa e três anos, antigo guarda no campo de concentração de Stutthof, é acusado da prática de graves crimes no período decorrido entre 9 de Agosto de 1944 e 26 de Abril de 1945. Como nessa altura tinha apenas dezassete anos o seu julgamento está a decorrer no Tribunal de Menores de Hamburgo. A acusação sustenta a tese de que ele terá participado no assassinato de cinco mil e duzentas pessoas, já que impediu a fuga, a revolta e a libertação dos prisioneiros. Essa conduta transformou-o automaticamente numa peça de uma monstruosa “máquina de matar”.
A defesa de Bruno Dey recorre ao argumento que Eichmann celebrizou no mediático julgamento de Jerusalém, decorrido no início dos anos sessenta: o argumento da obediência burocrática. Inseridos numa estrutura administrativa inspirada nos princípios da autoridade absoluta, da hierarquização rígida e da dependência acrítica, não lhes restaria senão obedecer. Num sistema desses a primeira vítima seria o próprio burocrata exemplar, uma vez que removida a sua capacidade de livre arbítrio lhe era negada a condição de ser moral. Passava a ser menos do que um homem. A tese da defesa destes acusados assenta, no fundo, na ideia de que, por circunstâncias excepcionais, eles próprios foram remetidos para um estatuto sub-humano. Estavam impedidos de agir moralmente. Ora, é essa ideia que a acusação contesta veementemente: o ser humano nunca pode alegar a sua própria morte moral como justificação para a participação em actos criminosos.
Fritz Bauer, o conhecido procurador alemão responsável pelos primeiros processos relativos ao campo de concentração de Auschwitz, afirmou a dado momento:Este sistema monstruoso só funcionava porque todos participavam nele. Bastava uma só pessoa, um só funcionário, contrariar uma ordem e todo o sistema poderia ter sido afectado. É por isso que aqueles que eram habitualmente apelidados de pequenos foram indispensáveis e, como tal, devem ser penalmente responsabilizados.”. A questão não é de abordagem simples e, por isso mesmo, suscitou ao longo de várias décadas um amplo debate jurídico e filosófico.
Hannah Arendt escreveu textos magníficos – e muito polémicos – a propósito do julgamento de Eichmann, que acompanhou in loco. As suas reflexões atingiram tão raros níveis de profundidade e de complexidade que lhe valeram a incompreensão de largos sectores da própria comunidade judaica. Os ataques a que foi submetida revestiram-se, aliás, de uma impressionante violência. Arendt não teve medo de enfrentar o problema do mal e recusou o caminho da retórica moralista ou do discurso político oportunista. Retirou várias conclusões que exprimiu em fórmulas muito eloquentes. Uma delas é particularmente sugestiva e merece ser citada: “Um funcionário, quando não é nada mais do que um funcionário, é alguém muito perigoso.” O homem reduzido à dimensão de uma peça burocrática facilmente se transforma num instrumento do mal. Foi isso que aconteceu, quer no totalitarismo nazi, quer no totalitarismo soviético.
O julgamento que agora está a decorrer em Hamburgo concita, naturalmente, um grande interesse junto da opinião pública alemã. Não é caso para menos, dado o que está em causa. De resto, a importância deste assunto extravasa as fronteiras germânicas e interpela toda a Humanidade. Como se comportaria cada um de nós se lhe tivesse sido dado viver naquela época, naquelas precisas circunstâncias? Günter Grass acabou por reconhecer, já com provecta idade, que tinha pertencido às temíveis Waffen-SS durante a sua adolescência. Com quinze anos ofereceu-se como voluntário para as Forças Armadas e, dois anos depois, estava integrado numa Divisão das Waffen-SS em Dresden. O autor de O Tambor, extraordinária metáfora contra o nazismo adaptada ao cinema por Volker Schlöndorf, tinha, afinal de contas, sido um jovem militante nazi. Curiosamente, Grass estava nessa Divisão das SS na mesma altura em que Bruno Dey, exactamente com a mesma idade – dezassete anos – trabalhava como guarda no sinistro campo de concentração de Stutthof.
O que não podemos ignorar é que a anulação da capacidade de auto-questionamento e da função crítica conduz inevitavelmente à alienação da liberdade. A cultura ocidental, hoje muitas vezes tão levianamente atacada, distingue-se justamente por ter desenvolvido como nenhuma outra essa capacidade de autoquestionamento. É algo que vem de longe, do mundo grego clássico e que esteve na origem de duas importantíssimas inovações: a filosofia e a democracia.
Militante do PS
TÓPICOS
COMENTÁRIOS
nelsonfari EXPERIENTE: Tantas questões levantadas num tema onde, numa limitada página, fica muito por dizer. E muitas situações paralelas à enunciada, com a força de se passar no país da excepção- curioso, a Alemanha é, hoje, um gigante de pés de barro, economicamente poderosa mas condicionada historicamente e, para todos os efeitos, de soberania, ainda hoje, limitada. Os horrores da História levam um longo tempo de dissipação). Dois casos da banalidade do mal: o regime de Vichy que deportou para o extermínio milhares e milhares de judeus, no período dos cinquenta meses da duração do governo de Pétain, tema ainda hoje não esquecido em França; a banalidade do mal das ditaduras em geral e, relembrando Lucena, fico-me pela designação de corporativismo português, mas a Pide, as prisões, os assassínios(vide Delgado) existiram. 28.06.2020
AndradeQB INFLUENTE: Fará sempre mais sentido julgar alguém aos 90 anos pelo que fez aos dezassete, do que julgar alguém pelo que fez alguém já enterrado séculos atrás, como está muito na moda. Não tenho é por garantido que estes julgamentos com meio século de atraso não sirvam para retirar urgência ao julgamento imediato a crimes com as mesmas motivações que todos os anos acontecem. Contrariamente ao que se quer fazer acreditar, a grande maioria dos recorrentes ataques terroristas isolados tem cúmplices com tanta culpa como a culpa de um guarda de um campo de concentração no impedimento da fuga dos prisioneiros e ninguém parece muito preocupado em julgá-los. 27.06.2020
II - ANÁLISE
NO CORAÇÃO DA TRAGÉDIA ALEMÃ
O paradoxo é que Günter Grass encarnou o combate pela memória dos crimes nazis, mas mentiu durante 60 anos.
JORGE ALMEIDA FERNANDES
PÚBLICO, 13 de Abril de 2015
Foi um alemão do seu tempo. O passado não cessa de atormentar e a memória nunca chega a ser apaziguada. Não se trata de confundir o homem e a obra mas de sublinhar que ambos são atravessados pela teia de tensões da tragédia do nazismo. Adolescente fascinado pela propaganda hitleriana passa, depois da guerra, a ser perseguido pelo sentimento da vergonha. Günter Grass bate-se para que a Alemanha reconheça o seu passado e rompa com a hipocrisia, a mentira e a má consciência. O seu primeiro romance, O Tambor de Lata, chocou os alemães ao mostrar o entusiasmo popular perante o nazismo. Como intelectual, tornou-se na “consciência crítica” da Alemanha e figura tutelar da esquerda. Em 1970, acompanhou Willy Brandt na dramática cerimónia em que este se ajoelhou perante o memorial da revolta do gueto de Varsóvia.
Depois da reunificação de 1990, que denunciou como uma “anexação” da antiga RDA, Grass passa a designar os alemães não apenas como culpados mas também como vítimas. Em 2006 (na véspera da publicação da sua autobiografia, Descascando a Cebola), provoca um choque ao revelar que combateu numa divisão das Waffen SS — a força de elite nazi. Observou um dos seus biógrafos, o historiador Thomas Serrier: “O paradoxo é que ele encarnou o combate para libertar a palavra sobre o III Reich, encerrando-se ele próprio na mentira durante 60 anos. E esta contradição entre os discurso e os actos obriga a repensar a complexidade da memória do nazismo na Alemanha.” A direita alemã não escondeu a sua alegria ao afirmar que o Nobel da Literatura perdia toda a autoridade moral. O semanário Der Spiegel titulou: “A queda de um moralista.”
Ainda aqui Grass foi um homem do seu tempo. “Toda a história da República Federal Alemã foi feita por homens que apagaram uma parte do seu passado, que trabalharam com um curriculum vitae incompleto ou que assumiram até uma nova identidade. A continuidade das elites não é uma palavra vã. Chegou a haver 100 mil alemães do Oeste a viver sob um falso nome” — escreveu o historiador Jean-Marc Dreyfus.
A justificação
Numa entrevista de 2011 ao historiador israelita Tom Segev, disse Grass a propósito do episódio das SS: “Este debate é muito penoso para mim porque se foca em duas páginas e meia em que contei o meu serviço nas Waffen SS. O que me magoa é que haja pessoas a dizer que me alistei como voluntário. A verdade é que fui mobilizado como milhares de jovens da minha idade. (...) A revelação sobre o meu serviço nas Waffen SS é apenas um detalhe no livro e não é o mais importante.” Um detalhe? Grass faz uma confissão num ponto simbolicamente importante. Mas imediatamente o relativiza.
Justifica-se: “Globalmente, a história central neste livro não é a minha mas diz respeito a toda a Alemanha. Como é que um país ilustrado como a Alemanha pôde ser atraído para o nazismo? É a questão que me obceca desde O Tambor de Lata, o meu primeiro livro.”
Porque não falou antes? “Porque tinha vergonha. Fui um estúpido jovem nazi. Só tive consciência disso depois da guerra e sinto vergonha por isso. Hoje continuo a ter vergonha. (...) Que seja claro. Eu não decidi revelar um segredo. Atingi aquele ponto em que decidi confrontar-me com o facto de ainda muito jovem ter acreditado no nazismo. O meu livro é sobre isso.”
Seis décadas depois do fim da II Guerra Mundial, muitos alemães ficaram furiosos com Grass. Uns por ele ter encoberto o passado. Outros por ele o ter revelado.
Alemanha vítima
Após a reunificação a Alemanha quer ser um “país normal”. Não se trata de apagar o passado. Poucos povos foram forçados a fazer um trabalho de memória como os alemães. Mas, para parafrasear um historiador francês, “é um passado que não passa”. Não passa, mas pode ser “corrigido”. A preocupação do segundo Grass responde a uma expectativa das novas gerações.
Não se trata de negar a culpa mas de fazer entrar na História o sofrimento dos alemães e, assim, os redimir. Declara na mesma entrevista: “O mal e o crime não se exprimiram apenas no Holocausto e não cessaram com o fim da guerra. Dos oito milhões de soldados alemães capturados pelos russos, talvez dois milhões tenham sobrevivido e os outros foram liquidados. Houve cerca de 14 milhões de refugiados na Alemanha; metade do país passou da tirania nazi para a tirania comunista. Não digo isto para diminuir o crime contra os judeus, mas o Holocausto não foi o único crime. Carregamos a responsabilidade pelos crimes nazis. Mas esses crimes resultaram em terríveis desastres para os alemães que, por sua vez, também se tornaram vítimas.”
Foi duramente criticado por historiadores como o alemão Peter Jahn: “Relativizar o extermínio de seis milhões de judeus comparando-o com a fantasiosa liquidação de seis milhões de prisioneiros de guerra alemães é algo que, do ponto de vista moral, exige uma explicação.”
Grass é uma testemunha das tragédias alemãs que, ao longo da vida e em diferentes registos, sempre tentou exorcizar.

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