segunda-feira, 20 de julho de 2020

Por via do confinamento



Os rebanhos devem ser postos nos redis. Mas “É só até mais ver, irmãs, é só até mais ver!”
Lembrei-me desta canção que me ficou no goto, quando, pela primeira vez a cantei no pátio de uma casa, onde passei uns dias com as colegas universitárias, na Gândara dos Olivais, coisa já bem remota mas que se me gravou na memória, por via da roda que formámos, nós, raparigas, a cantar essa toada repetitiva, de olhos fechados e mãos dadas, julgo que cruzados os braços, em postura de muita unção:
«Chegou a hora do adeus, nós vamos, pois, partir, chegou a hora do adeus, nós vamos reunir, é só até mais ver, irmãs, é só até mais ver (bis). Deus que nos pôs todas aqui nos fará encontrar (bis). É só até mais ver, irmãs (bis).
Abri um olho, e espreitei, por isso fixei o quadro, a roda, os braços cruzados, os olhos fechados, a compenetração, o discurso premonitório… mas logo o fechei, obediente, também compenetrada, no sentimento das palavras. É só até mais ver, irmãs.
Creio que nunca mais nos vimos, findados os cursos. Ficou a lembrança do pátio e da roda e a canção da irmandade. Foi uma colega virtuosa, ligada às catequeses da sua adolescência que organizou as tais férias, julgo que do meu primeiro ano de Coimbra.
Veio-me o incidente à lembrança, ao ler a crónica de António Barreto, preocupado com as possíveis decisões governamentais de ostracizar a liberdade de expressão do pensamento, reflexo de iguais procedimentos vividos e combatidos no outrora agora das nossas mundanais vivências.
A canção agora, com roda ou sem ela, não será de fraternidade, e são outros os irmãos. Mas é só até mais ver, na roda girante da vida. António Barreto não deve preocupar-se. Os confinamentos são sempre provisórios, embora por vezes o chão fique juncado dos que soçobraram. Todavia, faz bem em ir lembrando, forma de ir combatendo as barreiras contra o pensamento justo, o apoiado na razão…
OPINIÃO
Monitorizar o pensamento
Mal vai um país quando se começa a olhar, não para o que as pessoas fazem, mas sim para o que pensam, sentem e dizem! Muito mal vai um povo quando as autoridades pretendem estabelecer códigos morais, linhas divisórias de atitude e barreiras para os sentimentos!
ANTÓNIO BARRETO
PÚBLICO, 19 de Julho de 2020
Talvez seja coincidência, mas não parece! Um dia, por causa de um livro, seis dúzias de académicos empenhados subscrevem um manifesto no qual protestam contra a academia que protege a direita, dizem eles, que branqueia a extrema-direita, garantem, que ajuda o racismo, afirmam. Em poucas palavras, contra uma academia que não denuncia o discurso de ódio, resumem. No dia seguinte, são desvendados rumores de planos que o Governo faz para encomendar às universidades que vigiem o discurso do ódio, que supervisionem as redes sociais e que acompanhem as narrativas públicas sobre estrangeiros. Nada, lei ou palavra de ministro, é seguro. Por enquanto, “diz-se”, “vai pensar-se”… Mas o caminho está desbravado.
Na verdade, o que se anuncia é um dos mais violentos atentados contra a liberdade de expressão que Portugal conhece há décadas! Como quase sempre, sob a aparência de causas nobres (contra o racismo) e de sentimentos elevados (contra o ódio), o que na verdade se propõe é o estabelecimento de um cânone de virtudes e de um catecismo de valores. Os governantes e os cientistas sociais que assim se exprimem pretendem a “monitorização” dos discursos, actividade aparentemente inócua. O que na verdade querem é o estabelecimento de uma ordem. Para que serve “monitorizar”? Não tenhamos dúvidas: é um eufemismo para vigiar, policiar, registar e fiscalizar. É o que fazem as polícias, a PIDE, a KGB, a STASI e outras, vivas ou defuntas. É o que sempre fizeram as censuras. De repente, estas pessoas encontram o pretexto ideal: um partido fascista e um deputado xenófobo! Contra esse mal, desembainham espadas e alinham artilharia. Revelam-se os censores que são.
Os signatários do manifesto não escondem ao que vêm: impedir a universidade livre e plural, a fim de defender uma academia empenhada e vigilante! Os manifestantes não discutem o livro, não contestam as conclusões. Talvez nem sequer o tenham lido! Limitam-se a denunciar o autor, a sugerir a proibição, a recomendar o saneamento e a definir fronteiras para o pensamento admissível!
É pena ver entre aqueles signatários pessoas que não julgávamos capazes disto. Engano nosso! É uma desilusão contar entre os manifestantes pessoas que em tempos deram o seu nome a combates pela liberdade de expressão. Erro nosso! Eles lutavam pela sua liberdade, não pela de todos.
Depois do manifesto inquisitório, os pezinhos de lã do Governo disfarçam as botifarras da censura. Parece que o Governo vai abrir democrático concurso para aprovar cinco projectos de monitorização das expressões e das narrativas! Sempre com motivos nobres, claro: denunciar o ódio e observar o racismo!
É bem possível que estes planos alucinados não sejam mais do que isso, planos alucinados! Mas é melhor estarmos prevenidos. Há coisas que se fazem, rumores que se deixam correr e vagas intenções que chegam ao público com a missão de sondar os espíritos. Logo se verá depois se as coisas correm bem ou mal.
O mais provável é que estejamos diante da ambição de experimentar práticas de controlo da expressão, de censura e de intoxicação. Os pretextos, o racismo e a xenofobia, são tão consensuais que podem ser aproveitados para a criação de uma censura política e moral, que acabará por ser muito mais vasta do que aquelas perversões do espírito. Outras formas de expressão virão a seguir.
Tudo o que se descreve acima é selectivo. Evidentemente. O racismo, a xenofobia e a desigualdade são consideradas nefastas ou toleradas, conforme as conveniências políticas. A retórica da violência também: se destinada a inimigos de classe é aceitável; se dirigida a forças reaccionárias é valorizada; se endereçada a certas etnias é justa luta, mas se forem outras, será considerada incitação ao ódio…
Entre governantes, grupos fanáticos e académicos apostados em destruir a universidade e substitui-la por fuzileiros do pensamento, está a criar-se um clima que faz lembrar a censura salazarista, o macarthismo, o jdanovismo soviético… Com algumas diferenças. Antes, eram as polícias e os tribunais. Hoje, são agências de comunicação e universidades que se prestem a tal serviço.
É seguramente a tentativa de atentado à liberdade de expressão mais detestável da democracia portuguesa, só comparável às leis salazaristas, fascistas e comunistas. O governo prepara. O Parlamento espera. Há universidades que se prestam e faculdades, institutos e centros de estudos que se perfilam para cuidar da virtude pública…
Mal vai um país quando se começa a olhar, não para o que as pessoas fazem, mas sim para o que pensam, sentem e dizem! Muito mal vai um povo quando as autoridades pretendem estabelecer códigos morais, linhas divisórias de atitude e barreiras para os sentimentos! É tudo por boas causas: os governantes e as universidades empenhadas só pretendem que não haja racismo, só se esforçam por que não haja ódio, só pretendem que as pessoas sejam boas! Sabemos que as autoridades e os académicos empenhados só querem o nosso bem! Mas esse é mesmo o ponto: quem é livre não quer que as autoridades se ocupem do seu bem! Nem que seja para “monitorizar”. Sabemos que quando as autoridades se ocupam do nosso bem dá asneira.
É realmente inquietante ver que há universidades que se prestam, académicos que se candidatam, governantes que se preparam e intelectuais que não se importam. E um partido cujo comportamento se estranha. Onde está o Partido Socialista para quem o golpe do jornal República foi o sinal de alarme para a campanha da liberdade de 1975? Que é feito dos socialistas que não se deixavam enredar nas teias que põem em causa a liberdade de expressão? Que aconteceu ao PS de Mário Soares, cujo primeiro livro tinha como título Portugal amordaçado? De onde vieram os socialistas que fecham os olhos e tapam os ouvidos diante desta ofensiva contra a liberdade que se propõe monitorizar o discurso e a narrativa? Como é possível que as últimas gerações de socialistas não resistam a tentar comprar ou calar jornais e jornalistas, redes sociais e televisões? E como se pode imaginar que haja universitários prontos para se transformarem em sacerdotes da monitorização e sargentos do “Grande Irmão”?
Estes senhores não querem apenas combater o que entendem ser o fascismo, o racismo ou o populismo. Querem também destruir a democracia plural, a liberdade de expressão e o livre pensamento. São mesmo perigosos, não é só conversa!
Sociólogo
COMENTÁRIOS:
Fowler Fowler INICIANTE: A minha resposta a Margarida Paredes foi censurada. No creo que o sr. Barreto se tenha dado a tanto trabalho depois de ter escrito este panfleto. 19.07.2020
O historiador do ICS Marchi, (será que rima com Fachi?), diz na entrevista ao Expresso que “Portugal não é um faroeste em que cada pessoa pode dizer aquilo que quer. Temos organismos e instituições do regime para controlar esse género de discurso. Não só há o Código Penal e o Código Civil como há o Tribunal Constitucional, os organismos contra a discriminação e o discurso do ódio e por aí fora. André Ventura já foi muitas vezes controlado por esses organismos”. É sempre bom lembrar que Portugal não é propriamente uma república de bananas. 19.07.2020
paulsmit22.894452 INICIANTE: Voltaire: “Detesto o que o senhor escreve, mas daria minha vida para lhe permitir continuar escrevendo”. Chomsky: "....defending a person's right to express certain views is independent of the views actually expressed." e "...it is precisely in the case of views that are almost universally despised and condemned that this right must be most vigorously defended." 19.07.2020
FzD INFLUENTE: O que prova que a nossa "esquerda" está muito longe de Voltaire, Chomsky e muitos outros, e próxima de Hugo Chávez, Maduro... 19.07.2020
Fowler Fowler INICIANTE: Basta o vento tocar leve, levemente, nas velas do perigoso moinho, para logo o Quixote se lançar impetuosamente contra esse movimento com toda a artilharia, como se o seu passado e presente de controleiro e censor, respectivamente, lhe desse autoridade para monitorizar os ventos e adivinhar as tempestades. Comovedor! 19.07.2020
Margarida Paredes, cansada de ler comentários de Trolls da extrema-direita, fascistas e racistas neste Forum. Desisti de ser Moderadora. INFLUENTE: Barreto parte de uma inverdade, a Carta dos 67 não fala do livro de Riccardo Marchi, mas sim da entrevista na TV. AB leu a carta? Não parece! E o que interessa a verdade quando a mentira é uma estratégia? Como subscritora da Carta do 67 também não estava à espera que estivesse do nosso lado, o seu modus operandi é acusar e declarar guerra, em nome de uma Liberdade de Expressão dominada pela Alt-Right, a quem se opõe ao Racismo, ao Fascismo e ao Discurso de ódio. Estamos conversados. 19.07.2020
FzD INFLUENTE: Apesar de não conhecer os subscritores imaginei que a Doutora seria um deles. Por que terá sido?.. 19.07.2020
Filipe Paes de Vasconcellos INICIANTE: É de facto inquietante que o mestre cerimónia do regime social/comunista, e porta voz do governo socialista, não comente, não reaja, não se oponha, não dê uma opinião, ele que opina, comenta, fala,..., em cima do acontecimento. Será que não lhe sobra tempo, uns escassos cinco minutos em 20 horas, para ser PR, função para qual todos os Portugueses lhe pagam o ordenado? 19.07.2020
viana EXPERIENTE: Um texto dum pretenso sociólogo que faz por ignorar o significado de liberdade de expressão. Diga-nos, em que país no mundo existe liberdade de expressão irrestrita? Nenhum. Posso insultá-lo? Não, não posso? Porquê? Já não tenho então liberdade para me expressar? Posso incitar á violência contra a sua pessoa? Porque não? Mas já posso incitar ao ódio contra si?... Pois, claro, do ódio á violência vai uma grande distância... nunca transporta ao longo da História. As palavras são armas. Não concorda com o controlo de armas? Enfim, um texto miserável, indigno de alguém com um mínimo de inteligência. 19.07.2020
FzD INFLUENTE
Tem razão Viana, mais um dos seus textos miseráveis. Aliás António Barreto fala de si. Se soubesse ler teria percebido onde... 19.07.2020
GMA INICIANTE: Pelo ano de 1973, chegado à Grande Cidade vindo da Bragança dos Coronéis e outros “vigilantes”, passava eu na Av. Duque de Loulé com o Diário de Lisboa debaixo do baixo, quando alguém, que eu nunca vira, me perguntou porque lia o DL; outra vez na Alameda, onde havia uma padaria para noctívagos, outro desconhecido me perguntou porque andava com um “preto” (o Carvalho, que parece que era do PAIGC...). Alguém, desconhecido, me voltará a questionar acerca dos jornais que leio ou das pessoas com quem bebo um copo?... 19.07.2020
Colete Amarelo EXPERIENTE: Um bom exemplo de um pensamento monitorizado. 19.07.2020
MARIA EUGENIA S COSTA LOPES INICIANTE: obrigada 19.07.2020
José Bernardo Pinho Dias INICIANTE: Manifestamente exagerado ! 19.07.2020
Luís Campos INICIANTE: Excelente artigo. Como sempre uma mente lúcida que nos ajuda a pensar. Fazem falta outras assim na nossa sociedade. Obrigado. 19.07.2020
Pedro Galvão INICIANTE: Fiquei bastante aborrecido por não me terem convidado para subscrever a coisa. Assim não tive o prazer de recusar! 19.07.2020
Mario Coimbra EXPERIENTE: Excelente mais uma vez caro António Barreto. Obrigado por, como tantos outros, por sinal, ter posto o dedo na ferida. Universidades a monitorizar discursos de ódio??????? Mas o que é isto???? O que é o ódio??? Como se define??? O que é que as Universidades, templos de sabedoria, de liberdade e de discussão têm a ver com monitorizar discursos. Não tem pés nem cabeça. E quanto ao manifesto, acho óptimo, marcarem posição. Mas era só o que faltava tentarem silenciar um livro, uma tese, só porque não concordam com ela. Estamos todos a andar em thin ice. Muito preocupante. 19.07.2020

Nenhum comentário: