Partiu desses, dos amantes do povo, o
desdém pela correcção linguística, e os amantes do povo continuam a amá-lo e a agasalhá-lo
num “rucucu paloma” propício até à
destruição da própria língua, o que não importa minimamente aos senhores que
orientam os destinos da nação, diga-se o que se disser de argumentos
ponderados, como os que Nuno Pacheco apresenta –
demasiada areia, ao que parece, para as carroças condutoras do país. O texto de
Nuno Pacheco mereceu
apenas um comentário, prova de que o assunto não incomoda as consciências de um
país “a entristecer” já o dissera Pessoa no seu “Nevoeiro” – eu diria mesmo “a
extinguir-se”, tanto o desinteresse de real mediocridade, que aceita tais
dislates destruidores da língua, como aceita os crimes destruidores da
economia. Façamos rucucu, sejamos coerentes connosco.
OPINIÃO: Ler
“o que lá está” é também seguir o que lá não está, deturpando o som das
palavras
As
crianças de hoje argumentarão “que apenas estão a ler o que lá está”.
Contraditório? De modo algum, porque não se referem ao “que lá está” em sentido
literal (como, de forma irónica, se lhe referia Raul Machado) mas sim ao “que
lá está” proveniente da escrita e dos sinais que dela emana para a sua correcta
interpretação fonética
PÚBLICO, 16 de
Julho de 2020
Ainda
em época de exames, a língua portuguesa vem de novo à baila. Tanto mais que o
exame do 12.º ano gerou contundentes críticas, como se vê pelos artigos de António Carlos Cortez ou
de Elisa Costa
Pinto, ambos no PÚBLICO. Mas não é de exames que trata esta crónica,
e sim do tema levantado por uma pequena frase do leitor Alberto E. Diniz, da Figueira da Foz, que em carta ao director do jornal (publicada no dia
7) dizia serem arrepiantes, em Portugal, “as alterações na pronúncia, devido à
destruição na modulação das vogais, que as nossas crianças expressam,
argumentando elas que apenas estão a ler o que lá está...” Esta ideia, a de “ler o que lá está”, já motivou uma
crónica anterior, velhinha de cinco anos (“Maravilhas
da fonética”, 19/4/15), mas a
verdade é que o tema não só se mantém actual como a situação se agravou.
Porquê?
Pela escrita, precisamente. Há
cinco anos citaram-se aqui as Charlas Linguísticas de Raul Machado,
filólogo e primeiro presidente da Sociedade de Língua Portuguesa, que iniciou
em 1958 na RTP um programa dedicado à língua, compilado mais tarde em livro. Ora logo numa das primeiras emissões (a de 21/1/58)
tratou precisamente do tema “Leia o que lá está!” Nesse programa, criticava
professores ou pais que, em tom autoritário, diziam a crianças com dificuldade
de ler uma frase num livro: “Menino, leia o que lá está!” Como se dissessem: “O
menino é parvo! O menino não sabe ler!” E dava como exemplo esta frase: “Os
homens sentem e pensam”. Uma frase simples, que toda a gente lerá sem
dificuldade. Toda a gente? Sim, toda a gente que já domina, mesmo que de forma
inconsciente, as regras do sistema vocálico do português europeu. Se uma
criança lesse mesmo “o que lá está”, com base no que aprendera no alfabeto,
leria (dizia então o filólogo): Óss hóménnss sénntémm é pénnsamm. Ou, “em
grafia sónica, a seguinte algaraviada: Óç hóménç çéntéme é pénçame”. Em vez
disso, qualquer pessoa lerá “Uz ómãix sêntãi i pênsão”. No entanto, escrevemos
“Os homens sentem e pensam”.
Raul
Machado prosseguia, assim, o seu raciocínio: “O fenómeno linguístico da
pronúncia do nosso idioma encerra dificuldades e complicações de tal monta, que
só com intenso treino e longa aprendizagem se conseguem vencer e dominar. Por
isso, o imperativo ‘Leia o que lá está!’ contém, sem dúvida, uma imposição
muito difícil de cumprir…, muito difícil de cumprir, sobretudo nos bancos da escola,
da escola primária [agora conhecida por ensino básico].” Mas, concluía, era
nessas dificuldades que assentava a “realidade magnífica da língua nacional”.
Porém,
voltando à carta do citado leitor, as crianças de hoje argumentarão “que apenas
estão a ler o que lá está”. Contraditório? De modo algum, porque não se referem
ao “que lá está” em sentido literal (como, de forma irónica, se lhe referia
Raul Machado) mas sim ao “que lá está” proveniente da escrita e dos sinais
que dela emana para a sua correcta interpretação fonética. E é aqui que surgem
os equívocos actuais, derivados em grande parte da aplicação do chamado Acordo
Ortográfico de 1990 (AO90).
Ressalve-se
que o caminho para a ambiguidade foi já antes aberto pelas reformas
ortográficas anteriores (com a capa de “acordo” ou sem ela). Por exemplo, este
conjunto de palavras homógrafas, mas não homófonas, tinha a distinção sónica
assinalada por acento gráfico na reforma de 1911, sendo depois abolida na de
1945: acôrdo e acordo (de acordar); fôrma e forma (de formar); sêca e seca(de
secar); trôco e troco (de trocar); sobre e sobre (de sobrar); côrte e corte (de
cortar); refôrço e reforço (de reforçar); e até entre formas verbais distintas,
mas homógrafas: pregar (de bater um prego) e prègar (dar sermões). Estas
distinções gráficas caíram com a reforma de 1945, deixando a desambiguação para
o contexto. Em contexto, percebia-se que eram diferentes. E fora de contexto?
Ora, que adivinhássemos!
Já
com o AO90 pretende-se que sejam lidas de forma diferente palavras de estrutura
idêntica, mas sem indicar como. E se as distinções gráficas abolidas em 1945
geralmente ocorriam entre substantivos (corte, ô) e flexões verbais (corte, ó),
aqui ocorrem amiúde entre palavras do mesmo género. Substantivos como fator (à)
e favor (â); senhor(e mudo) e sector (è); doação (â) e coação (à), de
coagir, existindo também coacção (â), de coar; diretriz (è) e meretriz (e
mudo); adjectivos como correta (è) e forreta (ê); ou até flexões verbais, como
adotar (ò) e adoçar (u). Além disso, tornaram-se ambiguamente homógrafas
palavras antes só homófonas, dando-lhes a mesma forma: ato (de acto) e ato (de
atar) ou ótico (de óptico, da vista) e ótico (do ouvido).
O
mais estranho foi o que sucedeu com palavras como infecção, direcção ou concepção,
que, com a sílaba tónica claramente marcada pelo ditongo nasal ão, só se liam
“infèção”, “dirèção” ou “concèção” devido à presença da consoante dita muda;
sem ela, e escrevendo-se infeção, direcção ou conceção, ler-se-á
tendencialmente “inf’ção”, “conc’ção” e “dir’ção”. Por isso, ao lerem “o que lá
está”, os alunos vão seguir o que lá não está — e assim deturpar o som das
palavras. Esta “benesse”, só podemos agradecê-la aos criadores da aberração
conhecida por AO90.
TÓPICOS
COMENTÁRIO:
mzeabranches
INICIANTE: Obrigada,
Nuno Pacheco, por chamar de novo a nossa atenção para as nefastas consequências
da aplicação do AO90. «O
primado da escrita é condição 'sine qua non' para se entender o papel e o
estatuto da língua escrita em sociedades avançadas como a nossa. A
desvalorização de mudanças na língua escrita através, por exemplo, de
intervenção do Estado na ortografia, só pode resultar na desvalorização de um
pilar da nossa sociedade. [...] Ninguém vai para a escola para aprender a falar
[...] mas para aprender a ler, escrever e a discorrer metalinguisticamente
(através do ensino da Gramática). Sem ortografia estável não há grafolecto
estável. Sem grafolecto não há sociedade portuguesa viável. O mundo, tal como o
conhecemos hoje, não é possível sem escrita.» (in «O primado da escrita», A.
Emiliano)
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