quinta-feira, 9 de julho de 2020

A libra de carne



Trata-se de um contrato feito entre Bassânio, jovem estouvado, em Veneza, e o usurário judeu Shylock, por conta de um empréstimo que este lhe concede, aceitando como fiador António, rico mercador de Veneza, muito amigo de Bassânio, a quem deseja salvar das suas estroinices ruinosas, impossibilitado de ser ele a aboná-lo, por as suas riquezas se encontrarem de momento dispersas em barcos de regresso à pátria. Shylock aceita António como fiador, mas, em caso de falhanço do pagamento, exige nada mais que o peso de uma libra da carne de António, movido pelo ódio por este, que lhe responde com o desprezo da sua superioridade altiva, de cristão educado em valores de amizade e desprendimento financeiro, sentimentos alheios ao carácter do judeu. É este o ponto de partida da peça de Shakespeare que tenho em francês, em edição dos anos 50, trazida de Moçambique nos anos 70, e que sempre figurou como das minhas preferidas, talvez por exaltar sentimentos mais comezinhos de amores e ódios, a par de um humor alegre que contrasta com a nobreza dos enredos, falas e sentimentos trágicos da maioria das tragédias shakespearianas. Voltei a lê-la, a peça “Le Marchand de Venise”, por estarem em moda os sentimentos de anti semitismo e anti-racismo, hoje exibidos sob uma capa de amor triunfal, que manifesta simultaneamente muito ódio triunfante. As naus de António todas se perderam no mar, António empobreceu, não podia pagar a Shylock a não ser com a libra de carne do seu corpo, exigida estrategicamente pelo judeu, condenatória da vida de António, em cena de grande suspense e emoção, que mais se acentuam com a chegada do “pequeno juiz” substituto, à sala de audiências. A sua argumentação gradualmente favorecedora da confiança de Shylock na perfeita justiça, em volte face inesperado, traduz o reverso castigador de Shylock, demonstrativa de uma lógica irrebatível: a libra de carne do corpo de António não podia exceder ou ser inferior a esse peso exacto nem conter uma única gota de sangue, sob pena da morte de Shylock e confiscação dos seus bens. O pequeno juiz será posteriormente identificado como Portia, a recém-casada mulher de Bassânio, que em travesti brilhante de vivacidade feminina, assim salvará os dois amigos.
O trecho do senhor embaixador da Palestina em Portugal, NABIL ABUZNAID, defendendo o seu povo, joguete das manobras astutas do ministro Netanyahu, apoiado por Trump, trouxe-me novamente à ideia a astúcia e inteligência dos judeus, de todos os tempos, afinal, perseguidos, e que Shakespeare não deixa de defender, contra o ódio anti semitista geral, ao humanizar a figura do judeu, em falas deste, de justificação e revolta, e do seu ódio aos cristãos.
OPINIÃO: O último prego no caixão da paz
A anexação e roubo da maioria do território agrícola e dos recursos hídricos da população palestiniana acabará com a esperança do mundo que confrontou a política de ocupação, destruirá as aspirações de liberdade e independência do povo palestiniano e matará quaisquer sonhos de paz.
NABIL ABUZNAID     PÚBLICO, 4 de Julho de 2020,
Este mês completam-se 53 anos desde que, em criança, testemunhei o momento em que tanques da ocupação israelita entraram na minha aldeia, após a guerra de 1967, altura em que a Cisjordânia e a Faixa de Gaza – incluindo Jerusalém – foram declaradas como territórios sob ocupação israelita. Desde aquela altura, até hoje, a minha família vive sob uma ocupação dura e cruel, sem sentir, nem sequer por um dia, a liberdade e a justiça. Desde aquela altura, até hoje, o povo palestiniano resiste pelo fim da ocupação.
Nos primeiros dias da ocupação de 1967, a liderança israelita anunciou, através do seu ministro de Guerra Moshe Dayan, que Israel nunca deixaria de ocupar aquele território palestiniano. Dayan implementou o plano de ocupação através da imposição, à força, da política dos factos consumados, confiscando as propriedades e os territórios dos cidadãos palestinianos para os colonizar, controlando assim a terra e as pessoas. Dayan afirmou então que não estava interessado em alcançar a Paz, pois esta exigiria a retirada dos territórios ocupados, optando pelo contrário, reiterando que queria preparar o povo israelita para viver sempre sem paz. De facto, Dayan alcançou o seu objectivo, mas conseguiu também implementar a política de controlo ao invés da cultura de paz. Através dos seus planos, a ocupação deixou de ter custos tornando-se até lucrativa do ponto de vista económico. Pois, para além dos territórios palestinianos se terem tornado um dos maiores mercados israelitas no mundo, é também Israel que consegue beneficiar de mão-de-obra barata, já que uma grande parte do povo palestiniano trabalha nos sectores da construção e da agricultura israelitas.
Dez anos depois, surgiu o Partido Likud, que tomou o lugar do Partido Trabalhista, agravando, ainda mais, a situação nos territórios ocupados, tornando-a ainda mais difícil, onde o sabor amargo da ocupação se intensificou, especialmente pela confiscação de territórios e recursos hídricos. O Likud foi claro na sua posição, recusando abdicar de um centímetro que fosse dos territórios palestinianos ocupados e avançando com o projecto de “autonomia dos palestinianos”, uma governação sem soberania ou controlo dos recursos e fronteiras, mantendo a autoridade legislativa nas mãos da ocupação. Yitzhak Shamir, primeiro-ministro israelita na altura, declarou que o objectivo desta autonomia não era separar Israel dos palestinianos, mas antes mantê-los sob o controlo israelita
Ao longo destes anos, as confrontações e guerras continuaram sem resultados, perdemos milhares e milhares de vidas de indivíduos inocentes e outros, igualmente inocentes, foram presos. Desde o início da ocupação até ao dia de hoje, um terço do povo palestiniano já passou pela prisão e todo o povo no geral continua a sofrer diariamente.
A História ensinou-nos que a vida de qualquer ocupação é curta e que não há conflitos sem solução. Os conflitos são criados pelo ser humano, que também tem a capacidade de os resolver. Um bom líder é aquele capaz de retirar o seu povo de uma situação, movendo-o para outra melhor, de um estado de guerra para um estado de paz. Era isso que esperávamos do primeiro-ministro israelita Netanyahu, mas, infelizmente, escolheu outro caminho, bem longe do caminho da paz, seguindo a linha do Partido Likud. Netanyahu deveria saber que nenhum povo aceita a ocupação e a opressão. Portugal é um excelente exemplo disso mesmo, um povo que resistiu à opressão e injustiça, derrubando o regime ditatorial e conseguindo conquistar a sua liberdade, através da sua revolução há 46 anos.
Cinquenta e três anos depois da abominável e injusta ocupação de 1967, Netanyahu anuncia a anexação de um terço do território palestiniano por Israel. Anúncio este que é feito depois de, há menos de dois anos, receber como presente do seu aliado na Casa Branca – Trumpa cidade de Jerusalém. No plano desta anexação incluem-se as terras dos colonatos ilegais e os territórios do Vale do Jordão, territórios que são considerados a cesta da alimentação agrícola e a fonte dos recursos hídricos do povo palestiniano, que, mesmo sem qualquer nova confiscação, já são bastante escassos. A ocupação israelita controla mais de 85% dos recursos hídricos, deixando apenas 15% para os palestinianos. Estima-se que o consumo de água dos colonos israelitas seja três a oito vezes mais que o da população palestiniana da Cisjordânia. A anexação e roubo da maioria do território agrícola e dos recursos hídricos da população palestiniana será assim o último prego no caixão da paz. Acabará com a esperança do mundo que confrontou a política de ocupação, destruirá as aspirações de liberdade e independência do povo palestiniano e matará quaisquer sonhos de paz.
A crise, causada pela pandemia da covid-19, ensinou-nos que vivemos numa aldeia global, onde precisamos de trabalhar juntos com base em leis e valores partilhados, para ser possível alcançar uma vida melhor e mais justa para todos. Netanyahu despreza todas estas normas internacionais, segue com a política de ocupação e anuncia a anexação, alegando até, nas suas recentes declarações, que a anexação é um passo rumo à paz, quando, na verdade, é algo que, seguramente, causará uma nova vaga de confrontos e de violência completamente desnecessários. O mundo inteiro concordou na rejeição total desta anexação, excepto o amigo Trump, que apoia Netanyahu e ignora o seu próprio povo. Recentemente, Netanyahu deu os parabéns a Trump por este ter imposto sanções ao Tribunal Penal Internacional, cuja única “culpa” foi tentar travar as violações dos direitos humanos e procurar a justiça para os povos oprimidos. Ao rejeitar a injustiça e condenar este plano de anexação, o mundo não está contra o direito de Israel viver em paz, mas sim contra uma política que viola as convenções e as leis internacionais, uma política que contradiz com a posição europeia, incluindo a portuguesa. O mundo tomou esta posição porque acredita que, se houver um amigo embriagado, é preciso impedi-lo de conduzir. Tal como o resto do mundo, o povo palestiniano está ansioso pela liberdade e pela criação do seu Estado independente no seu território, com a sua capital em Jerusalém, algo que é reconhecido pela maioria dos países do mundo. Por fim, termino com as palavras de Nicolau Maquiavel: “O mais difícil e perigoso é privar uma pessoa do seu território e deixá-la com vida, mesmo tentando conciliá-la com benefícios.” Aviso todos os príncipes de que não viverão em paz e segurança enquanto estas pessoas estiverem privadas das suas propriedades e dos seus direitos.
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