Trata-se de um contrato feito entre Bassânio, jovem estouvado, em Veneza, e o usurário judeu Shylock, por conta
de um empréstimo que este lhe concede, aceitando como fiador António, rico mercador de Veneza, muito amigo de Bassânio, a quem deseja salvar das suas estroinices ruinosas,
impossibilitado de ser ele a aboná-lo, por as suas riquezas se encontrarem de
momento dispersas em barcos de regresso à pátria. Shylock aceita António
como
fiador, mas, em caso de falhanço do pagamento, exige nada mais que o peso de
uma libra da carne de António, movido
pelo ódio por este, que lhe responde com o desprezo da sua superioridade
altiva, de cristão educado em valores de amizade e desprendimento financeiro,
sentimentos alheios ao carácter do judeu. É este o ponto de partida da peça de Shakespeare que tenho em francês, em edição dos
anos 50, trazida de Moçambique nos anos 70, e que sempre figurou como das
minhas preferidas, talvez por exaltar sentimentos mais comezinhos de amores e
ódios, a par de um humor alegre que contrasta com a nobreza dos enredos, falas
e sentimentos trágicos da maioria das tragédias shakespearianas. Voltei a
lê-la, a peça “Le Marchand de
Venise”, por estarem em moda os sentimentos de anti semitismo e anti-racismo,
hoje exibidos sob uma capa de amor triunfal, que manifesta simultaneamente
muito ódio triunfante. As naus de
António todas se perderam no mar, António empobreceu,
não podia pagar a Shylock a não ser
com a libra de carne do seu corpo, exigida estrategicamente pelo judeu, condenatória
da vida de António, em cena de
grande suspense e emoção, que mais se acentuam com a chegada do “pequeno juiz” substituto, à sala de audiências. A
sua argumentação gradualmente favorecedora da confiança de Shylock na perfeita justiça, em volte face
inesperado, traduz o reverso castigador de Shylock, demonstrativa de uma lógica irrebatível: a libra de
carne do corpo de António não podia
exceder ou ser inferior a esse peso exacto nem conter uma única gota de sangue,
sob pena da morte de Shylock e confiscação
dos seus bens. O pequeno juiz será
posteriormente identificado como Portia,
a
recém-casada mulher de Bassânio, que em
travesti brilhante de vivacidade feminina, assim salvará os dois amigos.
O trecho do senhor embaixador da
Palestina em Portugal, NABIL ABUZNAID, defendendo o seu povo, joguete das manobras astutas do
ministro Netanyahu, apoiado por Trump, trouxe-me novamente à ideia a astúcia
e inteligência dos judeus, de todos os tempos, afinal, perseguidos, e que Shakespeare não deixa de defender, contra o ódio anti
semitista geral, ao humanizar a figura do judeu, em falas deste, de
justificação e revolta, e do seu ódio aos cristãos.
OPINIÃO: O último prego no caixão da paz
A anexação e roubo da maioria do
território agrícola e dos recursos hídricos da população palestiniana acabará
com a esperança do mundo que confrontou a política de ocupação, destruirá as
aspirações de liberdade e independência do povo palestiniano e matará quaisquer
sonhos de paz.
NABIL
ABUZNAID PÚBLICO, 4 de Julho de 2020,
Este
mês completam-se 53 anos desde
que, em criança, testemunhei o momento em que tanques da ocupação israelita
entraram na minha aldeia, após a guerra de 1967, altura em que a Cisjordânia e
a Faixa de Gaza – incluindo Jerusalém – foram declaradas como territórios sob
ocupação israelita. Desde aquela altura, até hoje, a minha família vive
sob uma ocupação dura e cruel, sem sentir, nem sequer por um dia, a liberdade e
a justiça. Desde aquela altura, até hoje, o povo palestiniano resiste pelo fim
da ocupação.
Nos
primeiros dias da ocupação de 1967, a liderança israelita anunciou, através do
seu ministro de Guerra Moshe Dayan, que Israel nunca deixaria de ocupar aquele
território palestiniano. Dayan
implementou o plano de ocupação através da imposição, à força, da política dos
factos consumados, confiscando as propriedades e os territórios dos cidadãos
palestinianos para os colonizar, controlando assim a terra e as pessoas. Dayan
afirmou então que não estava interessado em alcançar a Paz, pois esta exigiria
a retirada dos territórios ocupados, optando pelo contrário, reiterando que
queria preparar o povo israelita para viver sempre sem paz. De facto, Dayan alcançou o seu objectivo, mas
conseguiu também implementar a política de controlo ao invés da cultura de
paz. Através dos seus planos, a ocupação deixou de ter custos tornando-se
até lucrativa do ponto de vista económico. Pois, para além dos territórios
palestinianos se terem tornado um dos maiores mercados israelitas no mundo, é
também Israel que consegue beneficiar de mão-de-obra barata, já que uma grande
parte do povo palestiniano trabalha nos sectores da construção e da agricultura
israelitas.
Dez
anos depois, surgiu o Partido Likud,
que tomou o lugar do Partido Trabalhista, agravando, ainda mais, a situação nos
territórios ocupados, tornando-a ainda mais difícil, onde o sabor amargo da
ocupação se intensificou, especialmente pela confiscação de territórios e
recursos hídricos. O Likud foi
claro na sua posição, recusando abdicar de um centímetro que fosse dos
territórios palestinianos ocupados e avançando com o projecto de “autonomia dos
palestinianos”, uma governação sem soberania ou controlo dos recursos e
fronteiras, mantendo a autoridade legislativa nas mãos da ocupação. Yitzhak
Shamir, primeiro-ministro israelita na altura, declarou que o objectivo desta
autonomia não era separar Israel dos palestinianos, mas antes mantê-los sob o
controlo israelita.
Ao
longo destes anos, as confrontações e guerras continuaram sem resultados,
perdemos milhares e milhares de vidas de indivíduos inocentes e outros,
igualmente inocentes, foram presos. Desde o início da ocupação até ao dia de
hoje, um terço do povo palestiniano já passou pela prisão e todo o povo no
geral continua a sofrer diariamente.
A
História ensinou-nos que a vida de qualquer ocupação é curta e que não há
conflitos sem solução. Os conflitos são criados pelo ser humano, que também tem
a capacidade de os resolver. Um bom líder é aquele capaz de retirar o seu povo
de uma situação, movendo-o para outra melhor, de um estado de guerra para um estado
de paz. Era isso que esperávamos do primeiro-ministro israelita Netanyahu, mas,
infelizmente, escolheu
outro caminho, bem longe do caminho da paz, seguindo a linha do
Partido Likud. Netanyahu deveria saber que nenhum povo aceita a ocupação e a
opressão. Portugal é um excelente exemplo disso mesmo, um povo que resistiu
à opressão e injustiça, derrubando o regime ditatorial e conseguindo conquistar
a sua liberdade, através da sua revolução há 46 anos.
Cinquenta
e três anos depois da abominável e injusta ocupação de 1967,
Netanyahu anuncia a anexação de um terço do território palestiniano por Israel. Anúncio este que é feito depois de, há menos
de dois anos, receber como presente do seu aliado na Casa Branca – Trump – a cidade de Jerusalém. No plano desta anexação incluem-se as terras dos
colonatos ilegais e os territórios do Vale do Jordão, territórios que são
considerados a cesta da alimentação agrícola e a fonte dos recursos hídricos do
povo palestiniano, que, mesmo sem qualquer nova confiscação, já são bastante
escassos. A ocupação israelita controla mais de 85% dos recursos hídricos,
deixando apenas 15% para os palestinianos. Estima-se que o consumo de água dos
colonos israelitas seja três a oito vezes mais que o da população palestiniana
da Cisjordânia. A anexação e roubo da maioria do território agrícola e dos
recursos hídricos da população palestiniana será assim o último
prego no caixão da paz. Acabará com
a esperança do mundo que confrontou a política de ocupação, destruirá as
aspirações de liberdade e independência do povo palestiniano e matará quaisquer
sonhos de paz.
A
crise, causada pela pandemia
da covid-19, ensinou-nos que vivemos numa aldeia global, onde
precisamos de trabalhar juntos com base em leis e valores partilhados, para ser
possível alcançar uma vida melhor e mais justa para todos. Netanyahu
despreza todas estas normas internacionais, segue com a política de ocupação e
anuncia a anexação, alegando até, nas suas recentes declarações, que a anexação
é um passo rumo à paz, quando, na verdade, é algo que, seguramente, causará uma
nova vaga de confrontos e de violência completamente desnecessários. O mundo
inteiro concordou na rejeição total desta anexação, excepto o amigo Trump, que
apoia Netanyahu e ignora o seu próprio povo. Recentemente, Netanyahu deu
os parabéns a Trump por este ter imposto sanções ao Tribunal Penal
Internacional, cuja única “culpa” foi tentar travar as violações dos direitos
humanos e procurar a justiça para os povos oprimidos. Ao rejeitar a
injustiça e condenar este plano de anexação, o mundo não está contra o direito
de Israel viver em paz, mas sim contra uma política que viola as convenções e
as leis internacionais, uma política que contradiz com a posição europeia,
incluindo a portuguesa. O mundo tomou esta posição porque acredita que, se
houver um amigo embriagado, é preciso impedi-lo de conduzir. Tal como o
resto do mundo, o povo palestiniano está ansioso pela liberdade e pela criação
do seu Estado independente no seu território, com a sua capital em Jerusalém,
algo que é reconhecido pela maioria dos países do mundo. Por fim, termino com
as palavras de Nicolau Maquiavel: “O mais difícil e perigoso é privar uma
pessoa do seu território e deixá-la com vida, mesmo tentando conciliá-la com
benefícios.” Aviso todos os príncipes de que não viverão em
paz e segurança enquanto estas pessoas estiverem privadas das suas propriedades
e dos seus direitos.
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