Dizia-se: “África para os africanos!” Ou seja,
“cada macaco no seu galho”, mas foi pura macacada hipócrita e traiçoeira contra
os que ocuparam as terras de África, esquecendo os que ocuparam as terras das
Américas mais ou menos dizimadores dos que por lá viviam, e a quem ninguém fez
largar os respectivos continentes, nem na Austrália ou na Oceânia. Afinal,
muitos africanos fugiram de África, como nós, aquando da tal fórmula “África para os africanos” e ainda bem
que não utilizámos a fórmula contra eles, coitados, que viveram os mesmos
terrores que nós, se bem que a mim me foi dito, por causa do carro de volante à
direita que regressasse à minha terra e até tive de me desfazer do carro, com o
seu buraco de bala perdida sem glória, para não ouvir as balas palavrosas dos
condutores que me ultrapassavam, iracundos.
Agora pretendemos
abrir fronteiras, como António
Barreto bem explica, e dar passaportes
aos descendentes dos que cá viveram, a quem também se pediu perdão, águas
passadas, mas os íntegros de hoje não dão tréguas, boas criaturas, parciais que
são - uma característica da bondade de hoje, a parcialidade na sua distribuição
- digo, da bondade. O melhor mesmo é lermos António Barreto, que gosta de explicar bem, o que é um regalo para nós.
OPINIÃO
Os sefarditas e os outros
Tenho orgulho em viver num país cuja
nacionalidade é pretendida por outros. Assim como num país cujos vistos e
passaportes são desejados por outros. É sinal de que podemos ser gente de bem e
de paz.
PÚBLICO, 12 de Julho de 2020
Quando, a propósito de um problema,
surge a pergunta “e os outros?”, é de desconfiar: é alguém que quer fugir à questão pelo seu próprio mérito. Mas há também uma razão nisso: é verdade que a
coerência é um critério importante. Quem critica a “tortura fascista”, por
exemplo, não tem necessidade de acrescentar sempre “e a comunista”. Mas se
critica aquela, isentando a outra, o argumento é suspeito. Na verdade, há
ideias e lutas que só ganham significado quando não distinguem política, raça,
crença, classe ou género.
A
desigualdade, a segregação racial e a censura são outros exemplos. Por um lado,
são alvos em si próprios.
Por outro, os combates só ganham força e valor se forem universais, isto é, se
não forem selectivos. Todo o racismo é condenável, não apenas o branco, o
negro ou o asiático. É com esta dupla perspectiva que se pode olhar para a
questão dos descendentes dos sefarditas em Portugal, problema inesperadamente polémico.
A legislação que reconhece direitos
aos descendentes dos sefarditas portugueses na obtenção de passaporte ou de
nacionalidade estava muito bem conforme estava. Ainda hoje, após longa discussão pública, não se
percebe muito bem por que razões uns deputados
pretendem alterar as leis. Parece haver intenção de perturbação. Se
havia outros problemas, deveriam também, como é evidente, ser tratados por si.
Sem necessidade de umas soluções impedirem outras, receita para eternos
adiamentos.
A ideia de pedir perdão ao “povo
judeu”, aos “sefarditas” em particular, é piegas e tem intuitos
propagandísticos. Não me
parece que os portugueses de hoje tenham o dever ou o direito de pedir perdão
aos judeus, aos negros, aos índios, aos asiáticos ou seja a quem for. Nem aos
democratas, aos comunistas, aos liberais, aos católicos, aos seguidores de
várias igrejas, aos proprietários ou aos sindicalistas… O
folclore do pedido de perdão é uma actividade hipócrita, paternalista, com
intuitos publicitários e de cariz falsamente democrático. Devemos pedir perdão
a quem fazemos mal ou não fazemos justiça, não a quem foi maltratado pelos avós
dos nossos avós ou por pessoas que aqui viviam há cinquenta, cem ou quinhentos
anos. Já não estão cá os que mal fizeram. Nem os que mal sofreram.
Já
a ideia de conceder aos sefarditas, que tal solicitem, passaporte,
autorização de residência ou nacionalidade, parece uma solução
interessante. Para nós e para eles. Ou antes, como dizia alguém, para nós
todos. Este sistema de concessão de nacionalidade pode perfeitamente ser
praticado sem a exigência de os candidatos falarem português, conhecerem a
História de Portugal ou manterem “ligações intensas” com Portugal. Era o que
estava mais ou menos estabelecido nas leis vigentes. É o que, sob pretextos tolos, umas dúzias de deputados
pretendem alterar.
É
nesta altura que se ouve a famosa pergunta: “E os outros?”. Por um
lado, é pergunta oportunista, porque é um pretexto para quem não quer responder
aos méritos da questão. Por outro lado, há razões para isso.
Tenho orgulho em viver num país cuja nacionalidade é pretendida por outros.
Assim como num país cujos vistos e passaportes são desejados por outros. É
sinal de que podemos ser gente de bem e de paz. Se as decisões das autoridades
fossem criteriosas quanto ao cadastro criminal e outras suspeitas, a melhor é a
política de abertura generosa. Se os candidatos a passaporte, visto ou
nacionalidade, não forem bandidos, traficantes ou terroristas, é-me indiferente
que aspirem ao passaporte ou queiram vir para Portugal por razões económicas,
financeiras, políticas ou espirituais. Além
de legitimidade política, o Estado tem autoridade moral para recusar
passaportes, residência e nacionalidade a quem comete crimes, quem se dedica à
violência pública ou doméstica, quem trafica pessoas e bens e quem notoriamente
se organiza para desrespeitar as leis. Mas não tem autoridade para fechar o
país e a nacionalidade, nem para considerar a “portugalidade” um privilégio
raro e exigir aos candidatos o que não exige aos naturais.
Também
me é indiferente que uns queiram a nacionalidade para serem portugueses e
outros apenas para serem europeus. Hoje, ser português é ser europeu. Entrar
para a Europa tem de começar por algum sítio. Se for Portugal, pode ser bom
para nós. Se for por outro país, também cá estaremos, como europeus, para os
acolher.
Há
evidentemente graus de responsabilidade e de proximidade que podem influenciar
as decisões de cada país. Descendentes de sefarditas, de mouros, de soldados
africanos das Forças Armadas, de macaenses, de timorenses, de angolanos, de
moçambicanos, de brasileiros e outros podem e devem ter tratamento diferente do
que é dado a todas as outras populações com as quais os portugueses não tiveram
qualquer comunidade. Mas também os descendentes dos portugueses do ultramar
africano, da América Latina ou da Ásia devem ter tratamento adequado. Os
retornados e seus descendentes, os repatriados e seus descendentes e os que
ficaram a residir nas antigas colónias e seus dependentes devem ter protecção
política e diplomática adequada. Assim como reconhecimento dos seus direitos. O
estatuto de muitos portugueses africanos (brancos ou negros) em Portugal e
sobretudo nos países africanos merece cuidado e atenção e eles merecem apoio e
reconhecimento, o que hoje nem sempre acontece.
Há
muitos portugueses que são maltratados ou esquecidos. Não é por causa deles que
os sefarditas devem pagar. Nem eles nem outros. Mas aqueles portugueses de quem
não se cuida ou cuida mal começam por viver aqui, entre nós. E em muitos outros
sítios. São ainda os emigrantes e seus descendentes. São cidadãos portugueses
que perderam a nacionalidade por circunstâncias a que foram alheios (sobretudo
a descolonização). E são os filhos “africanos” de soldados portugueses
destacados para as colónias. O progresso decente reside no melhoramento, caso a
caso, grupo a grupo, destas situações e não na tentativa de resolver o problema
global e de forma integrada, que é o mesmo que dizer nunca!
Conceder passaporte, residência ou
nacionalidade, conforme os casos, a pessoas que queiram fazer negócios,
estudar, residir, casar, educar os filhos, viver a reforma, circular pela
Europa e desenvolver actividades legítimas de qualquer espécie, é um gesto
nobre que nos honra e enriquece. Sem que isto justifique uma política
descontrolada de imigração. Nem, com certeza, que tratemos os que nascem
portugueses pior do que os que o querem ser.
Sociólogo
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