domingo, 12 de julho de 2020

Quando tudo começou


Dizia-se: “África para os africanos!” Ou seja, “cada macaco no seu galho”, mas foi pura macacada hipócrita e traiçoeira contra os que ocuparam as terras de África, esquecendo os que ocuparam as terras das Américas mais ou menos dizimadores dos que por lá viviam, e a quem ninguém fez largar os respectivos continentes, nem na Austrália ou na Oceânia. Afinal, muitos africanos fugiram de África, como nós, aquando da tal fórmula “África para os africanos” e ainda bem que não utilizámos a fórmula contra eles, coitados, que viveram os mesmos terrores que nós, se bem que a mim me foi dito, por causa do carro de volante à direita que regressasse à minha terra e até tive de me desfazer do carro, com o seu buraco de bala perdida sem glória, para não ouvir as balas palavrosas dos condutores que me ultrapassavam, iracundos.

Agora pretendemos abrir fronteiras, como António Barreto bem explica, e dar passaportes aos descendentes dos que cá viveram, a quem também se pediu perdão, águas passadas, mas os íntegros de hoje não dão tréguas, boas criaturas, parciais que são - uma característica da bondade de hoje, a parcialidade na sua distribuição - digo, da bondade. O melhor mesmo é lermos António Barreto, que gosta de explicar bem, o que é um regalo para nós.

OPINIÃO
Os sefarditas e os outros
Tenho orgulho em viver num país cuja nacionalidade é pretendida por outros. Assim como num país cujos vistos e passaportes são desejados por outros. É sinal de que podemos ser gente de bem e de paz.
PÚBLICO, 12 de Julho de 2020
Quando, a propósito de um problema, surge a pergunta “e os outros?”, é de desconfiar: é alguém que quer fugir à questão pelo seu próprio mérito. Mas há também uma razão nisso: é verdade que a coerência é um critério importante. Quem critica a “tortura fascista”, por exemplo, não tem necessidade de acrescentar sempre “e a comunista”. Mas se critica aquela, isentando a outra, o argumento é suspeito. Na verdade, há ideias e lutas que só ganham significado quando não distinguem política, raça, crença, classe ou género.
A desigualdade, a segregação racial e a censura são outros exemplos. Por um lado, são alvos em si próprios. Por outro, os combates só ganham força e valor se forem universais, isto é, se não forem selectivos. Todo o racismo é condenável, não apenas o branco, o negro ou o asiático. É com esta dupla perspectiva que se pode olhar para a questão dos descendentes dos sefarditas em Portugal, problema inesperadamente polémico.
A legislação que reconhece direitos aos descendentes dos sefarditas portugueses na obtenção de passaporte ou de nacionalidade estava muito bem conforme estava. Ainda hoje, após longa discussão pública, não se percebe muito bem por que razões uns deputados pretendem alterar as leis. Parece haver intenção de perturbação. Se havia outros problemas, deveriam também, como é evidente, ser tratados por si. Sem necessidade de umas soluções impedirem outras, receita para eternos adiamentos.
A ideia de pedir perdão ao “povo judeu”, aos “sefarditas” em particular, é piegas e tem intuitos propagandísticos. Não me parece que os portugueses de hoje tenham o dever ou o direito de pedir perdão aos judeus, aos negros, aos índios, aos asiáticos ou seja a quem for. Nem aos democratas, aos comunistas, aos liberais, aos católicos, aos seguidores de várias igrejas, aos proprietários ou aos sindicalistasO folclore do pedido de perdão é uma actividade hipócrita, paternalista, com intuitos publicitários e de cariz falsamente democrático. Devemos pedir perdão a quem fazemos mal ou não fazemos justiça, não a quem foi maltratado pelos avós dos nossos avós ou por pessoas que aqui viviam há cinquenta, cem ou quinhentos anos. Já não estão cá os que mal fizeram. Nem os que mal sofreram.
Já a ideia de conceder aos sefarditas, que tal solicitem, passaporte, autorização de residência ou nacionalidade, parece uma solução interessante. Para nós e para eles. Ou antes, como dizia alguém, para nós todos. Este sistema de concessão de nacionalidade pode perfeitamente ser praticado sem a exigência de os candidatos falarem português, conhecerem a História de Portugal ou manterem “ligações intensas” com Portugal. Era o que estava mais ou menos estabelecido nas leis vigentes. É o que, sob pretextos tolos, umas dúzias de deputados pretendem alterar.
É nesta altura que se ouve a famosa pergunta: “E os outros?”. Por um lado, é pergunta oportunista, porque é um pretexto para quem não quer responder aos méritos da questão. Por outro lado, há razões para isso.
Tenho orgulho em viver num país cuja nacionalidade é pretendida por outros. Assim como num país cujos vistos e passaportes são desejados por outros. É sinal de que podemos ser gente de bem e de paz. Se as decisões das autoridades fossem criteriosas quanto ao cadastro criminal e outras suspeitas, a melhor é a política de abertura generosa. Se os candidatos a passaporte, visto ou nacionalidade, não forem bandidos, traficantes ou terroristas, é-me indiferente que aspirem ao passaporte ou queiram vir para Portugal por razões económicas, financeiras, políticas ou espirituais. Além de legitimidade política, o Estado tem autoridade moral para recusar passaportes, residência e nacionalidade a quem comete crimes, quem se dedica à violência pública ou doméstica, quem trafica pessoas e bens e quem notoriamente se organiza para desrespeitar as leis. Mas não tem autoridade para fechar o país e a nacionalidade, nem para considerar a “portugalidade” um privilégio raro e exigir aos candidatos o que não exige aos naturais.
Também me é indiferente que uns queiram a nacionalidade para serem portugueses e outros apenas para serem europeus. Hoje, ser português é ser europeu. Entrar para a Europa tem de começar por algum sítio. Se for Portugal, pode ser bom para nós. Se for por outro país, também cá estaremos, como europeus, para os acolher.
Há evidentemente graus de responsabilidade e de proximidade que podem influenciar as decisões de cada país. Descendentes de sefarditas, de mouros, de soldados africanos das Forças Armadas, de macaenses, de timorenses, de angolanos, de moçambicanos, de brasileiros e outros podem e devem ter tratamento diferente do que é dado a todas as outras populações com as quais os portugueses não tiveram qualquer comunidade. Mas também os descendentes dos portugueses do ultramar africano, da América Latina ou da Ásia devem ter tratamento adequado. Os retornados e seus descendentes, os repatriados e seus descendentes e os que ficaram a residir nas antigas colónias e seus dependentes devem ter protecção política e diplomática adequada. Assim como reconhecimento dos seus direitos. O estatuto de muitos portugueses africanos (brancos ou negros) em Portugal e sobretudo nos países africanos merece cuidado e atenção e eles merecem apoio e reconhecimento, o que hoje nem sempre acontece.
Há muitos portugueses que são maltratados ou esquecidos. Não é por causa deles que os sefarditas devem pagar. Nem eles nem outros. Mas aqueles portugueses de quem não se cuida ou cuida mal começam por viver aqui, entre nós. E em muitos outros sítios. São ainda os emigrantes e seus descendentes. São cidadãos portugueses que perderam a nacionalidade por circunstâncias a que foram alheios (sobretudo a descolonização). E são os filhos “africanos” de soldados portugueses destacados para as colónias. O progresso decente reside no melhoramento, caso a caso, grupo a grupo, destas situações e não na tentativa de resolver o problema global e de forma integrada, que é o mesmo que dizer nunca!
Conceder passaporte, residência ou nacionalidade, conforme os casos, a pessoas que queiram fazer negócios, estudar, residir, casar, educar os filhos, viver a reforma, circular pela Europa e desenvolver actividades legítimas de qualquer espécie, é um gesto nobre que nos honra e enriquece. Sem que isto justifique uma política descontrolada de imigração. Nem, com certeza, que tratemos os que nascem portugueses pior do que os que o querem ser.
Sociólogo
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