Do nosso fado. Dantes
o fado português estava mais circunscrito às problemáticas do ser e do destino –
o nosso particularmente catastrófico, tanto nos amores como nos espezinhamentos
sociais resultantes de um antigo marialvismo despudorado, machista e menos
trabalhador, definitivamente de maus hábitos sociais. Os assuntos evoluíram, das
temáticas queixosas, e hoje, sem música plangente, a condizer, usamos não o queixume
da resignação pessoal humilde ou lacrimosa, acompanhado dos instrumentos bem
bonitos da nossa tradição cultural, mas o ataque vociferante próprio dessas
temáticas agora altruístas, contra as marginalizações sociais que vêm da
distância dos tempos e que devem ser punidas hoje, tradição antiga do “se não
foste tu foi teu pai”. Mas esses ataques e queixumes de hoje não são
exclusivos portugueses, o nosso altruísmo sendo naturalmente de importação -
como a maioria do nosso alimento, de resto - com novos lobos em cena, os
cordeiros sendo os indefesos – mas não indefensáveis – de sempre. Paulo Tunhas o diz na sua elegante e bem urdida crónica, que as suas leituras
naturalmente favorecem, num primor de escrita que nos encanta.
A cultura do queixume /premium
Esta cultura da queixa e da acusação
é, com mais ou menos elementos próprios e idiossincráticos, adaptada pelos
diversos povos da periferia do Império. Os portugueses não são obviamente
excepção.
PAULO TUNHAS
OBSERVADOR, 16 jul
2020
Lê-se
um jornal ou vê-se uma televisão e é certo e seguro: uma boa parte da
conversa gira em torno da culpa e da inocência, do ódio e do amor, dos pecados
e da compensação devida pelos pecados cometidos, da inferioridade fáctica que é
uma superioridade real e da inferioridade real que aparenta ser uma
superioridade fáctica.
Tudo isso, como de costume, nos vem
dos Estados Unidos. Não há
certamente Império, mas na cabeça da maioria opinativa é como se houvesse, ao
ponto de praticamente toda a gente se comportar como se tivesse uma dupla
nacionalidade: aquela que o acaso lhe destinou e aquela que desejaria
no fundo ter – a americana.
Naturalmente, todas as tentativas de nos incutir a ideia de uma “cidadania
europeia” esbarram contra esta pulsão básica, tão mais eficaz e poderosa quanto
permanece em larga medida inconsciente e se manifesta o mais das vezes sob a
forma negativa da detestação.
Um
dos muitos problemas com esta atitude mental é que a adopção dos debates
americanos nos chega com um atraso apreciável, numa espécie de mimetismo
retardado, que a ocasional coincidência temporal – como, por exemplo, as
manifestações por causa da morte de George Floyd ou a destruição das estátuas –
não chega para disfarçar. A
posterioridade faz parte da essência do mimetismo e a dúvida não incide nunca
sobre o atraso em si, mas sobre o grau com que ele se revela (maior em Portugal
do que na França ou na Inglaterra, por exemplo) e nas particularidades
nacionais que o condicionam.
Lembrei-me
(mais uma vez) disto na semana passada, ao ler dois livros publicados nos
Estados Unidos no início dos anos 90: The Content of Our Character (1990),
do académico conservador (negro) Shelby Steele, que foi bestseller do
New York Times de outros tempos, e Culture of Complaint (1993), do
grande crítico de arte (branco e australiano, embora tendo vivido grande parte
da sua vida nos Estados Unidos) Robert Hughes. Nunca tinha lido nada de
Steele, mas, em contrapartida, li, com invariável prazer, quase tudo aquilo que
Hughes (para simplificar: um homem de esquerda) escreveu nos anos da sua
vida.
O
que me surpreendeu, por assim dizer, foi a dimensão do acordo que duas pessoas
com pontos de vista em larga medida incoincidentes por relação à sociedade
manifestam no que toca a certos temas essenciais. Mais genericamente, diria que
as questões decisivas e fundamentais são aquelas em que indivíduos inteligentes
e informados de esquerda e de direita partilham (sem que isso implique a
adopção de um ponto de vista habermasiano sobre uma situação ideal de
comunicação – uma ideia, de resto, interessante) preocupações comuns.
As
preocupações de Steele, que é naturalmente sensível a todas as manifestações de
racismo no interior da sociedade americana, giram em torno de todos os
movimentos que se recusam a aceitar o facto de as oportunidades para os negros
americanos terem, em larga medida graças à acção de Martin Luther King,
aumentado exponencialmente. É a reacção negativa face a essa possibilidade que
o preocupa. E o que
ele vê, e mais teme, é a tendência a explorar um sentimento de vitimização,
assente na convicção de uma inocência radical, que assegura ilusoriamente um
poder fundado num sentimento de culpa branco. O orgulho racial apoia-se numa angústia, ou numa
ansiedade, dos brancos face às suas malfeitorias passadas. Daí toda a conversa
em torno da exigência de reparações (como se os sofrimentos daqueles que
sofreram o horror da escravatura pudessem ser “reparados”) e as inúmeras
consequências perversas da “acção afirmativa”. Não se
trata de modo algum de negar que a memória da escravatura cria uma situação
existencial e identitária que incute um sentimento doloroso de inferioridade –
ao qual o “orgulho racial” aparece como um compreensível antídoto.
Pelo
seu lado, Robert Hughes, não menos sensível do que Steele a todas as formas de
discriminação, preocupa-se igualmente com a permanente manufactura de
vítimas imaginárias que se tornou a moeda corrente na nossa sociedade e com a
alucinação de extravagantes culpas que a acompanha. A
manufactura das vítimas vai a par com o culto da “expressão pessoal” e da
“auto-estima”, que funciona como uma potente barreira a toda a argumentação
racional. Os argumentos, quando servem para alguma coisa, adquirem quase invariavelmente
a forma do argumento ad hominem. Há
uma espécie de irracionalismo triunfante, que se manifesta, entre outras coisas
– e o exemplo é desgraçadamente muito actual -, na atribuição a Colombo de
todos os males do mundo, tema a que dedica várias páginas excelentes, e nas
delirantes construções teóricas “afrocentristas”, que colocam os povos
africanos na origem de toda a cultura ocidental, em todos os seus aspectos:
filosóficos, culturais e até tecnológicos (os africanos teriam, por exemplo,
inventado os aviões). Tal como
Steele, Hughes detecta aqui uma tendência voluntária para a auto-segregação (à
sua maneira, a dialéctica da inferioridade e da superioridade também para ele
se encontra em jogo, bem como o fantasma, transportado pela memória, de uma opressão
passada) que se ergue contra a ideia de uma base cívica que, no contexto de uma
certa multicularidade, nos deve unir.
Esta cultura da queixa e da acusação é, com mais ou menos elementos
próprios e idiossincráticos, adaptada pelos diversos povos da periferia do
Império. Os portugueses não são obviamente
excepção. Também aqui a “memória-inimiga”, como lhe chama Steele, conhece os
seus ímpetos furiosos. Um bom exemplo é toda a recente conversa em torno do
“discurso de ódio”, que a ministra Mariana Vieira da Silva almeja “monitorizar”, com o auxílio precioso de um
cavalheiro que dá pelo nome de Gustavo Cardoso, e, melhor ainda, a reacção de um vasto número de
universitários ao recente livro de Riccardo Marchi sobre o Chega de André
Ventura, um livro que vou comprar e ler mal possa, por causa deles e das duas
entrevistas que li do autor, que me pareceram muito interessantes. “Contra a higienização académica do racismo e fascismo
do Chega”, chamam
eles ao seu pequeno manifesto. Todo o texto é um perfeito testemunho
da lógica maniqueísta que apontei no primeiro parágrafo e que, à sua maneira,
Steele e Hughes igualmente abordam. A “memória-inimiga” obriga-os a alucinar o
passado no presente e a não ver no presente mais do que uma estrita repetição
do passado. Ao ponto de
uma pessoa se perguntar se, à falta dessa alucinação, algo mais teriam sobre o
qual conversar. A mim, isto levou-me, curiosamente, ao místico
sueco Emanuel Swedenborg. Swedenborg
tinha a maravilhosa teoria segundo a qual, depois da morte, as pessoas, no Céu
e no Inferno, levavam uma existência em tudo semelhante àquela que haviam
levado nas suas vidas, apenas com a diferença que as percepções seriam mais
intensas. O que as colocaria num lugar ou noutro seria a natureza das conversas
que preferiam ter. Longe de mim a pretensão de imaginar a residência futura dos
signatários do manifesto no Céu ou no Inferno, mas não creio ofender ninguém se
manifestar a minha convicção que esta conversa sobre a iminência do retorno do
fascismo arrisca-se a ocupá-los pela
eternidade inteira.
Um
último exemplo de certas particularidades portuguesas que ecoam a cultura do
queixume de que fala Robert Hughes e a dialéctica da inferioridade e da
superioridade à qual se refere Steele. Com tantos países da Europa, em
particular o Reino Unido, a colocarem entraves à vinda dos seus cidadãos a
Portugal, por causa da taxa de propagação lusitana do coronavírus, assistimos a
mais uma repetição do momento-Ultimato, com toda a gente a reescrever mentalmente
o Finis
patriae de Guerra
Junqueiro e a
sonhar com lordes cortados às postas a boiarem no Tamisa. Aos sessenta anos já vi isto tantas vezes que não me
surpreende. Inspirado no vocabulário do seu chefe António Costa – que, de
resto, como uma barata tonta, oscila entre a submissão e a arrogância –, o
ministro Santos Silva adapta de todas as maneiras possíveis as acusações contra
os “repugnantes” e os “forretas” e põe-se a “exigir” tudo o que lhe passa pela
cabeça a vários governos europeus, com indisfarçadas e temíveis ameaças. Queixamo-nos
da inferioridade em que supostamente nos colocam, reivindicamos a mais radical
inocência e pretendemos por este meio afirmar uma indisputável superioridade. É
a nossa maneira de conceber um “manifesto destino” nacional.
COMENTÁRIOS:
Livre e
independente:: O queixume do
queixume não é em si mesmo mais do mesmo?
Dulce Almeida: Mais uma vez artigo notável. O Paulo tem que escrever muito mais e, se
possível, estender o âmbito da sua intervenção na vida pública. Sendo agora
patente o ponto a que isto já chegou, não pode mais deixar de questionar-se
como foi possível, a coberto de suposta liberdade universitária e organização
democrática da Universidade, e a expensas dos contribuintes, deixar encrustar
na academia tais antros de perigosidade extrema para a democracia e a
liberdade. Logo que haja um governo neste país, é seu imperativo primeiro
assegurar que os senhores reitores põem fim imediato ao que se está a passar no
âmbito das suas disciplinas de sociologia, antropologia, história, "ciências"
da educação, e nos célebres " estudos" feministas, africanos ... Não
o fazendo a Universidade, não pode o governo, no uso de legitima autoridade
democrática, deixar de intervir e pôr fim imediato e irreversível a tal estado
de coisas.
João Porrete: Shelby Steele é notável, tal como os intelectuais negros Jason Riley,
Walter Williams e, sobretudo, o grande Thomas Sowell.
Diogo Oliveira: Excelente texto. Obrigado.
Portugal, que Futuro É absurdo como a manipulação dos valores da justiça, igualdade e inclusão
abriu as portas ao totalitarismo no ocidente. A
geração dos anos 60 foi a triste protagonista da desintegração da nossa
cultura. Pode ser que, presenciando a erosão
das nossas sociedades, todos aprendamos algo, pelo menos a valorizar os
direitos e garantias de que usufruímos e que nunca serão garantidos. O que seria do socialismo sem a cultura do
queixume? a humildade, espiritualidade, força interior, perseverança,
capacidade de superação, valorização do trabalho como componente fundamental da
realização individual, isso não dá bons socialistas.
josé maria: Paulo Tunhas, ao longo dos seus diversos artigos, tem sido um exemplo
eloquente da cultura do queixume e da acusação, com notória prevalência de
elementos próprios e idiossincráticos. Por isso mesmo, ele deve saber muito bem
do que fala, basta olhar para o espelho.
José Paulo C Castro > josé maria: O seu comentário é tão nonsense que achei que a Ana
Ferreira o tinha escrito. Partilham as mesmas instalações?
josé maria > José Paulo C
Castro: "Então, disse-lhes Jesus: “Vinde após mim, e Eu
vos farei pescadores de homens”. Eles, imediatamente deixaram suas redes e
seguiram Jesus. " MT 4, 19:20 Afinal,
é do Largo ou da Capela do Rato que vêm as instruções ?
bento guerra: A
"cultura do queixume" é igual à cultura do "não é aqui, mas no
guichet ao lado". Irresponsabilidade
João Bilé Serra:
Parabéns ao autor pela clarividência e
pelo amor à verdade de que sempre dá provas.
Mario Areias: Mais um excelente texto como habitualmente.
Paulo Silva: A cultura do
queixume é adaptada e adoptada por todos os que invejam o Imperador. Esses
tanto estão na periferia do Império, como em especial na corte do Império:
“As
the Iron Curtain crumbled, people often joked, "Marxism is dead everywhere
- except American universities."
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