Mais um texto de alerta, este de Luís Rosa. Alguns comentários, entre os muitos
que recebeu, justificam as indiscrições do autor da crónica. Trata-se de “revisões”,
como se escrevia às vezes nos sumários da escola antiga. Não sei se ainda se
escreve, nas técnicas da nova escola, não de transmissão, mas preferencialmente de
partilha de conhecimentos, o tempo escasso para o ruído das matérias, de muitos saberes e sabores…
A ética da responsabilidade de António Costa /premium
Seria bom termos um PM fiel à nobreza do cargo e que
assumisse a responsabilidade das acções ou das omissões do Governo. Mas Costa
não é esse tipo de líder. Pela razão de que a culpa nunca é sua.
LUÍS ROSA, Redator
Principal e colunista do Observador
OBSERVADOR, 29 jun 2020
1O
sociólogo alemão Max Weber distinguia o mundo privado do mundo público-político
através de dois conceitos: a ética da convicção e a ética da responsabilidade. A primeira pertence à vida privada porque se baseia
numa escala de valores (religiosos, culturais, etc.) que precede e influencia
as acções dos indivíduos, enquanto a ética da responsabilidade concentra-se nos
resultados e consequências das acções — como é próprio do mundo político. Sendo
lógico concluir que os cidadãos destinatários das decisões dos políticos não
são homens perfeitos, então os políticos não podem lançar em “ombros alheios as
consequências previsíveis das suas próprias acções”, dizia Weber.
Não
é propriamente uma surpresa mas se há coisa que marca o mandato de
António Costa como primeiro-ministro é precisamente o
seu afã em descartar responsabilidades quando aparecem problemas. Foi
assim com os incêndios trágicos de 2017 em que morreram mais de 100
pessoas, foi assim com o assalto a Tancos, foi assim com as consequências
do baixo investimento público derivado da política de cativações de Mário
Centeno e começou a ser assim com a crise pandémica.
Basta
ver o que aconteceu na habitual reunião do poder político com os técnicos
do Instituto Ricardo Jorge e da Direcção-Geral de Saúde (DGS) no Infarmed que ocorreu na última quarta-feira. Tal como o
Observador noticiou, os especialistas explicaram que a subida dos casos diários
na região de Lisboa tinha como causa a “coabitação”, o “contexto laboral” e
o “contexto social”. De forma resumida, os surtos de infecção em Sintra,
Amadora ou Loures têm a ver com situações de pobreza em que as habitações estão
sobrelotadas e na falta de transportes públicos, como José Manuel
Fernandes já tinha antecipado aqui.
A tese dos jovens e dos testes (que têm uma das taxas
de infectados mais altas da Europa) de António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa
caiu assim por terra.
A
essa informação essencial somou-se o relato da revista
Visão que descreveu um puxão de orelhas de
António Costa à ministra Marta Temido e uma reacção áspera do primeiro-ministro
a uma crítica (legítima) do representante do sector do turismo. Pior:
exasperado com os especialistas, Costa terá dito que, se algo falhar, “a culpa
não será sua” porque os especialistas não estão a ser claros na interpretação
dos dados.
2E,
verdade seja dita, a responsabilidade é mesmo sua. É claro para todos que o
Governo não reforçou convenientemente a capacidade de resposta das estruturas
de saúde pública para a fase de desconfinamento. Preferiu surfar os resultados
positivos do ‘milagre português’ em vez de preparar o futuro.
Vamos
a exemplos concretos. Se, como António Costa está sempre a dizer em loop, era
natural que os números de infectados subissem com o desconfinamento e se a
estratégia era de testar, identificar e isolar, por que razão não foi feito
um reforço das equipas dos inquéritos epidemiológicos — que
entrevistam os novos infectados e tentam reconstituir as cadeias de transmissão? Como é possível, como o Expresso noticiou este fim-de-semana, que só na Amadora tenha existido cerca de 100 casos que não tiveram
qualquer rastreio por falta de funcionários — que foram pedidos logo em maio?
O que andaram a fazer a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do
Tejo e a DGS? Pediram o reforço de verbas ao Ministério da Saúde e este às
Finanças? E, se pediram, esse reforço foi autorizado ou negado? Muitas
perguntas por responder quando sabemos hoje que os especialistas da DGS e
do Instituto Ricardo Jorge calculam que 15% a 20% dos novos casos não
tiveram controlo da cadeia de transmissão.
Só
depois da notícia do Expresso
(que deve ser lida e relida por ser um retrato fiel da incompetência do
Governo, para dizer o mínimo) é que o Ministério da Saúde correu a anunciar
a contratação de 120 profissionais para reforçar a área da saúde pública em
Lisboa e Vale do Tejo. E já agora: esse número chega quando o Reino Unido contratou
18 mil funcionários para todo o país, a Espanha 770 profissionais só para a
região de Madrid e a Alemanha quer ter um rastreador por cada quatro mil
cidadãos? Eis mais um
dado que volta a demonstrar que Portugal está muito longe de estar
preparado: no concelho da Amadora, um dos mais afectados pelos novos casos
desde maio, há um rastreador para cada 36 mil habitantes, segundo Expresso.
Outra
falha identificada pelos especialistas — que também não é do agrado do
primeiro-ministro, claro — prende-se com os transportes públicos. Ao contrário do que foi prometido pelo Governo, os transportes
não foram obviamente reforçados na medida das necessidades da população.
Resultado: o número de transportes em operação não consegue
evitar autocarros, comboios e carruagens de metro apinhados de gente na hora de
ponta.
E escusa o Governo de vir derramar
lágrimas de crocodilo: esta também é a consequência da política das cativações
de Mário Centeno e que levou o investimento público do período 2015/2019 a
valores mais baixos do que o período da troika.
Mais
uma falha no planeamento: a app de contact tracing só vai estar disponível entre 15
de julho e o início do Agosto. Esta deveria ter sido uma prioridade do
Executivo para termos uma aplicação informática disponível entre maio e junho
para realizar os rastreios de infectados — tal como já acontece na Alemanha e
noutros países — e ficarmos menos dependentes dos inquéritos epidemiológicos
que são muito mais demorados e sujeitos a falhas humanas. E deveria ter
sido uma prioridade igualmente junto da Comissão de Protecção de Dados (uma
estrutura conhecida por obstaculizar em vez de colaborar construtivamente) face
ao momento especial que atravessamos.
Estas são questões concretas às quais
António Costa não pode escapar e que demonstram a incompetência do Governo para
antecipar os problemas e organizar uma resposta eficiente ao óbvio aumento de
infectados que o desconfinamento traria sempre.
3 É
imperioso que o Governo mude a sua forma de actuar, sob pena de amanhã a
situação não se restringir única e exclusivamente a Lisboa e Vale do Tejo.
Veja-se o caso do Algarve — que conheço bem por ser a minha terra. O turismo
deste Verão, nomeadamente durante agosto, deve-se restringir ao turismo
nacional — até pela impossibilidade de os portugueses realizarem férias noutros
destinos.
Ora,
a região do Algarve tem más infra-estruturas de saúde como é do conhecimento comum de qualquer algarvio ou
residente. Pior: tem um défice crónico de médicos desde há longos anos, razão pela qual no Verão (quando a população no
Algarve duplica ou triplica) a ARS do Algarve costuma reforçar os quadros
clínicos dos hospitais da região.
Pois sabe o caro leitor quantos médicos foram pedidos à ARS do Algarve? Menos do que no ano anterior:
60 este ano contra 66 em 2019.
Lembra-se
do alerta do responsável regional da Ordem dos Médicos, de que o Algarve podia fechar com cerca de 100 casos, alerta que foi
automaticamente classificado de “alarmista”? Basta ler a entrevista que
Alexandre Valentim Lourenço deu então
Diário de Notícias para perceber que os alertas deixados por aquele médico
estão fundamentados e merecem uma redobrada atenção. Mas se lermos as reacções
dos responsáveis da autoridade de saúde, percebemos facilmente que pouco ou
nada está a ser feito em termos de planeamento para conter um mais do que óbvio
aumento de casos no Algarve, nomeadamente em agosto. Fica aqui feito o
alerta para ver se o Governo reage e antecipa o perigo que pode representar o
mês de agosto para o Algarve.
4A história ainda não acabou, caro leitor. Vinte e
quatro horas depois de ter zurzido nos cientistas na reunião do Infarmed por
não apresentarem respostas conclusivas (e, porventura, por não assumirem a sua
responsabilidade), António Costa lá
decidiu colocar o país a várias velocidades, destacando-se a manutenção do
estado de calamidade para 19 freguesias da Área Metropolitana de Lisboa.
Esta
decisão já devia ter sido tomada há pelos menos duas ou três semanas quando o
número de infectados na região de Lisboa já eram consistentemente elevados
desde maio. A consequência dessa inacção é que os números não param de subir: a
semana passada, bateu-se o recorde de números diários desde 8 de maio por duas
vezes com mais de 450 casos. Foi a pior semana desde o final de abril. E, já
agora, alguém deu pela existência do “gabinete regional de
intervenção em Lisboa e Vale do Tejo para suprir a Covid-19” anunciado pela ministra Marta Temido a 10 de junho e liderado
pelo médico Rui Portugal? E essa estrutura está coordenada com o secretário de
Estado Duarte Cordeiro, que aparentemente também é o coordenador regional de
Lisboa e Vale do Tejo no combate à pandemia, e que fez um anúncio discreto mas importante de “partilha de
responsabilidades” (a tal palavra maldita para António Costa) entre as
autoridades de Saúde e da Protecção Civil em Lisboa? Convinha que as duas
estruturas não se atropelassem.
Comprovando
que esta foi a pior semana de António Costa em largos meses, o líder
socialista deu uma entrevista este domingo ao jornal catalão La Vanguardia em que
afirma que o problema da região de Lisboa
está concentrado nos bairros periféricos de Lisboa e não no centro da
capital. A treta de António Costa (tão realista quanto a dos testes e a dos
jovens) desconstrói-se facilmente se falarmos apenas dos trabalhadores da
construção civil e funcionários de serviços que, como acontece em qualquer
capital europeia, se deslocam diariamente dos bairros periféricos para o centro
da cidade. Portanto, existe um perigo de contágio na mobilidade destes
trabalhadores que não permite ao primeiro-ministro afirmar que o problema só
existe na periferia da Grande Lisboa.
5 Quando
o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa e o próprio António Costa reconhecem
finalmente que o “milagre português” desvaneceu-se (bem vistas as coisas, nunca
existiu) e que a subida constante dos números diários da situação
epidemiológica nacional é preocupante, seria bom termos um primeiro-ministro
fiel à nobreza do seu cargo e que assumisse, como líder que deveria ser, as
responsabilidades das suas acções ou das suas omissões.
Infelizmente,
para Portugal não é esse o tipo de líder que nos calhou na rifa. Em vez de um
primeiro-ministro com ética de responsabilidade, temos António Costa a
apontar o dedo a tudo e a todos, menos a si próprio — o primeiro e o último
responsável pelo Poder Executivo.
PS –
Mais do que os péssimos resultados nas sondagens, o definhamento do PSD de Rui
Rio revela-se nas estruturas. Quando três concelhias da distrital
social-democrata do Porto, a maior do país, não têm
candidatos, isso é um forte sinal de desmobilização dentro do
próprio partido. A acompanhar.
CORONAVÍRUS SAÚDE PÚBLICA SAÚDE ANTÓNIO COSTA POLÍTICA MARCELO
REBELO DE SOUSA PRESIDENTE DA
REPÚBLICA
(Alguns) COMENTÁRIOS:
Antonio Sousa
Branco: Crónica directa, certeira...sem rodriguinhos,
que põe os postos nos ii. Só adiantava que isto acontece, apesar de, como
repete até à exaustão o Presidente Marcelo, sermos os melhores do mundo. Imagino,
se não estivéssemos no podium do globo.
Romeu Francisco: Boa crónica. Planear implica trabalho sério.
E Costa estava mais preocupado em fazer propaganda na praia...
Carlos Oliveira: Parabéns ao articulista que espelhou aqui a péssima gestão da situação pandémica
que nos está a encaminhar rapidamente para o descontrolo generalizado.
Este tipo de
análise da realidade desfavorável ao governo não é abordado por mais nenhum
jornal. Porque será? Não terá a ver com o subsídio que receberam recentemente?
Pois parece que já estão a retribuir...
santos de silva: Acreditamos que quem dá ordens na casa assombrada do rato são sociedades
secretas pouco recomendáveis. Por via da gang filosófica (que Costa traz nas
palminhas). Que percebeu o perfil marioneta pantomineira do ambicioso Costa.
Logo, assumir responsabilidades
é cosa nostra doutra gente que não
ele.
Victor Cerqueira: Ética?! Com o costa e a tralha socrática que o acompanha? Por favor, não
gaste essa palavra. Costa NÃO tem ESCRÚPULOS, nunca teve, nem NUNCA terá. Mas não está só neste país (?)
que tem, quanto a mim, três problemas (entre muitos outros) que são estruturais
na sociedade portuguesa: a) ausência de sentido (responsabilidade) social (o empresário que se
"torce" todo para pagar salário mínimo é o mesmo que gasta num fim de
semana essa quantia sem qualquer problema de consciência), b) falta de ética (preciso de dar
exemplos?) c) desonestidade intelectual (se o Zé for um querido ou da cor pode dizer o
que quiser, se o Manuel não for, e disser exactamente o mesmo, é trucidado)
Jorge Simoes: Pediram o reforço de verbas ao Ministério da Saúde e este às Finanças? E,
se pediram, esse reforço foi autorizado ou negado? Uma coisa que nunca se saberá.
Porque o Ronaldo Centeno é um crack e o novo já disse que só é responsável
pelas suas decisões, aos dos anteriores que se lixe. Esquecem-se que são a cara
do Estado como tal são responsáveis pelo passado, presente e pelo que poderão
provocar no futuro. São responsáveis pelo passado, pois se ele está mal deverão corrigir. Pelo
presente por causa da afirmação anterior, pelo futuro pois deverão gerir bem
para as gerações vindouras tenham hipóteses de evoluir. Andamos há 20 anos a tentar
tapar buracos, mas quando tapam um abrem outro mais fundo.... Por isso os
jovens de hoje cada vez têm menos hipóteses de futuro e os que têm dois dedos
de testa vão-se embora.
Ping PongYang: Ouvi bem? Um apoiante do Passos atreve-se a falar de verdade, ética, rigor, responsabilidade... Já agora de trabalho
e estudo, não ? Por este andar,
qualquer dia até os obesos mórbidos tipo Boris Johnson começam
a andar por aí a falar em emagrecimento... Que grande lata!
Nenhum comentário:
Postar um comentário