quarta-feira, 1 de julho de 2020

Soma e segue



Mais um texto de alerta, este de Luís Rosa. Alguns comentários, entre os muitos que recebeu, justificam as indiscrições do autor da crónica. Trata-se de “revisões”, como se escrevia às vezes nos sumários da escola antiga. Não sei se ainda se escreve, nas técnicas da nova escola, não de transmissão, mas preferencialmente de partilha de conhecimentos, o tempo escasso para o ruído das matérias, de muitos saberes e sabores…



A ética da responsabilidade de António Costa /premium
Seria bom termos um PM fiel à nobreza do cargo e que assumisse a responsabilidade das acções ou das omissões do Governo. Mas Costa não é esse tipo de líder. Pela razão de que a culpa nunca é sua.
LUÍS ROSA, Redator Principal e colunista do Observador
OBSERVADOR, 29 jun 2020
1O sociólogo alemão Max Weber distinguia o mundo privado do mundo público-político através de dois conceitos: a ética da convicção e a ética da responsabilidade. A primeira pertence à vida privada porque se baseia numa escala de valores (religiosos, culturais, etc.) que precede e influencia as acções dos indivíduos, enquanto a ética da responsabilidade concentra-se nos resultados e consequências das acções — como é próprio do mundo político. Sendo lógico concluir que os cidadãos destinatários das decisões dos políticos não são homens perfeitos, então os políticos não podem lançar em “ombros alheios as consequências previsíveis das suas próprias acções”, dizia Weber.
Não é propriamente uma surpresa mas se há coisa que marca o mandato de António Costa como primeiro-ministro é precisamente o seu afã em descartar responsabilidades quando aparecem problemas. Foi assim com os incêndios trágicos de 2017 em que morreram mais de 100 pessoas, foi assim com o assalto a Tancos, foi assim com as consequências do baixo investimento público derivado da política de cativações de Mário Centeno e começou a ser assim com a crise pandémica.
Basta ver o que aconteceu na habitual reunião do poder político com os técnicos do Instituto Ricardo Jorge e da Direcção-Geral de Saúde (DGS) no Infarmed que ocorreu na última quarta-feira. Tal como o Observador noticiou, os especialistas explicaram que a subida dos casos diários na região de Lisboa tinha como causa a “coabitação”, o “contexto laboral” e o “contexto social”. De forma resumida, os surtos de infecção em Sintra, Amadora ou Loures têm a ver com situações de pobreza em que as habitações estão sobrelotadas e na falta de transportes públicos, como José Manuel Fernandes já tinha antecipado aqui. A tese dos jovens e dos testes (que têm uma das taxas de infectados mais altas da Europa) de António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa caiu assim por terra.
A essa informação essencial somou-se o relato da revista Visão que descreveu um puxão de orelhas de António Costa à ministra Marta Temido e uma reacção áspera do primeiro-ministro a uma crítica (legítima) do representante do sector do turismo. Pior: exasperado com os especialistas, Costa terá dito que, se algo falhar, “a culpa não será sua” porque os especialistas não estão a ser claros na interpretação dos dados.
2E, verdade seja dita, a responsabilidade é mesmo sua. É claro para todos que o Governo não reforçou convenientemente a capacidade de resposta das estruturas de saúde pública para a fase de desconfinamento. Preferiu surfar os resultados positivos do ‘milagre português’ em vez de preparar o futuro.
Vamos a exemplos concretos. Se, como António Costa está sempre a dizer em loop, era natural que os números de infectados subissem com o desconfinamento e se a estratégia era de testar, identificar e isolar, por que razão não foi feito um reforço das equipas dos inquéritos epidemiológicosque entrevistam os novos infectados e tentam reconstituir as cadeias de transmissão? Como é possível, como o Expresso noticiou este fim-de-semana, que só na Amadora tenha existido cerca de 100 casos que não tiveram qualquer rastreio por falta de funcionários — que foram pedidos logo em maio? O que andaram a fazer a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo e a DGS? Pediram o reforço de verbas ao Ministério da Saúde e este às Finanças? E, se pediram, esse reforço foi autorizado ou negado? Muitas perguntas por responder quando sabemos hoje que os especialistas da DGS e do Instituto Ricardo Jorge calculam que 15% a 20% dos novos casos não tiveram controlo da cadeia de transmissão.
Só depois da notícia do Expresso (que deve ser lida e relida por ser um retrato fiel da incompetência do Governo, para dizer o mínimo) é que o Ministério da Saúde correu a anunciar a contratação de 120 profissionais para reforçar a área da saúde pública em Lisboa e Vale do Tejo. E já agora: esse número chega quando o Reino Unido contratou 18 mil funcionários para todo o país, a Espanha 770 profissionais só para a região de Madrid e a Alemanha quer ter um rastreador por cada quatro mil cidadãos? Eis mais um dado que volta a demonstrar que Portugal está muito longe de estar preparado: no concelho da Amadora, um dos mais afectados pelos novos casos desde maio, há um rastreador para cada 36 mil habitantes, segundo Expresso.
Outra falha identificada pelos especialistas — que também não é do agrado do primeiro-ministro, claro — prende-se com os transportes públicos. Ao contrário do que foi prometido pelo Governo, os transportes não foram obviamente reforçados na medida das necessidades da população. Resultado: o número de transportes em operação não consegue evitar autocarros, comboios e carruagens de metro apinhados de gente na hora de ponta.
E escusa o Governo de vir derramar lágrimas de crocodilo: esta também é a consequência da política das cativações de Mário Centeno e que levou o investimento público do período 2015/2019 a valores mais baixos do que o período da troika.
Mais uma falha no planeamento: a app de contact tracing só vai estar disponível entre 15 de julho e o início do Agosto. Esta deveria ter sido uma prioridade do Executivo para termos uma aplicação informática disponível entre maio e junho para realizar os rastreios de infectados — tal como já acontece na Alemanha e noutros países — e ficarmos menos dependentes dos inquéritos epidemiológicos que são muito mais demorados e sujeitos a falhas humanas. E deveria ter sido uma prioridade igualmente junto da Comissão de Protecção de Dados (uma estrutura conhecida por obstaculizar em vez de colaborar construtivamente) face ao momento especial que atravessamos.
Estas são questões concretas às quais António Costa não pode escapar e que demonstram a incompetência do Governo para antecipar os problemas e organizar uma resposta eficiente ao óbvio aumento de infectados que o desconfinamento traria sempre.
3 É imperioso que o Governo mude a sua forma de actuar, sob pena de amanhã a situação não se restringir única e exclusivamente a Lisboa e Vale do Tejo. Veja-se o caso do Algarve — que conheço bem por ser a minha terra. O turismo deste Verão, nomeadamente durante agosto, deve-se restringir ao turismo nacional — até pela impossibilidade de os portugueses realizarem férias noutros destinos.
Ora, a região do Algarve tem más infra-estruturas de saúde como é do conhecimento comum de qualquer algarvio ou residente. Pior: tem um défice crónico de médicos desde há longos anos, razão pela qual no Verão (quando a população no Algarve duplica ou triplica) a ARS do Algarve costuma reforçar os quadros clínicos dos hospitais da região. Pois sabe o caro leitor quantos médicos foram pedidos à ARS do Algarve? Menos do que no ano anterior: 60 este ano contra 66 em 2019.
Lembra-se do alerta do responsável regional da Ordem dos Médicos, de que o Algarve podia fechar com cerca de 100 casos, alerta que foi automaticamente classificado de “alarmista”? Basta ler a entrevista que Alexandre Valentim Lourenço deu então Diário de Notícias para perceber que os alertas deixados por aquele médico estão fundamentados e merecem uma redobrada atenção. Mas se lermos as reacções dos responsáveis da autoridade de saúde, percebemos facilmente que pouco ou nada está a ser feito em termos de planeamento para conter um mais do que óbvio aumento de casos no Algarve, nomeadamente em agosto. Fica aqui feito o alerta para ver se o Governo reage e antecipa o perigo que pode representar o mês de agosto para o Algarve.
4A história ainda não acabou, caro leitor. Vinte e quatro horas depois de ter zurzido nos cientistas na reunião do Infarmed por não apresentarem respostas conclusivas (e, porventura, por não assumirem a sua responsabilidade), António Costa lá decidiu colocar o país a várias velocidades, destacando-se a manutenção do estado de calamidade para 19 freguesias da Área Metropolitana de Lisboa.
Esta decisão já devia ter sido tomada há pelos menos duas ou três semanas quando o número de infectados na região de Lisboa já eram consistentemente elevados desde maio. A consequência dessa inacção é que os números não param de subir: a semana passada, bateu-se o recorde de números diários desde 8 de maio por duas vezes com mais de 450 casos. Foi a pior semana desde o final de abril. E, já agora, alguém deu pela existência do “gabinete regional de intervenção em Lisboa e Vale do Tejo para suprir a Covid-19anunciado pela ministra Marta Temido a 10 de junho e liderado pelo médico Rui Portugal? E essa estrutura está coordenada com o secretário de Estado Duarte Cordeiro, que aparentemente também é o coordenador regional de Lisboa e Vale do Tejo no combate à pandemia, e que fez um anúncio discreto mas importante de “partilha de responsabilidades” (a tal palavra maldita para António Costa) entre as autoridades de Saúde e da Protecção Civil em Lisboa? Convinha que as duas estruturas não se atropelassem.
Comprovando que esta foi a pior semana de António Costa em largos meses, o líder socialista deu uma entrevista este domingo ao jornal catalão La Vanguardia em que afirma que o problema da região de Lisboa está concentrado  nos bairros periféricos de Lisboa e não no centro da capital. A treta de António Costa (tão realista quanto a dos testes e a dos jovens) desconstrói-se facilmente se falarmos apenas dos trabalhadores da construção civil e funcionários de serviços que, como acontece em qualquer capital europeia, se deslocam diariamente dos bairros periféricos para o centro da cidade. Portanto, existe um perigo de contágio na mobilidade destes trabalhadores que não permite ao primeiro-ministro afirmar que o problema só existe na periferia da Grande Lisboa.
5 Quando o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa e o próprio António Costa reconhecem finalmente que o “milagre português” desvaneceu-se (bem vistas as coisas, nunca existiu) e que a subida constante dos números diários da situação epidemiológica nacional é preocupante, seria bom termos um primeiro-ministro fiel à nobreza do seu cargo e que assumisse, como líder que deveria ser, as responsabilidades das suas acções ou das suas omissões.
Infelizmente, para Portugal não é esse o tipo de líder que nos calhou na rifa. Em vez de um primeiro-ministro com ética de responsabilidade, temos António Costa a apontar o dedo a tudo e a todos, menos a si próprio — o primeiro e o último responsável pelo Poder Executivo.
PS – Mais do que os péssimos resultados nas sondagens, o definhamento do PSD de Rui Rio revela-se nas estruturas. Quando três concelhias da distrital social-democrata do Porto, a maior do país, não têm candidatos, isso é um forte sinal de desmobilização dentro do próprio partido. A acompanhar.


(Alguns) COMENTÁRIOS:
Antonio Sousa Branco: Crónica directa, certeira...sem rodriguinhos, que põe os postos nos ii. Só adiantava que isto acontece, apesar de, como repete até à exaustão o Presidente Marcelo, sermos os melhores do mundo. Imagino, se não estivéssemos no podium do globo.
Romeu Francisco: Boa crónica. Planear implica trabalho sério. E Costa estava mais preocupado em fazer propaganda na praia...
Carlos Oliveira: Parabéns ao articulista que espelhou aqui a péssima gestão da situação pandémica que nos está a encaminhar rapidamente para o descontrolo generalizado. Este tipo de análise da realidade desfavorável ao governo não é abordado por mais nenhum jornal. Porque será? Não terá a ver com o subsídio que receberam recentemente? Pois parece que já estão a retribuir...
santos de silva: Acreditamos que quem dá ordens na casa assombrada do rato são sociedades secretas pouco recomendáveis. Por via da gang filosófica (que Costa traz nas palminhas). Que percebeu o perfil marioneta pantomineira do ambicioso Costa. Logo, assumir responsabilidades é cosa nostra doutra gente que não ele.
Victor Cerqueira: Ética?! Com o costa e a tralha socrática que o acompanha? Por favor, não gaste essa palavra. Costa NÃO tem ESCRÚPULOS, nunca teve, nem NUNCA terá. Mas não está só neste país (?) que tem, quanto a mim, três problemas (entre muitos outros) que são estruturais na sociedade portuguesa: a) ausência de sentido (responsabilidade) social (o empresário que se "torce" todo para pagar salário mínimo é o mesmo que gasta num fim de semana essa quantia sem qualquer problema de consciência), b) falta de ética (preciso de dar exemplos?) c) desonestidade intelectual (se o Zé for um querido ou da cor pode dizer o que quiser, se o Manuel não for, e disser exactamente o mesmo, é trucidado)
Jorge Simoes: Pediram o reforço de verbas ao Ministério da Saúde e este às Finanças? E, se pediram, esse reforço foi autorizado ou negado? Uma coisa que nunca se saberá. Porque o Ronaldo Centeno é um crack e o novo já disse que só é responsável pelas suas decisões, aos dos anteriores que se lixe. Esquecem-se que são a cara do Estado como tal são responsáveis pelo passado, presente e pelo que poderão provocar no futuro. São responsáveis pelo passado, pois se ele está mal deverão corrigir. Pelo presente por causa da afirmação anterior, pelo futuro pois deverão gerir bem para as gerações vindouras tenham hipóteses de evoluir. Andamos há 20 anos a tentar tapar buracos, mas quando tapam um abrem outro mais fundo.... Por isso os jovens de hoje cada vez têm menos hipóteses de futuro e os que têm dois dedos de testa vão-se embora.
Ping PongYang: Ouvi bem? Um apoiante do Passos atreve-se a falar de verdade, ética, rigor, responsabilidade... Já agora de trabalho e estudo, não ? Por este andar, qualquer dia até os obesos mórbidos tipo Boris Johnson começam a andar por aí a falar em emagrecimento... Que grande lata!

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